Descrição de chapéu The New York Times

O ex-vice-presidente desertor da Amazon que virou uma dor de cabeça para empresa

Tim Bray se organiza para defender funcionários; engenheiro diz que Amazon deve separar atuação no varejo da computação em nuvem

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Karen Weise
Seattle (EUA) | The New York Times

Tim Bray, um pioneiro da internet e ex-vice-presidente da Amazon, causou um terremoto na gigante tecnológica no início de maio, quando renunciou ao que chamou de "veio de toxicidade" que permeia sua cultura.

Em poucas horas, sua postagem num blog sobre a renúncia atraiu centenas de milhares de visitas, e sua caixa de entrada se encheu de pedidos de jornalistas, recrutadores e fãs de tecnologia. Em breve, congressistas do Capitólio citaram a postagem. Tudo isso tornou Bray, 65, o desertor mais famoso da Amazon.

Mas ele tinha outras coisas para dizer.

Nas semanas que se passaram, ele conduziu seu poder cerebral não para resolver um problema de código, mas para estruturar uma crítica mais ampla à companhia. Em conversas e posts em blogs que chamaram atenção na empresa, ele propôs a sindicalização e a regulamentação antitruste. Em meio ao "rufar dos tambores antitruste", escreveu em um post, Bray gostaria de ver a Amazon separar seu negócio de varejo de sua lucrativa unidade de computação em nuvem.

"E tenho certeza de que não sou o único", disse.

Tim Bray, ex-vice-presidente da Amazon e engenheiro sênior, em seu barco em Vancouver, Canadá
Tim Bray, que renunciou a vice-presidência da Amazon, em seu barco em Vancouver, Canadá - Alana Peterson - 10.jul.2020New York Times

Enfrentando crescente escrutínio antitruste ao mesmo tempo que a crise do coronavírus pressionava as operações da companhia, a Amazon é cada vez mais forçada a defender seu histórico como empregador e seu relacionamento com os consumidores. Nesta segunda-feira (3), Jeff Bezos, o executivo-chefe da companhia, vai depor pela primeira vez diante do Congresso, que está investigando o poder da Amazon e de outras gigantes tecnológicas.

Bray se destaca porque embora grande parte das críticas à Amazon venha de fora —grupos de trabalhadores, legisladores e concorrentes—, ele passou mais de cinco anos no escalão superior da empresa.

A Amazon não quis comentar sobre Bray.

Em uma série de entrevistas em vídeo num pequeno barco atracado em Vancouver, na Colúmbia Britânica (oeste do Canadá), que é seu escritório durante a pandemia, Bray apresentou simplesmente suas ideias como uma questão de lógica.

"Não estou em uma margem radical por achar que a riqueza e o poder no século 21 estão extremamente concentrados", disse ele. "A indústria tecnológica é uma das principais candidatas ao que pode ser repartido."

Façanhas tecnológicas e ativismo

Bray pode ter tido uma predisposição única a pensar sobre mais que problemas de engenharia. Nascido no Canadá, ele foi criado principalmente em Beirute, onde seu pai trabalhou como professor. Com o conflito político e religioso que tornava o Líbano instável, "simplesmente não era um bom lugar para se viver", disse Bray.

Seu tempo em Beirute o acompanhou depois que ele voltou ao Canadá, tornando-o incapaz de ignorar a política. "A política lá assume a forma rara de tumultos nas ruas e mísseis israelenses caindo", disse ele.

Enquanto estudava na Universidade de Guelph, perto de Toronto, Bray encontrou prazer e habilidade na ciência da computação. Ele a usou durante os primeiros tempos da internet de consumo, digitalizando o Oxford English Dictionary e fundando duas startups. Mas ele é mais conhecido entre os tecnólogos por ajudar a inventar o XML, um padrão crítico para armazenar e compartilhar dados na internet.

Em 2014, após vários anos no Google, Bray entrou para a Amazon. Tornou-se um raro "engenheiro notável", parte de um grupo de elite cuja influência não vem de gerenciar grandes equipes, mas de demonstrar o brilho da engenharia.

Tim Bray na zona rural do Líbano, onde seu pai era professor
Tim Bray na zona rural do Líbano, onde seu pai era professor - Arquivo pessoal/New York Times

Paul Hoffman, que conheceu Bray nos anos 2000 enquanto escrevia padrões técnicos para blogs, disse que Bray era uma das pessoas que você realmente queria odiar, mas não conseguia, um polimatemático que era altamente funcional com poucas horas de sono.

Bray é definitivamente "um geek de geeks", disse Hoffman, "mas o que é atípico é que ele também tem muitos outros interesses".

Em conversas e em textos, Bray prontamente cita o economista Thomas Piketty (cujo livro sobre a desigualdade ele leu "de cabo a rabo"), admite seu amor pelo heavy metal (que chama de "meio ridículo" porque "o volume é muito maior do que pode ser sadiamente necessário") e fala em detalhe sobre a crise climática (que acha alarmante "como pessoa que tem um grande respeito pela ciência quantitativa e entende o que são os modelos matemáticos").

Ele transformou alguns desses interesses em ativismo. Em 2018, foi preso enquanto protestava contra uma proposta de oleoduto no Canadá que exportaria petróleo de areia betuminosa para os mercados asiáticos.

No ano passado, quando viu que milhares funcionários da Amazon assinaram uma carta pedindo que a companhia abordasse a crise climática com maior ênfase, ele assinou embaixo. Foi a pessoa mais graduada a aderir.

Seu envolvimento estimulou os organizadores. "Ter um vice-presidente simplesmente confirmava como os empregados da Amazon davam importância à empresa adotar uma liderança significativa sobre o clima", disse Emily Cunningham, então designer da Amazon que ajudou a organizar a carta.

​Sua dissidência pública irritou alguns líderes da Amazon, disse Bray. Disseram-lhe para lembrar do princípio de liderança da Amazon conhecido como "discordar e se comprometer", a ideia de que as pessoas devem discutir vigorosamente no plano interno, mas que quando uma decisão formal sobre qualquer assunto é tomada todos devem entrar na linha e apoiá-la.

"Como vice-presidente, você não deve sair dos trilhos com mensagens conflitantes, o que não é uma posição irracional", disse Bray. Mas essa ideia acabaria levando à sua renúncia.

Em abril, a Amazon demitiu Cunningham e vários outros funcionários que tinham levantado preocupações sobre a segurança nos armazéns da Amazon. A companhia disse que cada funcionário havia repetidamente violado diversas políticas. Para Bray, pareceu "uma política explícita de demitir qualquer um que levantasse a mão".

"Nós apoiamos o direito de qualquer empregado criticar as condições de trabalho dadas pelo patrão, mas isso não dá imunidade contra todas as políticas internas", disse Jaci Anderson, porta-voz da Amazon, em um comunicado.

Para Bray, as demissões passaram do limite. Ele disse que tinha levantado preocupações internamente, mas não podia "discordar e se comprometer" como a firma queria. Ele ainda ficou algumas semanas para terminar um projeto e renunciou, deixando para trás US$ 1 milhão em indenização.

Bray usou seu blog para explicar publicamente a renúncia. Ficou acordado até as 2h preparando seu servidor para suportar um tráfego maior que o normal, caso o Reddit e o Hacker News publicassem seu post, como ele pretendia. O plano deu certo, ainda mais do que esperava.

"Eu estava visando um alvo fácil, afinal", disse ele.

'Profundo problema social'

Nos dias que se seguiram, a crítica de Bray repercutiu em Washington, a capital. Ele falou com a deputada democrata Pramila Jayapal, cujo distrito inclui a sede da Amazon em Seattle (estado de Washington). E um grupo de senadores mencionou sua postagem sobre a renúncia quando escreveram a Bezos sobre as demissões.

Bray inicialmente tentou manter um perfil discreto, respondendo apenas por e-mail a pedidos de entrevista. Mas continuou postando no blog e acabou falando em público, fazendo críticas ainda mais fortes à companhia.

Em um vídeo ao vivo no início de junho ao National Observer, site canadense de notícias investigativas, Bray disse que a Amazon era um sintoma de capitalismo concentrado. "Nós não temos realmente um problema Amazon", disse ele. "O que temos é um profundo problema social com um desequilíbrio inaceitável de poder e riqueza".

Tim Brady é um senhor de idade que usa chapéu de palha, colete verde e camisa social colorida listrada. Ele está sentado com o braço apoiado na cadeira
Tim Bray, ex-vice-presidente da Amazon e engenheiro sênior, em seu barco em Vancouver, Canadá - Alana Peterson - 10.jul.2020/New York Times

"Não está evidente para mim por que a companhia de varejo, a companhia fabril, a companhia de reconhecimento de voz, a companhia de computação em nuvem e a companhia de vídeos Prime devam ser a mesma", disse ele no evento. "Elas não são especialmente relacionadas entre si, e eu acho isso ativamente distorcido e prejudicial."

Uma semana depois, Bray falou em uma conferência virtual convocada por sindicatos globais críticos à Amazon. Ele disse que deveria ser mais fácil formar sindicatos nos Estados Unidos e que "um dos programas políticos mais poderosos que poderíamos armar com o objetivo de corrigir os desequilíbrios de poder que nos afetam é o antimonopólio". Ele também disse que o simples tamanho da Amazon e outras grandes corporações lhes dá um poder imoderado sobre a política, as políticas internas e as condições de trabalho.

O "bem" que a Amazon representa para os clientes —preços baixos, ampla escolha, entrega rápida— "não é de graça", disse ele. "Neste momento, o lado negativo de tanta bondade está sendo experimentado majoritariamente pelos funcionários dos armazéns."

A Amazon defendeu fortemente suas condições de trabalho, dizendo que gastou bilhões de dólares para tornar seus armazéns seguros e que seus funcionários recebem pelo menos US$ 15 por hora (R$ 78), mais benefícios.

Bray logo começou a formular um caso empresarial para dividir a companhia. Ele o escreveu em um formato padrão da Amazon chamado PRFAQ, imaginando como a empresa anunciaria a proposta quando fosse plenamente aplicada. Com as pressões antitruste aumentando, a Amazon talvez preferisse desmembrar "proativamente" seu negócio de computação em nuvem, a Amazon Web Services, escreveu ele, "e não sob a pressão hostil de Washington".

Ele postou o documento no GitHub, ferramenta colaborativa de codificação, pedindo ajuda para melhorar a proposta. Ao desmembrar a AWS, afirmou ele, empresas concorrentes da Amazon, como a Walmart, ficariam mais à vontade para usar o serviço de nuvem, abrindo mais potenciais clientes.

"As organizações que competem com a Amazon querem aproveitar as ofertas da AWS como líder da indústria sem se preocupar em estar reforçando uma concorrente", escreveu Bray.

A postagem não viralizou tanto quanto sua renúncia. Mas, examinando logs no servidor de seu blog, ele soube que chamou a atenção num local crítico: dentro da Amazon.

Sua suspeita foi confirmada quando um ex-colega lhe disse que a empresa estava preocupada que um analista de Wall Street pudesse pensar que o documento era um documento real da Amazon. Ele poderia acrescentar uma isenção de responsabilidade?

Bray modificou a proposta, escrevendo: "Este documento não é uma produção da Amazon". "Ele descreve um processo hipotético que poderia se realizar."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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