Há pouco mais de 20 anos, o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) decretava o maior programa de racionamento de eletricidade no país, forçando a economia de energia para recuperar o nível dos reservatórios das hidrelétricas após um período sem chuvas nem investimentos.
O cenário que precedeu aquele momento tinha algumas semelhanças com o atual: reservatórios em níveis mínimos históricos, debates sobre a privatização da Eletrobras e Ministério de Minas e Energia comandado por uma pessoa sem experiência no setor.
Por outro lado, naquela época o país ainda não dispunha do parque termelétrico que vem permitindo ao país passar sem tantos transtornos (mas com elevado custo para o consumidor) por outros períodos de seca severa, frequentes durante os anos 2010.
Assim, para evitar a adoção de rodízios no fornecimento de energia, com cortes compulsórios que poderiam afetar hospitais e a segurança pública, por exemplo, foi necessário implementar um programa de incentivo à redução de consumo até que as barragens voltassem a níveis seguros.
A história é relembrada no livro "Curto Circuito - Quando o Brasil quase ficou às escuras", dos jornalistas Roberto Rockmann e Lúcio Mattos, que cobriram in loco a crise que culminou com uma complexa restruturação do setor elétrico brasileiro. A obra foi lançada nesta terça (18).
Os autores detalham desde as causas da crise, cujos riscos foram minimizados por autoridades que geriam o sistema elétrico nos primeiros anos de privatização do setor, a seus desdobramentos, o principal deles sendo a reforma regulatória do primeiro governo Lula.
Com base nas conclusões de relatório produzido pelo então diretor da ANA (Agência Nacional de Águas), Jerson Kelmann, Rockmann e Mattos pontuam que o problema resultou de um "vácuo" no planejamento, com a redução do papel estatal antes da criação de órgãos para ocupar seu lugar.
O governo Fernando Henrique Cardoso já havia vendido distribuidoras de energia e tentava privatizar a Eletrobras para implantar um modelo de livre mercado. O ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) davam seus primeiros passos.
É difícil evitar uma comparação entre aquele momento e a crise em que o Brasil vive hoje. Não a crise energética, mas a provocada pela pandemia do novo coronavírus, que tem efeitos mais devastadores, com a morte de, até agora, mais de 400 mil brasileiros.
Após um tempo de negação, ajudado pelas chuvas fortes no verão anterior, o governo Fernando Henrique Cardoso criou, em 11 de maio de 2001, a Câmara de Gestão da Crise de Energia, um grupo interministerial que ganhou plenos poderes para propor a estratégia de enfrentamento do problema.
Para isso, se cercou dos mais renomados especialistas no setor elétrico, alguns com acesso livre ao Palácio do Planalto, de onde despachava o líder do grupo, Pedro Parente, que chefiava a Casa Civil do governo Fernando Henrique Cardoso e acabou levando a alcunha de ministro do apagão.
O grupo se reunia ao menos uma vez por semana –e uma vez por mês com a presença do presidente da República. Sete dias após sua criação, anunciou um plano de racionamento que resultou em uma economia média de 15% no consumo de energia durante os nove meses do racionamento.
Houve resistências, incluindo protestos de governadores contra a imposição de feriados, mas a transparência, a oferta de incentivos adequados e o envio de mensagens corretas à população foram fundamentais para o grande apoio popular ao plano.
Parente, dizem os autores, reconhecia que o governo demorou a atacar o problema, ajudado por chuvas fortes em anos anteriores, e dizia que, a partir dali, "tinha de utilizar os símbolos corretos para passar a mensagem à população".
Pesquisa Datafolha de julho daquele ano apontava que 89% dos brasileiros começaram a economizar energia a pedido do governo, mesmo que 54% tenham respondido que não aprovavam o plano de racionamento.
A disposição ao diálogo com especialistas foi fundamental também após a mudança de governo em 2003, quando a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, enfrentou o PT e alguns de seus dogmas econômicos para reformular o setor com base nos aprendizados da crise.
Agora, quase quinze meses após o início da pandemia, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) ainda não conseguiu pôr em prática um esquema articulado de enfrentamento da crise. Pelo contrário, prefere dedicar seu tempo a minimizar o poder do vírus e sabotar as medidas de contenção recomendadas pela ciência.
Linha do tempo
- jul.1995 Privatização do setor tem início com a venda da distribuidora Escelsa (Espírito Santo Centrais Elétricas)
- mai.1996 Eletrobras publica estudo confidencial alertando para dificuldades no abastecimento
- nov.1996 Governo do Rio vende o controle da Cerj (Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro)
- nov.1997 Governo de São Paulo leiloa a CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz)
- dez.1997 Início do funcionamento da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica)
- ago.1998 Acordo do Mercado cria ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e MAE (Mercado Atacadista de Energia)
- set.1998 Governo federal vende sua primeira estatal de energia, a Gerasul
- mar.1999 Dez dias após o início do ONS, blecaute atinge 60 milhões de brasileiros
- jul.1999 Início das operações do Gasoduto Bolívia-Brasil
- fev.2000 Governo anuncia programa para a construção de 49 térmicas
- dez.2000 Blecautes atingem Rio de Janeiro e Santa Catarina
- mar.2001 Após demissão de Rodolfo Tourinho, o senador José Jorge assume o Ministério de Minas e Energia
- abr.2001 Aneel inicia campanha de racionalização de energia
- mai.2001 Governo cria a Câmara de Gestão da Crise de Energia e anuncia o racionamento
- jun.2001 Tem início o racionamento em estados do Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste
- jul.2001 Estados do Norte são incluídos no racionamento
- out.2001 Nordeste tem primeiro feriado para reduzir consumo de energia
- mar.2002 Governo anuncia fim do racionamento
- out.2002 Luis Inácio Lula da Silva vence eleição presidencial
- jan.2003 Dilma Rousseff é nomeada ministra de Minas e Energia
- jul.2003 CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) debate novo modelo do setor elétrico
- jul.2004 Lula sanciona lei que implanta o novo modelo
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