Descrição de chapéu indígenas

Funai dá aval a linhão de energia sem definir compensações com indígenas

Bolsonaro anunciou nesta quarta (29) que última autorização necessária para a obra havia sido obtida

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João Paulo Pires
Boa Vista

Mesmo com o anúncio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em Boa Vista (RR) nesta quarta-feira (29) de que o governo federal havia obtido a última autorização necessária para iniciar as obras do Linhão do Tucuruí, que ligará Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN), os indígenas Waimiri-Atroari afirmam que não foram comunicados sobre a etapa mais recente de licenciamento para a construção.

A Funai liberou o linhão de energia que corta a Amazônia sem antes definir as compensações para as comunidades indígenas. A informação foi antecipada pelo jornal O Estado de S.Paulo.

“Roraima não estava integrada com o resto do Brasil na questão energética. Até que ontem [terça, 28] à noite a ‘cegonha apareceu’. Ontem à noite, o último obstáculo para o início das obras foi vencido. E nós temos uma pedra aqui do lado, a pedra fundamental para o início da construção do linhão”, disse Bolsonaro.

O anúncio foi feito em Roraima, em um dos eventos que celebram os mil dias do governo. Bolsonaro disse ainda que a gestão “tinha pressa em resolver a questão do linhão Manaus-Boa Vista”, pendente há mais de dez anos.

Linha de transmissão de energia elétrica Tucuruí, conhecida como Linhão de Tucuruí - Tarso Sarraf - 20.dez.2012/Folhapress

O advogado da Associação Indígena Waimiri-Atroari (ACWA), Harilson Araújo, afirma que a comunidade não foi respeitada nessa etapa do processo e que todos foram pegos de surpresa com a declaração do presidente.

Em nota, a associação diz que “mais uma vez o governo federal age de forma inadequada, ao arrepio da ordem jurídica posta e do Estado Democrático de Direito”, que desrespeita o Artigo 231 da Constituição (que reconhece como dos indígenas os direitos originários sobre suas terras) e o estabelecido na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre a realização da consulta prévia, livre, informada e de boa-fé destes povos.

A associação afirma ainda que, enquanto não houver aceitação da proposta de compensação apresentada pela comunidade ao governo e à Transnorte Energia S.A, “não serão aceitas quaisquer ações relacionadas à construção da Linha de Transmissão Manaus-Boa Vista por dentro de sua terra indígena”.

Segundo Araújo, os indígenas tomaram conhecimento por meio da imprensa de que o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Xavier, havia emitido ofício do Ibama (Instituto do Meio Ambiente), no qual afirma que “o processo de licenciamento ambiental, incluindo o processo de consulta, foi devidamente realizado, sendo um exemplo de superação na questão de se conciliar o processo de licenciamento”.

“Fomos pegos de surpresa ontem [quarta]. Não recebemos nenhum documento ou ofício da Funai sobre a licença de instalação e nem depois o documento de liberação por parte do Ibama. Não sabíamos de nada disso”, diz o advogado da ACWA.

Ele afirma que, em 11 de agosto, a associação havia proposto que a passagem da linha de transmissão, que atravessa a reserva indígena do povo Waimiri-Atroari em cerca de 122 km, deveria ocorrer sob a condição de que o governo federal respeitasse as compensações socioambientais dos danos causados pela obra.

A proposta apresenta 37 pontos que representam impactos na terra indígena. Destes, 27 são irreversíveis no território, ou seja, vão perdurar no ambiente em que os indígenas vivem. Outros dez são considerados impactos mitigáveis, ou seja, que podem ser reduzidos.

Antes da proposta dos indígenas, o próprio governo federal chegou a produzir um plano básico ambiental (PBA), que teve a participação dos Waimiri-Atroari, para entender a extensão desses impactos em suas terras. No final de 2019, a Empresa Transnorte Energia S.A, atual responsável pela obra do linhão, convocou uma reunião para apresentar a peça às entidades envolvidas.

À época, a própria Funai se manifestou apontando que alguns projetos não teriam como ser executados e que a compensação do PBA não atendia o objetivo proposto para a etnia.

Com a pandemia e a necessidade de isolamento social, o processo atrasou. Mas em reunião prevista por protocolo de consulta, a ACWA entregou ao governo federal a atual proposta —da qual diz nunca ter obtido retorno. Com a surpresa causada pela Funai, a associação acionou o MPF (Ministério Público Federal).

De acordo com Araújo, o documento atende o que os indígenas entendem que seja o mínimo necessário para que suportem os impactos da obra no seu território.

“Isso sequer pode ser considerado uma contraproposta, já que não houve proposta inicial, seja do governo ou da empresa. Infelizmente, um processo que vinha sendo construído de maneira cautelosa, com todas as partes se manifestando, pode não ter acordo com essa precipitação, pois a comunidade não vai dar anuência”, declara o advogado.

Procurado, o MPF afirmou que, considerando os relatos de possível ocorrência de violações à consulta realizada junto aos Waimiri-Atroari, vai apurar a situação para avaliar a adoção de eventuais medidas cabíveis.

Outro lado

O Ibama não quis se pronunciar sobre o caso, alegando que o assunto é de competência da Funai.

A Funai, por sua vez, ratificou o anúncio de Bolsonaro sobre a instalação do empreendimento.

“O processo de licenciamento atendeu às regulamentações nacionais e internacionais, o que incluiu a consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas, bem como o cumprimento do Protocolo de Consulta Waimiri-Atroari, estabelecido pelos indígenas”, afirmou.

A Funai disse ainda que os programas ambientais que buscam mitigar ou compensar os impactos da passagem da linha no território foram definidos entre técnicos da empresa responsável pelo empreendimento e lideranças indígenas, e que a aprovação ocorreu em reunião convocada pela comunidade indígena em agosto.

Roraima é o único estado do Brasil que não está conectado ao SIN. Até 2019, a transmissão de energia do estado vinha da Venezuela, mas foi definitivamente interrompida naquele ano com a crise econômica, social e política no país vizinho.

​Hoje, são mais de 2.600 indígenas do povo Waimiri-Atroari que vivem em 87 aldeias. Toda a etnia vive dentro da terra indígena.

A reportagem não conseguiu contato com a Empresa Transnorte Energia.


Os 37 impactos socioambientais que o linhão de Tucuruí pode causar na terra indígena, segundo a ACWA

  • Geração de expectativas, preocupações e medos
  • Alteração da rotina indígena
  • Pressão sobre a terra indígena
  • Interferência nos serviços de vigilância, monitoramento e saúde da Terra indígena
  • Acidentes e atropelamento da fauna
  • Afugentamento da fauna
  • Aumento do risco de acidentes (pessoas)
  • Aumento na pressão sobre áreas de interesse indígena (castanha, tartaruga etc.)
  • Aumento na pressão sobre retirada de madeira
  • Aumento na pressão de caça e pesca no entorno da T.I
  • Interferência nas atividades de caça indígena
  • Interferência nas fontes de alimentação, artesanato e nas demais áreas de relevância
  • Interferência nas trilhas e rotas tradicionais
  • Perda de cobertura vegetal
  • Indução de processos erosivos
  • Assoreamento e interferência em corpos d'água
  • Contaminação dos solos e corpos hídricos (rios, córregos)
  • Risco de conflitos entre trabalhadores e indígenas
  • Alteração e perda de habitats indireto da perda de cobertura vegetal
  • Aumento da vulnerabilidade relacionado a violência (roubos, sequestros)
  • Aumento de ruídos, vibrações, poeira e poluentes
  • Perturbação de espécies nidificando (ninhos de pássaros)
  • Alteração da paisagem
  • Atropelamento da fauna na BR-174
  • Aumento do risco de acidentes com animais peçonhentos
  • Interferência nas fontes de matéria prima para construções
  • Possibilidade de interferência no patrimônio arqueológico
  • Aumento da pressão de caça e pesca na T.I
  • Risco de propagação de doenças contagiosas
  • Geração de resíduos sólidos
  • Risco de colisão da avifauna (nas linhas de transmissão)
  • Sobreposição de uso territorial
  • Perda de área de uso territorial
  • Risco de acidentes (crianças escalando as torres)
  • Risco de acidentes com a fauna
  • Existência de ruídos da linha de transmissão em funcionamento
  • Potencial aumento de pressão política territorial
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