Lira libera dados da votação da PEC dos Precatórios após descumprir Lei de Acesso

Câmara recusou formalmente informar, por mais de um mês, quais deputados votaram por meio de manobra para aumentar chances de aprovação

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Brasília e São Paulo

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), rejeitou um pedido formal de acesso à informação e se recusou por mais de um mês a divulgar o nome dos parlamentares que só votaram a PEC dos Precatórios graças a uma manobra patrocinada por ele para elevar as chances de aprovação da medida.

Após publicação de reportagem da Folha nesta segunda-feira (13), a presidência da Câmara encaminhou à noite uma lista de oito deputados que teriam votado a PEC de forma remota.

O texto, prioridade do governo Jair Bolsonaro (PL), aliado de Lira, passou em primeiro turno pela Câmara com uma folga de apenas quatro votos.

A recusa do presidente da Câmara de reter essas informações por mais de um mês afronta a Lei de Acesso à Informação (12.527/11). Em seu artigo 32, ela classifica esse tipo de negativa como "condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público (...) recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa".

A atitude também se choca contra o princípio constitucional da transparência na administração pública.

Jair Bolsonaro (PL) e Arthur Lira (PP) durante cerimônia na Câmara dos Deputados - Adriano Machado-24.nov.2021/REUTERS

A votação remota, nos termos definidos por Lira, permitiu que deputados em viagem de missão oficial pudessem votar sem registrar presença no sistema de identificação biométrica do plenário.

A PEC dos Precatórios permite a expansão de gastos públicos e viabiliza o Auxílio Brasil de R$ 400 prometido por Bolsonaro. Na madrugada do dia 4 de novembro, a proposta foi aprovada em primeiro turno na Câmara por 312 votos favoráveis, só 4 a mais do que o mínimo necessário, 308.

Segundo a Câmara, estavam em missão oficial e votaram remotamente, por meio de um aplicativo, os deputados Abílio Santana (PL-BA), Marco Feliciano (PL-SP), Paulo Bengston (PTB-PA), Zé Silva (Solidariedade-MG), Alceu Moreira (MDB-RS​), Carlos Veras (PT-PE), Rodrigo Agostinho (PSB-SP) e Tabata Amaral (PSB-SP).

Os quatro primeiros votaram a favor da PEC. Os quatro últimos, contra. Ou seja, sem esses votos a PEC teria exatamente os 308 votos mínimos para a aprovação --ressaltando que presidentes da Casa não costumam votar e essa conta inclui o voto de Lira.

Ao longo dos últimos quase 40 dias desde a votação da PEC na Câmara, a Folha fez inúmeras tentativas para conseguir os dados da votação e recebeu sucessivas negativas, que culminaram com a recusa formal de acesso aos dados via LAI (Lei de Acesso à Informação).

Ainda no dia 4 a Folha solicitou à área técnica da Câmara o nome dos deputados que votaram sem registrar pessoalmente a presença no plenário.

A primeira informação foi a de que os dados seriam fornecidos, até porque o próprio Lira os mencionou genericamente em entrevista coletiva ainda no dia 4. "Os votos são abertos. Foram seis ou oito deputados viajando, dois a favor e quatro ou cinco contra", disse, na ocasião.

Em um segundo momento, porém, técnicos da Casa afirmaram que Lira havia proibido a divulgação dos dados. Em resposta à Folha sua assessoria disse que o pedido deveria ser encaminhado via LAI, apesar de não haver nenhuma norma que ampare o fornecimento de uma informação pública somente por meio da lei.

Ao colocar esses dados sob sigilo, o presidente da Câmara tem sonegado não só a informação de quantos deputados votaram remotamente por estarem em viagem de missão oficial, mas também se houve parlamentar que não estava em missão oficial e mesmo assim votou sem registrar sua presença em plenário, o que representaria uma burla.

A Folha formalizou o pedido via LAI no dia seguinte, 5 de novembro.

De acordo com a lei, só não havendo possibilidade de concessão imediata das informações é que a resposta será enviada em prazo não superior a 20 dias, prorrogáveis por mais 10.

O registro formal do pedido mostra que o gabinete de Lira barrou o fornecimento imediato da informação pública e determinou que fosse usado o tempo máximo de resposta, ou seja, 30 dias, sem qualquer justificativa para essa demora.

"Assessoria da Presidência solicitou prorrogação conforme despacho no Processo 852.236-2021. Aguardar até 29/11/2021 para registrar a prorrogação", diz apontamento de 18 de novembro da área técnica da Câmara, o que ficou gravado na tramitação do pedido.

Somente na sexta-feira (10), ou seja, 35 dias depois da solicitação, a Câmara encaminhou ofício do gabinete da Presidência da Câmara, sem assinatura, negando o acesso à informação sob o argumento de que ela exigiria "trabalhos adicionais de consolidação de dados e informações".

O governo federal informa que o decreto presidencial 7.724/12, que regulamentou a LAI, estabelece que pedidos que exijam trabalhos adicionais de consolidação de dados e informações têm que ser respondidos, a não ser que o agente público justifique que seu atendimento "compromete significativamente a realização das atividades rotineiras da instituição", acarretando prejuízo injustificado aos direitos de outros solicitantes.

"O órgão deve indicar as razões de fato ou de direito da recusa total ou parcial da demanda, apresentando o nexo entre o pedido e os impactos negativos ao órgão."

A primeira manifestação da assessoria da Câmara, nesta segunda, dizia apenas que a tramitação do processo que resultou em negativa de acesso aos dados via LAI atrasou apenas algumas horas. Segundo a assessoria "o setor responsável pela Gestão das LAIs trabalha com um grande volume de processos, o que demanda rotineiramente um prazo para consolidação de todas as informações".

Já a assessoria da presidência da Câmara prometeu o envio da lista, o que ocorreu durante a noite.

"Vale ressaltar que todas as informações poderiam ser retiradas diretamente do site da Câmara. Os links dos sites foram indicados na resposta. No entanto, isso realmente demanda tempo e trabalho pois todos os links de cada deputado teriam que ser acessados."

Essa informação não é verdadeira, porém. O site da Câmara informa viagem em missão oficial, no período, de deputado que estava em Brasília e votou a PEC presencialmente, assim como não informa ainda viagem oficial de integrantes da lista de 8 nomes encaminhada.

O diretor-executivo da organização Transparência Brasil, Manoel Galdino, afirmou considerar "ilegal" e "absurda" a atitude de Arthur Lira.

"Claramente estão desrespeitando a LAI. Isso deveria estar em transparência ativa, para começo de conversa. Deveriam dar imediatamente essa informação. Eles não podem negar por causa de trabalho adicional sem dizer por que, tem que mostrar concretamente qual é o trabalho adicional que se cria."

Júlia Rocha, coordenadora de Acesso à Informação e Transparência da Artigo 19 —ONG de defesa dos direitos à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo—, vai na mesma linha e afirma considerar o ato "absolutamente irregular".

Ela aponta atitudes semelhantes na gestão de Jair Bolsonaro e cobra uma maior atuação mais incisiva da CGU (Controladoria-Geral da União), órgão do governo responsável pelo monitoramento da aplicação da LAI, para coibir esse tipo de prática.

O professor de direito constitucional da USP Rubens Beçak também afirma considerar o ato da Câmara contrário às leis.

"O povo tem o direito de saber como seus representantes votaram e estão se conduzindo. Tem uma ofensa muito clara ao princípio constitucional da transparência. A liberdade de imprensa e o direito à informação exigem que o povo possa ter acesso aos dados."

Elen Geraldes, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, ressalta o fato de a Câmara ter, além da negativa, usado uma manobra protelatória.

"Não há nada, dentro do escopo da lei, que justifique essa negativa", diz Geraldes, que tem pesquisa de pós-doutorado em Ciência da Informação com o tema Lei de Acesso à Informação.

O episódio soma-se a outro exemplo de falta de transparência na gestão Lira. O presidente da Câmara, ao lado do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), resistiram a liberar os nomes dos parlamentares contemplados com as verbas de Orçamento federal distribuídas pelas chamadas emendas de relator.

Após liminar do Supremo Tribunal Federal determinando a publicidade desses atos, e em meio a idas e vindas, o Congresso prometeu tornar públicas as informações em até seis meses. Relatora do caso no STF, a ministra Rosa Weber estabeleceu prazo de 90 dias para que isso ocorra.

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