País já vive primeira onda de encerramento de fábricas em meio à pandemia

Para economistas, outros fechamentos serão inevitáveis e são preocupação para retomada

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São Paulo

O país já vive uma primeira onda de encerramentos de fábricas, em meio à pandemia. Em alguns casos, são empresas que já enfrentavam dificuldades antes da crise atual e tiveram a decisão de interromper atividades e demitir funcionários precipitada pela abrupta queda de pedidos. Em outros, fabricantes com matrizes estrangeiras levaram a cabo decisões de reestruturação já em estudo há algum tempo.

O Ibre-FGV estima uma queda de 11,5% do PIB da indústria de transformação este ano e recuo de 21% somente no segundo trimestre – o maior em pelo menos 40 anos. Luana Miranda, pesquisadora do instituto, avalia que tanto o desemprego de longo prazo que deve ser gerado pela crise, como o encerramento de unidades produtivas, são fatores temerários para a retomada da atividade adiante.

"Essa recessão não é só conjuntural, há uma perda de capacidade produtiva muito grande, o que pode reduzir o hiato [medida de ociosidade da economia], mas por um motivo ruim, que é a perda de potencial”, diz a economista.

Trabalhadores de máscara para se proteger da covid-19 cruzam os braços em frente a uma placa escrita Kostal
Trabalhadores da Kostal em paralisação após saberem da intenção da fabricante de autopeças de fechar unidade em São Bernardo do Campo (SP) - Adonis Guerra/SMABC/Divulgação

O setor industrial vem fechando postos de trabalho desde o início da pandemia. O balanço de vagas do setor foi negativo em 32 mil em março, e 196 mil em abril, segundo dados do Caged (cadastro que registra contratações e demissões de emprego formal no país). Ainda não existem, porém, levantamentos específicos sobre encerramento definitivo de fábricas durante a pandemia.

A Folha confirmou junto a empresas, sindicatos e prefeituras o encerramento de seis unidades fabris desde abril. Entre as companhias que tomaram essa decisão estão a fabricante de instrumentos de medição Mitutoyo, de origem japonesa, a fabricante de autopeças Kostal e as calçadistas Paquetá, Piccadilly, Ramarim e RR Shoes/Via Uno.

Segundo economistas, novos encerramentos de fábricas serão inevitáveis nos próximos meses, diante da esperada queda da demanda, principalmente em bens de capital e bens de consumo duráveis e semiduráveis. O fechamento permanente de empresas é uma preocupação para a retomada da economia brasileira, uma vez que resulta em perda de capacidade produtiva.

A calçadista Ramarim anunciou em 28 de maio o encerramento de sua unidade industrial em Santo Antônio de Jesus, na Bahia. A planta, dedicada à fabricação de calçados femininos, empregava cerca de 300 pessoas, segundo a assessoria de comunicação da empresa.

“Esta decisão difícil, frente ao cenário de crise na economia mundial em decorrência da pandemia do novo coronavírus, se faz necessária no momento atual para adequação de toda nossa estrutura organizacional, garantindo sustentabilidade e fluidez em nossas operações”, afirmou a Ramarim, em comunicado.

No caso da Mitutoyo, a empresa anunciou em 3 de junho que sua fábrica em Suzano (SP), inaugurada em 1974 e com cerca de 90 funcionários, vai encerrar as atividades no fim de outubro. A empresa pretende continuar com suas atividades comerciais e de prestação de serviço no Brasil, mas não deve mais fabricar aqui seus produtos.

Segundo a Mitutoyo, em comunicado, a decisão considerou a “necessidade de adequação à nova realidade do mercado”. Os trabalhadores lamentam que a companhia tenha anunciado a medida quando uma crise econômica se aprofunda com o coronavírus.

“Para os trabalhadores, a tristeza foi muito grande, justamente num momento em que, devido à pandemia, muitas empresas demitiram”, diz o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Suzano, Pedro Benites. “Quando retomar novamente a cadeia produtiva, com certeza vai ser difícil encaixar essas pessoas, porque as empresas também devem retomar com menor número de trabalhadores.”

A alemã Kostal procurou em 6 de junho o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para anunciar a decisão de encerrar, em julho, as operações da unidade da empresa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, como parte de uma reorganização de suas atividades nas Américas.

Após paralisação e protesto dos trabalhadores e conversas com a prefeitura e o governo do Estado, o fechamento foi postergado para 30 de setembro, segundo o sindicato, enquanto as partes tentam buscar uma alternativa que evite a demissão dos cerca de 300 trabalhadores.

O episódio é semelhante ao ocorrido em fábrica da Ford em São Bernardo. Após o anúncio do fechamento da unidade em fevereiro de 2019, o governo de São Paulo passou a intermediar negociações para a venda da planta a outra montadora. As tentativas fracassaram e, na semana passada, a Ford anunciou acordo com uma construtora que pretende utilizar o espaço em um novo empreendimento logístico.

“É difícil reverter uma decisão como essa, mas estamos tentando criar alguma alternativa”, diz Aroaldo Oliveira da Silva, secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. “Sabemos o tamanho da dificuldade, porque uma vez tomada uma decisão dessa fora do Brasil, e num momento em que não temos nenhum política industrial desenhada e nenhuma intervenção mais clara por parte do governo, fica mais difícil ainda.” Procurada, a Kostal disse que não comentaria o caso.

Um setor especialmente afetado pela crise é o calçadista, que vem fechando fábricas em diferentes pontos do país.

No município de Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, a Piccadilly anunciou em 27 de abril o encerramento de uma unidade que empregava 400 pessoas. Outra fabricante instalada na cidade, a RR Shoes, dona da marca Via Uno, demitiu 420 funcionários, segundo a prefeitura.

“Com a redução da atividade econômica no município, devemos ter uma perda de arrecadação de no mínimo 40% este ano”, lamenta o prefeito de Santo Antônio da Patrulha, Daiçon Maciel da Silva (PMDB).

“Também nos preocupa que, quando cessar o repasse do governo federal aos cidadãos sem carteira assinada e o seguro-desemprego dos trabalhadores demitidos, daqui a três meses, estaremos em uma situação de quase calamidade, com essas pessoas desempregadas, sem chance de um novo emprego e sem nenhum recurso para seu sustento”, diz o prefeito.

Segundo a Piccadilly, a decisão de fechamento da fábrica aconteceu devido à frustração na expectativa de recuperação do mercado este ano. “Era uma unidade com pouco volume, que produzia apenas 5.500 pares por dia. Vinha sendo mantida na expectativa da virada da economia, que estava acontecendo no início do ano. Mas com a pandemia, o cenário foi totalmente alterado”, disse a empresa, através de sua assessoria.

Na avaliação da Abicalçados (Associação Brasileira das Indústrias de Calçados), o encerramento de ao menos quatro fábricas do setor calçadista desde o início da pandemia reflete a realidade do setor na crise. A entidade estima que a produção de calçados deve diminuir 30% este ano, em relação a 2019, voltando ao nível de 2004. Já as exportações devem cair mais de 30%, voltando ao patamar de 1983.

“Desde a segunda quinzena de março, já se perderam mais de 36 mil postos de trabalho no setor calçadista, isso representa 13% de toda a força de trabalho”, diz Haroldo Ferreira, presidente-executivo Abicalçados.

“Com o fechamento das cidades e estados, o comércio parou de vender e as empresas tiveram cancelamento de pedidos”, afirma. “Algumas delas utilizaram a MP 936 para redução de jornadas e suspensão de contratos, mas, infelizmente, outras não conseguiram passar esse período se utilizando das medidas.”

Para o economista Paulo Morceiro, pesquisador na Universidade de Joanesburgo (África do Sul), a situação atual do setor produtivo brasileiro reflete não só os efeitos da pandemia, mas um processo estrutural de desindustrialização que já dura quatro décadas.

“A indústria, no período mais recente, não se recuperou da crise de 2015 e 2016. Ainda estava com uma capacidade ociosa cerca de 10 ponto percentuais acima da média histórica”, afirma. “Com a crise agora, a parcela da indústria no PIB caiu para 10,1% no primeiro trimestre. No segundo trimestre, a queda deve ser bem mais expressiva, indo abaixo dos 10%, um patamar inédito.”

Para Morceiro, novos encerramentos de unidades produtivas, em consequência da pandemia, serão inevitáveis. Mas o governo pode tomar medidas adicionais para tentar minimizar o problema.

“A ampliação do prazo do auxílio emergencial pode garantir que as empresas tenham uma demanda mínima”, diz o economista.

Ele sugere também a postergação das medidas de redução de jornadas e salários e suspensão de contratos; a ampliação do acesso a capital de giro; a facilitação na recuperação de crédito para empresas em recuperação judicial; e o uso do Banco Central e do BNDES para compra de títulos de companhias estratégicas, com cadeias longas e relevância tecnológica.

A reportagem não conseguiu contato com os proprietários da Paquetá e da RR Shoes, cujo fechamento das fábricas foi confirmado pela prefeitura de Teutônia (RS).

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