Descrição de chapéu
Débora Freire, Letícia Bartholo e Sérgio Firpo

Cashback da reforma tributária será parceiro do Bolsa Família

Programa, que completou 20 anos, funciona como seguro contra fome e pobreza extrema e favorece crescimento econômico

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Débora Freire

Subsecretária de política fiscal da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Letícia Bartholo

Secretária de avaliação, gestão da informação e Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Sergio Firpo

Secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e Orçamento e professor do Insper

[RESUMO] A reformulação do Bolsa Família desde o início do governo Lula (PT), com o aumento de famílias beneficiadas e melhorias no Cadastro Único, foi acompanhada da diminuição da pobreza extrema e da insegurança alimentar no país. Autores argumentam que a devolução de imposto aos mais pobres, prevista na reforma tributária, pode inaugurar um novo período da política social brasileira e potencializar a ação do Estado no combate à desigualdade e à fome.

A queda recente da fome

Dados da PNAD Contínua divulgados recentemente pelo IBGE mostram que houve queda na desigualdade de renda em 2023 quando comparada ao ano anterior. Isso também aconteceu com medidas de pobreza e pobreza extrema, conforme estudo do Centro de Políticas Sociais da FGV, com base nesses mesmos dados.

A queda na desigualdade e na pobreza coincidiu com a expansão da cobertura do Bolsa Família. O número de domicílios com famílias beneficiárias do programa subiu de 16,9% em 2022 para 19% em 2023, atingindo 14,7 milhões de domicílios.

Crianças brincam em igarapé em Breves, na ilha do Marajó, no Pará - Lalo de Almeida - 8.abr.24/Folhapress

Outro estudo, feito em parceria entre o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome) e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, indica que a pobreza infantil seria pelo menos 12 vezes maior na ausência do Bolsa Família.

Mais recentemente, o IBGE divulgou dados sobre segurança alimentar captados no quarto trimestre de 2023 na PNAD Contínua. Os dados mostram que há ainda 8,6 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave e, portanto, o poder público precisa avançar muito no combate à fome.

No entanto, os dados indicam que o caminho está certo e não é possível deixar de celebrar a vigorosa redução da fome em tão curto período. Nas medições feitas pelo IBGE, estamos no segundo melhor momento histórico de segurança alimentar, somente atrás do ano de 2013.

Ao mesmo tempo, ao se compararem informações sobre segurança alimentar entre 2021 e 2022 captadas pela pesquisa da Rede Penssan com as de 2023 captadas pelo IBGE, se vê que a proporção de brasileiros com segurança alimentar subiu de 41,3% para 72,4%. Comparando o dado do IBGE com o mesmo questionário aplicado pela Penssan, a fim de se reduzirem as diferenças metodológicas, tem-se que mais de 20 milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023. É um salto altíssimo, que precisa ser comemorado.

Diversos são os fatores que contribuem para a queda da desigualdade, da pobreza e da insegurança alimentar, mas sua relação com o novo Bolsa Família e as medidas de acerto de foco do Cadastro Único não parece ser fortuita.

O Cadastro Único adotou uma série de estratégias de correção, integração de dados e busca ativa dos mais pobres ao longo de 2023, enquanto o novo Bolsa Família, em sua expansão de cobertura e de aumento de valores transferidos a cada família beneficiada, age como um seguro contra a pobreza extrema e a fome.

Os impactos econômicos do novo Bolsa Família

Além da relevância do benefício como um colchão de proteção social, é importante também considerar que sua expansão em 2023 se refletiu em impactos econômicos. A expansão da cobertura e do benefício médio das famílias significou aumento da participação das transferências do programa no PIB, de 0,9% em 2022 para 1,6% em 2023. Em termos monetários, essa elevação implicou injeção de mais de R$ 78 bilhões adicionais de transferências do programa diretamente canalizadas às famílias.

De acordo com o IBGE, também a partir dos dados da PNAD Contínua, a renda média domiciliar per capita se elevou a R$ 1.848 por mês no Brasil em 2023, configurando o maior patamar da série histórica iniciada em 2012 e alta de 11,5% em relação a 2022.

Explicam essa alta o aumento de rendimentos de todas as fontes, principalmente o aumento da renda do trabalho, mas também a expansão dos benefícios pagos às famílias, como as aposentadorias, diretamente impactadas pelo aumento do salário mínimo, e as transferências do Bolsa Família. Portanto, a resiliência e os bons resultados observados no mercado de trabalho se somaram ao impacto das transferências, que, em conjunto com um melhor cenário inflacionário, elevaram a renda real da população.

O aumento da renda gerado pela ampliação do volume de transferências do Bolsa Família é canalizado, em sua maior parte, para aquisição de bens e serviços, já que famílias pobres e extremamente pobres sofrem privação de consumo e, por isso, desembolsam todo o benefício no mercado de bens e serviços. A ampliação do consumo das famílias se reflete na atividade e em resultados das empresas, impactando os setores econômicos e a renda dos fatores empregados por essas atividades.

Os efeitos de curto prazo das transferências na demanda e no nível de atividade econômica são maiores sobre os setores voltados à produção de bens de consumo e serviços pessoais. Esse impacto assimétrico nos setores ajuda a desconcentrar a renda do trabalho, ao incentivar atividades, em especial as de serviços, que empregam mão de obra menos qualificada, impulsionando o crescimento da renda do trabalho na base da estrutura distributiva.

Mas o efeito do Bolsa Família sobre a economia não se limita aos setores diretamente afetados pelo aumento do consumo das famílias beneficiárias. Trabalho de pesquisadores associados ao Banco Mundial e a universidades britânicas mostrou que municípios que tiveram maior expansão do programa registraram maior aumento do emprego, do número de contas bancárias e da arrecadação de impostos, o que evidencia os efeitos indiretos e multiplicadores do programa nas economias locais.

Esses resultados seguem em linha com outro estudo do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) da FGV, de outubro de 2023, que sugere que o aumento das transferências reduz o número de desocupados. Assim, ao impactar positivamente as atividades econômicas, as transferências do programa resultam em ampliação de emprego e da renda, também exercendo efeitos no rendimento de famílias que não são diretamente beneficiadas.

Responsabilidade social com responsabilidade fiscal

Os efeitos da expansão do novo Bolsa Família e do ganho de foco do Cadastro Único sobre o crescimento da renda do trabalho e a redução da desigualdade em 2023 são muito recentes e, portanto, precisam ainda ser avaliados por mais estudos. Contudo, é possível sugerir que parte da diferença entre o crescimento de 2,9% do PIB em 2023 e as previsões no final de 2022, que não passavam de 1%, pode se dever ao novo desenho e à expansão focalizada do programa, cujos efeitos benéficos não haviam sido antevistos.

Estudo com simulações de decomposição da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda aponta que a expansão das transferências do Bolsa Família em 2023 foi responsável por 0,25 ponto percentual do crescimento do PIB em 2023.

Claro que outros fatores foram relevantes para o crescimento econômico acima do esperado no ano passado e para a potencialização dos efeitos do Bolsa Família. Como exemplo, cabe lembrar que, ao longo de 2023, houve gradativa melhora das expectativas econômicas, impulsionada pela aprovação do Regime Fiscal Sustentável. Isso permitiu que se desse início ao ciclo de cortes da taxa de juros, possibilitando ampla absorção dos efeitos multiplicadores do Bolsa Família em curto prazo.

Em longo prazo, espera-se que o programa esteja associado a ganhos de produtividade para a economia do país, uma vez que há uma série de estudos que mostram o impacto do programa e de suas condicionalidades sobre a mitigação de mazelas associadas à pobreza, como a desnutrição infantil, o baixo aprendizado e a evasão escolar.

Portanto, está no cerne da concepção do programa a possibilidade de mobilidade social a partir de uma infância menos austera e restritiva, trazendo mais oportunidades para que nossas crianças cresçam em condições que as permitam potencializar seus talentos, elevando a produtividade.

A reformulação do desenho do programa, em especial o maior foco na primeira infância, a ampliação da cobertura e a maior eficiência em localizar os efetivamente elegíveis ao benefício a partir das melhorias no Cadastro Único —medidas implementadas a partir de 2023— tendem a ampliar esses efeitos.

Esses resultados sinalizam que é importante que o país prossiga na agenda que busca conciliar responsabilidade social com responsabilidade fiscal, alçando-as ao mesmo patamar, de modo que a ampliação da proteção social seja sustentável ao longo do tempo, potencializando os benefícios sociais e econômicos de curto e longo prazos do Bolsa Família.

No horizonte, o cashback

Apesar de todos os benefícios já em curso dessa nova etapa do Bolsa Família, ainda há muito o que fazer. Afinal, 20,6 milhões de pessoas e mais de um terço das crianças de até 4 anos vivem em lares com algum grau de insegurança alimentar no país. No horizonte de implementação da reforma tributária, desponta uma política pública com chances de inaugurar um novo legado para a política social do país: a devolução personalizada do IVA (imposto sobre valor adicionado), que tem sido chamada de cashback.

O cashback é um instrumento inovador, que conta com boas evidências internacionais e que tem a capacidade de mitigar a regressividade intrínseca à tributação do consumo.

A proposta do Ministério da Fazenda de regulamentação do instrumento prevê que a devolução dos tributos seja destinada às famílias com renda per capita de até meio salário mínimo e se integre ao Cadastro Único de programas sociais, tomando como base praticamente todo o consumo de bens e serviços dessas famílias. Dessa forma, tem o potencial de beneficiar 73 milhões de pessoas e de mitigar o peso da tributação do consumo sobre os mais pobres.

O cashback se traduz em uma medida muito mais justa e eficiente que a isenção ampla de alimentos, já que, além de garantir que o benefício efetivamente chegue às famílias que mais precisam, reduz o subsídio do consumo dos mais ricos, garantindo justiça fiscal e potencializando o que pode se fazer pelos mais pobres.

Além disso, dada a natureza do imposto a ser restituído, o cashback cria incentivos para que haja aumento na formalização das empresas ao longo da cadeia produtiva e não apenas entre as que venderão bens e serviços aos elegíveis ao programa. Uma maior formalização amplia a base tributária, gerando espaço para redução da alíquota efetiva, beneficiando todos os demais consumidores.

A política social brasileira tem muitos motivos para se orgulhar. Os efeitos da expansão do Bolsa Família e seu novo desenho sobre redução de desigualdades, pobreza, pobreza extrema e infantil, insegurança alimentar e desemprego merecem ser celebrados. O programa chegou aos seus 20 anos repaginado, maior, mais generoso, como deve ser a relação entre o Estado brasileiro e seus cidadãos.

No horizonte, se vislumbra o cashback, que, em conjunto com o Bolsa Família, será um importante parceiro no desafio de fazer com que nenhuma pessoa passe fome neste país.

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