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Jorge Chaloub

Ideias de Olavo de Carvalho confrontam qualquer definição de democracia

Pensamento do escritor deve ser estudado por seus impactos no mundo da política

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Jorge Chaloub

Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

[RESUMO] Olavo de Carvalho articulou o conservadorismo de raízes católicas, a recusa à modernidade do tradicionalismo e o vocabulário político das guerras culturais da ultradireita americana em suas ideias, mais próximas do reacionarismo que do conservadorismo. Com sua retórica agressiva e conspiracionista, o escritor soube aproveitar o impulso anti-esquerdista nas gestões petistas e ocupar espaço privilegiado nas redes sociais.

Obituários são um terreno fértil para hipérboles. Algumas das primeiras análises sobre a morte de Olavo de Carvalho rapidamente o colocaram como ideólogo oficial do governo e responsável pelo surgimento da "nova direita brasileira", representando-o como grande artífice da barafunda do bolsonarismo e líder inconteste de um campo extremamente influente nos últimos anos.

Há, nessas perspectivas, alguns pontos somados ao conto que acabam, ironicamente, por naturalizar parte da autorrepresentação do próprio autor. Olavo foi um evidente protagonista na expansão da ultradireita no Brasil e figura importante no imaginário do bolsonarismo, mas não era um mártir pregando solitário no deserto ou um lobo solitário lutando contra tudo e todos.

Suas ideias interessam, sobretudo, como caminho para reconstruir parte da cena política e intelectual das últimas décadas, em meio às quais Olavo de Carvalho é menos causa que sintoma.

São frequentes os questionamentos públicos, especialmente de colegas da academia, sobre a relevância de uma investigação mais detida sobre o pensamento de Olavo. Alguns até mesmo questionam que se fale em pensamento ou que ele seja definido como intelectual.

Ofereço uma singela justificativa: a relevância política não se confunde com a importância intelectual. O estudo de autores e suas ideias não se justifica apenas pela possibilidade de oferecer novos meios para refletir sobre o mundo, mas também como forma de olhar para processos políticos e sociais. Por vezes, autores sem qualquer contribuição intelectual original ou rigor são fontes para compreender visões de mundo e práticas políticas importantes.

Creio que esse é o caso de Olavo de Carvalho. Ele não oferece nenhuma ideia original ou sofisticada sobre o Brasil e o mundo e recai em formulações intelectuais toscas. Todavia, para além do mérito intelectual, suas ideias interessam por seu inegável impacto no mundo da política.

Como escrevi há alguns anos com Fernando Perlatto, para além de qualquer avaliação de qualidade, a definição de intelectual leva em conta seu impacto no debate público e o reconhecimento como tal por um grande contingente de pessoas.

Olavo me interessa, desse modo, como caminho para compreender as transformações do debate público brasileiro. Antes de refletir sobre as razões da sua popularidade, é importante expor algumas das principais influências da sua obra.

As três grandes influências

Os textos de Olavo de Carvalho articulam um repertório eclético de ideias das direitas e ultradireitas norte-americanas, europeias e brasileiras, como o conservadorismo do IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia), de Antonio Paim e Paulo Mercadante, que antecipa boa parte da sua tentativa de conjugar conservadorismo de raízes católicas, defesa do liberalismo econômico e um papel central de elites tecnocráticas, com destaque para as Forças Armadas.

Alguns, como João Cezar de Castro Rocha, atribuem ao pensamento militar parte das formulações de Olavo. De fato, há uma série de argumentos comuns entre o autor e setores importante das Forças Armadas, que inclusive abrigam autores francamente olavistas, como o general Sérgio Coutinho.

Penso, porém, que boa parte desses argumentos foram construídos por intelectuais civis de direita com amplo trânsito nas Forças Armadas, como as lideranças do IBF. Esse processo ocorre tanto pela atuação de intelectuais civis em instituições como a ESG (Escola Superior de Guerra) como por meio da recepção de parte da tradição conservadora e reacionária brasileira pelos militares.

Olavo de Carvalho também compartilhou com o grupo uma postura fortemente belicosa ante o marxismo e as esquerdas, que deveriam ser fortemente combatidas como inimigos públicos. A influência dessa tradição conservadora é particularmente marcada em seus livros da década de 1990, como a trilogia "A Nova Era e a Revolução Cultural", "Jardim das Aflições" e "O Imbecil Coletivo", e persiste até os seus textos mais recentes.

Próximo aos líderes do IBF desde seus tempos da UniverCidade, o autor sempre retomava elogios enfáticos a esses intelectuais e indicou para o Ministério da Educação do governo Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez, um dos seus protagonistas.

Outra inspiração relevante para Olavo foi o tradicionalismo de René Guenon e Julius Evola, presente desde suas obras sobre astrologia da década de 1980, como "Astros e Símbolos" e "Astrologia e Religião".

Se intérpretes como Benjamin Teitelbaum superdimensionam a presença do tradicionalismo na obra do autor brasileiro, é inegável que tais ideias têm centralidade em seu projeto teórico como inspiração fundamental para suas concepções de Ocidente, modernidade, indivíduo e religião.

Trata-se de repertório fundamental para o veio reacionário de Olavo de Carvalho e para sua recusa à modernidade em prol de uma perspectiva teológica que se aproxima de certa concepção mística do mundo. Mesmo outras influências importantes, como Oswald Spengler, parecem lidos pelas lentes de Guenón, que dá o tom do seu antirracionalismo universalista entusiasta de uma concepção teológica do mundo.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho antes da exibição de documentário sobre o governo de Jair Bolsonaro, em Washington - Joshua Roberts - 16.mar.19

A mobilização dos seus seguidores por meio de chamados à violência, a construção de inimigos públicos, o anti-intelectualismo e o negacionismo facilmente aproximam as pregações do autor de uma linguagem política fascista, que, aliás, encontrava simpatia em autores do tradicionalismo, como o italiano Evola.

Sua terceira grande influência vem do conservadorismo e do neoconservadorismo norte-americano. Desse repertório, ele retira todo um vocabulário político das guerras culturais, no sentido de James Hunter, e diversos argumentos de ataque ao que ele considera ser uma "nova esquerda", que teria abandonado a ideia de revolução em prol de uma luta menos explícita, mas para ele até mais perniciosa, no terreno simbólico.

Manifestações públicas de conservadores como William Buckley inspiraram seu estilo de polemista e parte do seu repertório anticomunista, ao passo que neoconservadores, como Irving Kristol, embasaram seu diagnóstico crítico acerca de uma nova esquerda e sua leitura a respeito da inevitável adesão a premissas do liberalismo econômico.

Tal repertório ganha força crescente em suas obras a partir da década de 1990 e se torna central nos textos jornalísticos e em redes sociais. Em boa medida por influência desses autores, Olavo construiu uma representação dos EUA muito próxima do imaginário conservador norte-americano. Nessa formulação, mesmo o capitalismo ganha contornos cristãos e uma roupagem moralizante.

Dizer que o autor era "conservador nos costumes e liberal na economia" revela algo do seu pensamento, mas perde nuances importantes, já que menospreza a profundidade da sua recusa ao moderno —que, muitas vezes, o deixa mais próximo do reacionarismo que do conservadorismo—, e o lugar menor do seu elogio ao liberalismo econômico.

Em suas formulações, o capitalismo e as doutrinas a ele simpáticas surgiam como um fato inevitável do mundo contemporâneo, que deveria ser interpretado a partir de valores cristãos reacionários, e mais um modo de confrontar as esquerdas, mas raramente eram decantados como ideal de ordem e sociedade.

A difícil conciliação de tudo isso não era um problema para o autor, que, como boa parte da ultradireita contemporânea, recusava explicitamente as ideias de sistema e totalidade. Os sistemas surgiam em seus textos através de uma retórica conspiracionista, que atribuía uma suposta decadência do Ocidente a interesses globalmente articulados por bilionários e intelectuais de esquerda.

Esse discurso era difícil de ser confrontado, já que rapidamente seus críticos eram chamados de ingênuos ou cooptados, mas tinha grande potencial de popularização, seja por permitir uma fácil explicação genérica de mazelas sociais, seja por propor um modo de organizar todo o debate público.

As razões da popularidade

A crescente popularidade de Olavo de Carvalho se amparou, entre outros fatores, em três elementos: (1) a profunda sensação de crise política e social, que ganhou força depois de 2013, mas foi cultivada desde os anos 2000 e naturalizou-se no debate público ao longo dos governos petistas; (2) a capacidade de adaptar sua retórica a distintos meios de circulação —imprensa, Youtube, redes sociais; (3) a aposta certeira em um estilo de retórica agressiva, marcado pela crítica radical à esquerda e à história do Brasil, que chamei de retórica da terra arrasada, e pelo ataque a grupos historicamente subalternos.

O escritor leu bem a mudança da maré promovida pelas vitórias eleitorais petistas. Crítico da esquerda desde seus livros da década de 1990, suas formulações sempre encontraram respaldo em elites e intelectuais conservadores, que frequentavam seus cursos e lhe davam espaço em jornais e revistas de grande circulação ou prestígio, como Bravo!, Folha e O Globo.

Com a chegada do PT à Presidência e o aumento de uma perspectiva fortemente crítica de boa parte da grande imprensa em relação à esquerda, as ideias de Olavo se tornaram mais próximas de certo espírito do tempo.

O autor passou a ser personagem comum nos círculos de "think tanks" empresariais, como o Instituto Millenium, e aumentou seu trânsito em círculos influentes no debate público.

Por outro lado, ele percebeu cedo as possibilidades da internet para atingir um público amplo. Seja pela criação, em 2002, do portal Mídia sem Máscara, seja por seu uso das redes sociais, a imagem pública de Olavo de Carvalho passou a ser definida por sua persona virtual.

As redes sociais se mostraram um terreno fértil para sua retórica, que se nutria da construção de oposições constantes, sempre organizando a discussão como um embate entre amigos e inimigos.

O estilo agressivo e desleal contra adversários e antigos aliados aumentava a fama de Olavo e reforçava sua capacidade de mobilizar seguidores e detratores, o que definia o próprio modo pelo qual o debate público transcorria.

A estratégia de falar absurdos era uma forma de ocupar o centro das disputas intelectuais e também definir seus limites. Sua habilidade para gravar vídeos palatáveis e criar bordões lhe deu, por outro lado, a régua e o compasso para alcançar boa parte dos seus objetivos.

Olavo está com um casaco cor vinho, sentado em frente de bustos de personalidades em sua casa, na Virgínia; atrás é possível ver uma estante de livros ao fundo
O escritor Olavo de Carvalho em entrevista à Folha - Vivi Zanatta - 6.out.17/Folhapress

A forma de composição dos seus discursos encontrou, por sua vez, um ótimo terreno nas redes. A articulação constante entre argumentos de corte erudito, frequentemente manejados toscamente, e a linguagem cotidiana, com direito ao vasto uso de palavrões, conseguiu cativar muitos que buscavam um novo repertório intelectual.

O uso de referências eruditas reforçava sua autoridade intelectual, em um processo que chancelava suas críticas radicais ao mundo e atribuía a ele um conhecimento privilegiado da realidade.

A construção de um cânone maldito, supostamente ignorado pela intelectualidade dominante, reforçava o personagem de intelectual supostamente brilhante e criava uma cumplicidade entre alunos e mestre, todos eles membros de um grupo que compartilhava verdades vistas como ignoradas ou ocultadas.

Para atrair alunos, Olavo ainda prometia um rápido acesso a todo esse vasto continente desconhecido do pensamento. O caminho era tentador para muitos, que, com isso, podiam se distinguir do seu entorno e acessar uma teoria que explicava, por chaves conspiracionistas, os mais diversos aspectos da realidade.

Em tempos de vertiginoso aumento da quantidade de informação e de grande especialização, o autor oferecia uma explicação geral que articulava a suposta miséria da realidade brasileira a uma grande narrativa que pretendia expor as verdades ocultas da geopolítica mundial e os descaminhos do próprio projeto moderno.

A linguagem repleta de palavrões, por sua vez, reforçava a imagem do pensador incapaz de segurar sua língua ou destemido para descrever "a vida como ela é", e o fazia próximo dos alunos, como alguém que falava verdades profundas como se estivesse em uma mesa de bar.

A construção dessa sensação de intimidade era reforçado pela escolha do primeiro nome como forma mais popular de divulgação da sua imagem e se completava com o ambiente dos vídeos —a casa do próprio professor, onde, entre uma baforada e um trago de bebida, ele emulava um cenário pessoal. O clima se encerrava com o lugar em que seus espectadores consumiam os vídeos, suas casas, nas quais recebiam o professor como um ilustre convidado.

Olavo soube ler os caminhos abertos pelos novos tempos. Porém, por mais que o autor tenha sido um líder inegável da ultradireita, não se pode ignorar que ele é parte de um movimento mais amplo.

Sua trajetória seria impossível sem a grande abertura da mídia tradicional a intelectuais da ultradireita, a criação de um filão editorial de ativistas do mesmo campo e a atuação bem-sucedida de "think tanks" —tudo isso em meio a um caldo de críticas à esquerda, que logo se tornariam um discurso antissistema.

A porosidade do debate público hegemônico a essas ideias é indissociável da compreensão do fenômeno da expansão dos discursos públicos de ultradireita, que teve em Olavo um dos seus principais personagens. Ao lado de tantos outros intelectuais públicos, ele encarnou o personagem de crítico radical de ultradireita ao sistema, que muito contribuiu para a profunda crise democrática brasileira.

As consequências do olavismo

Por vezes, o destaque de Olavo de Carvalho é saudado como algo positivo para o debate público, já que isso teria aumentado sua diversidade a partir da divulgação de autores de direita. Afirma-se, assim, que o autor teria rompido um consenso progressista longamente estabelecido.

Não creio que essa narrativa seja precisa. Primeiramente, autores conservadores e mesmo reacionários sempre foram objeto de análises acadêmicas e repercutiram no debate público brasileiro. Martin Heidegger e Carl Schmitt, Oliveira Vianna e Gustavo Corção, entre outros, são objetos frequentes de textos acadêmicos.

Do lado das identidades políticas, há duas confusões conceituais corriqueiras no trato do tema, que por vezes tomam as palavras pelas coisas e aproximam atores diversos. A primeira considera a ausência da reivindicação pública de pertencimento à direita na Nova República como sinal de ausência da direita, que teria sido escanteada por uma suposta hegemonia da esquerda.

Uma representação negativa do campo foi de fato produzida pela memória construída em torno da ditadura militar, que reivindicava os valores da direita, e por um vago pragmatismo que representava o centro como lugar privilegiado para o sucesso eleitoral.

Apesar da não reivindicação ostensiva dessa identidade, a breve análise dos discursos, simbolismos e ações de boa parte das figuras centrais da política brasileira da Nova República demonstra facilmente como predominaram em suas trajetórias as linguagens políticas do conservadorismo e de versões conservadoras do liberalismo.

Ou José Sarney, Fernando Collor, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen e tantos outros foram personagens à esquerda do espectro político? Mesmo que não fosse reivindicada explicitamente, a direita é parte central da cena política e intelectual pós-1988.

O segundo problema conceitual é tomar a direita como um campo homogêneo e despido de diferenças internas. Mesmo que a coalizão heterogênea que apoiou Bolsonaro seja composta de elementos de uma direita brasileira tradicional e de personagens de uma ultradireita de destaque mais recente, há diferenças entre esses grupos.

A principal delas é que, enquanto a direita pode eventualmente transigir em relação à democracia, em toda a sua ampla possibilidade de definições, para alcançar fins de curto prazo, a ultradireita tem por princípio central e inegociável o combate à democracia e a qualquer movimento de democratização e a defesa explícita de uma sociedade marcada por princípios hierárquicos.

Olavo de Carvalho não foi apenas um crítico das imperfeições da democracia brasileira; suas ideias confrontam qualquer definição disponível de democracia.

A curto prazo, as consequências da sua morte são pequenas, já que os efeitos mais profundos da sua atuação aconteceram em tempo mais longo, sobretudo por meio da formação de um público que normaliza discursos francamente antidemocráticos, toma adversários como inimigos e não vê problemas em bradar com orgulho frases preconceituosas. Olavo de Carvalho não construiu esse cenário sozinho e deixou candidatos a ocupar seu posto.

O olavismo foi um dos fatores responsáveis pela vitória de Bolsonaro em 2018 e compõe parte relevante do repertório discursivo do presidente e de seus apoiadores. No entanto, suas consequências residem menos no tempo limitado das eleições que na longa construção de um ambiente em que a vitória de alguém como Bolsonaro não é apenas possível, mas normal.

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