Descrição de chapéu Financial Times

Conheça o casal que fundou a BioNTech, parceira da Pfizer na produção da vacina contra Covid-19

Ugur Sahin e Ozlem Tureci foram eleitos pessoas do ano pelo jornal britânico Financial Times

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Joe Miller Clive Cookson
Frankfurt e Londres

Nos 11 meses desde que se dedicaram a conter a mais mortífera pandemia em mais de um século, Ozlem Tureci e Ugur Sahin tiveram poucos e preciosos momentos de privacidade, que usaram para se exercitar nas ruas de subúrbio desertas perto de sua casa na cidade alemã de Mainz, escutando seleções de música pop dos anos 80.

Inundados por documentos de órgãos reguladores do mundo todo na semana passada, os co-fundadores da BioNTech não viram o vídeo de Margaret Keenan, de 90 anos, arregaçando a manga no hospital em Coventry, no Reino Unido, para ser a primeira paciente injetada com a vacina deles aprovada para a Covid-19 –a notícia chegou em mensagens de amigos e colegas.

O simbolismo dessas imagens, porém, foi inconfundível: era efetivamente o início da luta da humanidade contra uma doença que já ceifou mais de 1,6 milhão de vidas.

"Estávamos nervosos", admite o doutor Sahin, cuja confiança tranquila pareceu inabalável durante o último ano. Apesar de terem visto sua vacina administrada a mais de 22 mil pessoas em estudos clínicos em seis países, ele diz que "é diferente quando as pessoas são vacinadas pela primeira vez fora de um estudo, no mundo real".

O simples fato de que uma inoculação segura e eficaz está disponível menos de um ano depois de a sequência genética do novo patógeno, semelhante ao da pneumonia, ser divulgada coloca a conquista dos doutores Sahin e Tureci, que são as Pessoas do Ano 2020 do Financial Times, ao lado das maiores realizações médicas de nosso tempo.

A ciência é, por natureza, uma atividade lenta e minuciosa. As hipóteses têm de ser contestadas e novas ideias, testadas à exaustão. O erro é uma parte essencial do processo.

Ozlem Tureci e Ugur Sahin, co-fundadores da BioNTech - / AFP

Aproximadamente seis em cada dez candidatas a vacinas não são aprovadas, mesmo quando escolhidas cuidadosamente durante anos, e sem ter de concorrer com um ambiente de sistemas de saúde levados ao ponto de ruptura ou uma economia global abalada.

Tudo isso torna ainda mais notável a rapidez com que esse casal conseguiu produzir um inoculante com mais de 95% de êxito para evitar a doença.

A iniciativa de muitos bilhões de euros lançada pelos dois médicos-cientistas, chamada de Projeto Lightspeed (Velocidade da Luz), levou ao "mais rápido desenvolvimento de uma vacina desde que Edward Jenner inoculou o filho de seu jardineiro com varíola bovina em 1796", disse Paul Hunter, professor de medicina na Universidade de East Anglia. O recorde moderno anterior de uma vacina, obtido nos anos 1960 para caxumba, foi de quatro anos.

A BioNTech, cuja vacina usa uma nova tecnologia revolucionária que poderá ser usada no tratamento de câncer, não é a única. A empresa de biotecnologia Moderna, dos Estados Unidos, está perto de conseguir a aprovação de uma vacina que é quase igual em eficácia ao produto desenvolvido por seus colegas alemães. A vacina da Universidade de Oxford e da AstraZeneca também poderá ter uma taxa de resposta semelhante em certas doses –e, diante de seus custos de fabricação mais baixos, poderá ser amplamente usada no mundo em desenvolvimento. Vacinas russa e chinesa poderão ser altamente eficazes quando passarem por mais testes no exterior.

Como criadores da primeira vacina a conquistar a aprovação de dois órgãos reguladores com maior credibilidade no mundo, porém, o prêmio do Financial Times foi para os doutores Sahin e Tureci. Eles são o símbolo de uma história incrível de sucesso científico e empresarial.

Ainda alguns meses atrás, cientistas sugeriam que seria uma grande conquista obter uma vacina tão rapidamente que fosse 70% eficaz: em vez disso, há pelo menos três que poderão ser 90% ou mais. Em conjunto, elas representam um triunfo da inovação.

"Se você tivesse previsto em janeiro, quando a Covid-19 apareceu, que haveria uma vacina eficaz aprovada menos de um ano depois as pessoas dariam risada", disse Michael Head, pesquisador sênior em saúde global na Universidade de Southampton.

Alívio e justificativa

Sentado à mesa de café da manhã em janeiro com a doutora Tureci –sua parceira de pesquisa e esposa–, o doutor Sahin, 55, comentava uma notícia na revista médica Lancet sobre uma doença respiratória que havia se espalhado pela província de Hubei, na China.

Ele achou que a evidência indicava uma taxa alarmante de infecção e a ameaça de uma disseminação ainda mais rápida do que os autores do estudo supunham.

Dois meses antes que a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarasse uma pandemia global, o doutor Sahin sugeriu que a firma de 12 anos dedicasse a maior parte de seus parcos recursos a encontrar uma vacina.

"Ele tem uma taxa de acerto muito alta no que se refere a prever resultados", disse a doutora Tureci sobre seu marido –característica que, ela admite brincando, no início era "incômoda". Ela e os demais membros da direção da empresa aprovaram o plano pouco depois.

Para Sahin e Tureci –cuja insistência em que a tecnologia que eles ajudaram a desenvolver poderia anunciar uma revolução médica já havia sido considerada "ficção científica"–, a vacina eficaz para o coronavírus ofereceu tanto justificativa quanto alívio.

O casal, que já assinou centenas de trabalhos acadêmicos, registrou centenas de patentes, fundou duas organizações sem fins lucrativos e duas empresas de bilhões de euros, enfrentou o ceticismo de grande parte do meio médico até este ano.

O trabalho básico que levou à sua descoberta foi criado ao longo de várias décadas, em que os pesquisadores discretos foram obrigados a sair da zona de conforto de seus laboratórios e tornar-se empresários, educadores e missionários.

Depois de se conhecerem como médicos residentes em uma ala de câncer sanguíneo no sudoeste da Alemanha no início dos anos 1990, o casal descobriu que tinham origens semelhantes –os pais de ambos haviam migrado da Turquia em busca de oportunidades econômicas. Eles também perceberam que seu principal interesse não estava na ciência puramente acadêmica, mas na ciência aplicada.

"Primeiro e principalmente, somos médicos", disse a doutora Tureci, que dirigiu a primeira empresa da dupla, a Ganymed, e é diretora-médica da BioNTech.

O trabalho de suas vidas, que acabou se concentrando em uma plataforma de vacinas tão especial que sete anos atrás apenas 150 pessoas participaram da primeira conferência global dedicada à tecnologia, sempre foi "oferecer soluções para o paciente", acrescenta ela. "A ciência era uma ferramenta para se alcançar isso. Nunca foi só sobre entender o mecanismo porque é lindo."

Embora ainda pratiquem medicina, Tureci e Sahin, o qual confessa ser um pouco mais atraído pela "beleza da matemática, a ciência e a biologia" que sua mulher, ficaram obcecados por atacar o câncer. Começaram a desenvolver um instrumento para descobrir e usar antígenos que ocorrem naturalmente que pudessem instigar o corpo a combater tumores.

Sua visão, entretanto, sofreu um golpe em meados dos anos 1990. Os cânceres, afinal, eram variados demais para ser atacados por uma mesma droga.

"Aprendemos com nossos estudos que os cânceres humanos são altamente diversificados", lembra o doutor Sahin. "Compreendemos que precisávamos de uma tecnologia versátil para permitir abordagens personalizadas de vacinas."

O que se seguiu foi um período frenético em que o casal equilibrou seus deveres clínicos com momentos furtivos no laboratório, testando uma série de tecnologias que foram consideradas insuficientes --até que encontraram uma plataforma que eles imediatamente acreditaram que poderia transformar a medicina.

O RNA mensageiro, descoberto em 1961, carrega informação genética copiada do DNA para criar proteínas que constroem e controlam os órgãos e tecidos do corpo. Se explorado corretamente, no entender do casal, o mRNA poderia atuar como um guarda de trânsito para o sistema imune, controlando, modulando e redirecionando os recursos do corpo para combater cânceres e patógenos específicos.
Sua convicção não era compartilhada por muitos.

"Eu fui dos primeiros a dizer [a Sahin] que era loucura, que nunca iria funcionar", lembra Matthias Kromeyer, PhD em biologia molecular e bioquímica que chefia investimentos em ciência na firma de capital de risco MIG, em Munique, que apoiou a Ganymed e a BioNTech.

Sua negação não era irracional. Ao contrário do DNA, o mRNA é extremamente instável, e geralmente é degradado por enzimas minutos após cumprir sua função. Os primeiros experimentos com mRNA "foram muito desanimadores", disse o doutor Sahin.

Ao perceber que vacinas de mRNA exigiriam anos de pesquisa e otimização antes que atendessem a seu objetivo, o casal seguiu adiante com o desenvolvimento de compostos biológicos mais consagrados, conhecidos como anticorpos monoclonais, que eles descobriram ser muito eficazes contra cânceres de estômago, pâncreas e ovários.

Em 2001, o casal fundou a Ganymed –uma filial da universidade, para desenvolver anticorpos terapêuticos. Ao contrário de muitos pesquisadores que recuam diante da natureza transacional do mundo comercial, eles se enterraram em estudos de negócios, aprendendo com vídeos online e um livro de Planos de Negócios para Tolos que ainda está na prateleira do escritório pouco mobiliado do doutor Sahin, entre volumes sobre ácidos nucleicos.

"Eles não eram pessoas de negócios quando começaram", disse Kromeyer, que também havia estudado o mRNA. "Eles são um dos poucos exemplos de pessoas que transitaram de cientistas para também serem empresários."

Essa mentalidade compensou neste ano, quando a equipe da BioNTech, protegida da burocracia das grandes multinacionais, conseguiu desenvolver 20 candidatas a vacina para a Covid-19 em questão de semanas, usando uma série de laboratórios no campus da empresa, em estilo de startup, e anotando listas em um quadro no corredor.

As decisões da diretoria sobre pagamento de bônus e divisão de responsabilidades foram tomadas rapidamente, e Sahin vinha regularmente de bicicleta para supervisionar a pesquisa.

"Nada da velocidade, da inovação, das decisões rápidas, da aceitação de riscos, do pensamento apolítico seria possível em qualquer das grandes corporações farmacêuticas", disse Kromeyer.

Missão mRNA

Apesar do enorme sucesso da Ganymed, que foi vendida por US$ 1,4 bilhão (R$ 7,1 bilhões) em 2016, no maior negócio de biotecnologia feito na Alemanha, o casal nunca desistiu do mRNA. Enquanto dirigiam a empresa, eles continuaram sua pesquisa na Universidade de Mainz. Em um programa chamado "NT –Novas Tecnologias", eles registraram centenas de patentes que mais tarde formaram a base da BioNTech, cujas letras maiúsculas são um tributo àquela época. O casal chegou a escapar até o laboratório para trabalhar um pouco no dia de seu casamento.

Em 2008, a primeira grande realização da equipe Sahin-Tureci foi proteger e otimizar a vulnerável molécula de mRNA, levando a um aumento exponencial em estabilidade.

O avanço foi suficiente para convencer a MIG a investir na BioNTech, e a apresentar o casal aos gêmeos bilionários Andreas e Thomas Strungmann. Depois de seu primeiro encontro, lembra Strungmann, ele teve uma "sensação visceral de que eram as pessoas que tornariam realidade [a promessa das plataformas de mRNA]", entusiasmado por suas personalidades e por suas apresentações científicas.

Percebendo que haveria uma corrida por talentos quando as vantagens das plataformas de mRNA ficassem mais evidentes para a corrente dominante da ciência, Sahin e Tureci decidiram construir um canal próprio, investindo em educação.

Ugur Sahin, de origem turca, é co-fundador da BioNTech - Andreas Arnold/AFP

Armado de uma verba de 40 milhões de euros (R$ 248,8 milhões) do governo alemão, o casal ajudou a lançar um núcleo de excelência para atrair jovens pesquisadores e montou uma organização sem fins lucrativos chamada TRON, sigla de "oncologia translacional" em inglês, com seu mentor, o imunologista Christoph Huber, que se tornou um campo criativo para pesquisadores que mais tarde seriam o núcleo da equipe da Covid-19 na BioNTech.

Mais ou menos nessa época, eles conheceram a pioneira em mRNA Katalin Kariko, cientista húngara expulsa por superiores da Universidade da Pensilvânia cuja inovação patenteada foi usada como base para a bem sucedida vacina para Covid-19.

Além de um pequeno grupo de capitalistas de risco, porém, havia poucos fiéis nas perspectivas econômicas do trio de biotechs de mRNA, que inclui a Moderna, de Boston, e a rival local CureVac.

"Um ano atrás, ninguém conhecia a BioNTech na Alemanha", disse Strungmann, 70, um dos homens mais ricos do país. "Hoje eles dizem que sempre souberam que a BioNTech era uma grande companhia."

Ciclo de inovação

Apenas três meses depois da revelação do doutor Sahin na Lancet, a BioNTech se tornou a primeira empresa privada da Europa a proceder para testes clínicos de uma vacina para Covid-19, depois de testes bem sucedidos em macacos e ratos.

O tempo todo, o doutor Sahin, que afirmava que "o vírus pode ser atacado com sucesso por uma vacina", acreditou que com boa vontade suficiente dos reguladores o imunizante poderia estar no mercado até o final do ano.

Sustentando essa crença estava a vantagem chave do mRNA que havia levado o casal a perseguir incansavelmente a plataforma durante décadas –a capacidade de produzir diversas versões da molécula em poucos dias, em vez de ter de criar culturas de células em placas de Petri como fariam com as vacinas mais convencionais.

"Fomos obrigados quando começamos com esse tipo de testes de câncer personalizados a desenvolver processos de teste e fabricação que eram muito rápidos, ágeis e adaptáveis", disse a doutora Tureci.

Com a ajuda da sócia americana Pfizer, e uma verba do governo alemão que permitiu à BioNTech expandir suas instalações de produção, centenas de milhares de frascos contendo a BNT162b2 começaram a chegar a clínicas no Reino Unido, dos Estados Unidos e do Oriente Médio no início deste mês, em preparação para a maior campanha de vacinação em massa da história.

Mas o desenvolvimento em tempo recorde do imunizante provavelmente terá repercussões muito mais amplas.

"É absolutamente extraordinário que essa nova abordagem de vacinação –injetar RNA químico no músculo– tenha ocorrido tão rapidamente e se mostrado tão eficaz", disse Peter Openshaw, professor de medicina no Imperial College de Londres. "Ela abre todo um novo campo de imunologia."

O próximo coronavírus, sugeriu o professor Openshaw, poderá ser atacado ainda mais depressa, pois os laboratórios "terão apenas que reprogramar a síntese química" das vacinas de mRNA existentes. Dezenas de terapias de câncer com mRNA, imunização para doenças raras e tratamentos para HIV e tuberculose poderão agora ser produzidos rapidamente, enquanto os investimentos inundam o campo.

Embora o desenvolvimento de drogas para câncer seja um processo mais lento, as empresas de mRNA "se beneficiarão da enorme base de dados de segurança" acumulada no teste em grande escala da Covid-19, disse o doutor Sahin.

Jovens pesquisadores também serão tentados a experimentar a molécula, disse o professor Huber. "Houve um ciclo de inovação com o DNA", disse ele, "agora é um ciclo de inovação com o mRNA."

Os doutores Tureci e Sahin, que ainda lecionam no hospital universitário e na TRON, não apreciam a atenção que recebem hoje ou os crescentes pedidos para que sejam agraciados com o Prêmio Nobel.

Tampouco gostam de ser usados como suporte político –com manchetes sensacionalistas tratando-os como a história ideal de migrantes bem sucedidos, em vez de se concentrar nos méritos de sua pesquisa.

No mês passado, Armin Laschet, primeiro-ministro do Estado mais populoso da Alemanha e potencial sucessor de Angela Merkel, pediu que o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD) "pense nessas pessoas" quando falar sobre imigração.

A doutora Tureci disse que entende que a dupla "preenche alguns temas em que as pessoas estão interessadas". Mas ela concorda com o doutor Sahin, que diz que prefere "falar sobre ciência" do que sobre o passado do casal.

Se há uma lição maior para a sociedade em seu sucesso, o casal quer que ele reflita o lema da escola de Sahin em Colônia, batizada com o nome do autor infantil Erich Kästner. É: "Es gibt nichts Gutes, außer man tut es" –"Nada de bom acontece se a pessoa não fizer acontecer".

Mais cientistas, dizem eles, precisam se aventurar nos mundos dos negócios, da tecnologia e da educação, e casar sua expertise com aplicação.

Ou, como diz o doutor Sahin: "Nós sempre dizemos que é preciso combinar 'exploração' com a quantidade certa de 'realização'".

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