EUA enfrentam sua própria tecnologia em armas russas

Restrições mundiais ao envio de tecnologias avançadas para a Rússia estão prejudicando a capacidade militar do país, dizem autoridades americanas

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Ana Swanson John Ismay Edward Wong
Washington | The New York Times

Com lentes de aumento, chaves de fenda e toques delicados de um ferro de soldar, dois homens de uma equipe de investigação que rastreia armas desmontavam cuidadosamente munições e equipamentos russos capturados na Ucrânia.

Durante uma visita de uma semana à Ucrânia no mês passado, os investigadores desmontaram todos os equipamentos militares russos avançados a que tiveram acesso, como pequenos sensores lasers de medição de distância e sistemas de orientação de mísseis de cruzeiro.

Os pesquisadores, convidados pelo serviço de segurança ucraniano a analisar independentemente equipamentos avançados russos capturados, descobriram que quase todos eles incluem componentes fornecidos por empresas sediadas nos Estados Unidos e na União Europeia: chips, placas de circuito, motores, antenas e outros equipamentos.

Soldado ucraniano examina estágio de propulsão de míssil balístico russo caído em campo
Soldado ucraniano examina estágio de propulsão de míssil balístico russo caído em campo - Yasuhyoshi Chiba - 25.abr.22/AFP

"Os sistemas avançados de armas e comunicações russos foram construídos em torno de chips ocidentais", disse Damien Spleeters, um dos investigadores da Conflict Armament Research, que identifica e rastreia armas e munições. Ele acrescentou que empresas russas desfrutaram de acesso irrestrito à tecnologia ocidental por décadas.

As autoridades americanas há muito se orgulham da capacidade de seu país para fornecer tecnologia e munições ao resto do planeta. Mas desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, no final de fevereiro, os Estados Unidos vêm enfrentando uma realidade desagradável: as ferramentas que as forças russas vêm usando para travar sua guerra muitas vezes são acionadas pela inovação americana.

Os Estados Unidos e dezenas de outros países recorreram a restrições de exportações para cortar os embarques de tecnologia avançada, o que prejudica a capacidade russa de produzir armas para substituir aquelas que foram destruídas na guerra, de acordo com representantes de governos europeus e dos Estados Unidos.

Na quinta-feira (2), o governo Biden anunciou novas sanções e restrições contra a Rússia e Belarus, acrescentando 71 organizações a uma lista governamental que as proíbe de adquirir tecnologia avançada. O Departamento do Tesouro americano também anunciou sanções contra uma administradora de iates que atende os oligarcas russos.

Embora alguns analistas tenham pedido cautela quanto a extrair conclusões precipitadas, afirmando que as medidas ainda não atingiram seu efeito pleno, o governo Biden as define como um sucesso. Desde que os aliados ocidentais anunciaram restrições extensas à exportação de semicondutores, computadores, lasers, equipamento de telecomunicações e outros bens, em fevereiro, a Rússia vem enfrentando dificuldades na obtenção de chips para reabastecer seu suprimento de munições guiadas de alta precisão, de acordo com um funcionário importante do governo americano, que, como a maioria dos entrevistados para este artigo, pediu que seu nome não fosse mencionado, já que estava falando de assuntos de inteligência.

Na terça-feira (31), quando questionada se as forças armadas russas estavam sendo paralisadas pela escassez de insumos, a secretária do Comércio americana, Gina Raimondo, que supervisiona os controles de exportação, declarou que a resposta era "categoricamente sim".

"As exportações dos Estados Unidos à Rússia nas categorias sobre as quais temos controles de exportação caíram em 90% de 24 de fevereiro para cá", disse Raimondo. "Com isso, sim, o efeito é paralisante".

As restrições bloqueiam a exportação direta de tecnologia e de dezenas de países parceiros à Rússia. Mas também vão além das tradicionais sanções impostas pelo governo americano em tempo de guerra, ao impor limitações a certos bens de alta tecnologia que são fabricados em outras partes do mundo mas usam maquinaria, software ou projetos americanos. Isso significa que países que não fazem parte da coalizão de sanções entre os Estados Unidos e a Europa também precisam seguir as regras, ou podem se ver submetidos a sanções.

A Rússia deixou de publicar dados mensais sobre comércio internacional, desde a invasão, mas dados alfandegários de seus grandes parceiros comerciais demonstram que os embarques de componentes e peças essenciais caíram acentuadamente. De acordo com dados compilados por Matthew Klein, pesquisador econômico que estuda os efeitos de controles de exportação, as importações russas de produtos industrializados das nove grandes economias sobre as quais existem dados disponíveis caíram em 51% em abril, ante a média de setembro a fevereiro.

A Rússia é um dos maiores exportadores mundiais de armas, especialmente para a Índia, e sua indústria depende de insumos importados. Em 2018, fornecedores russos satisfizeram apenas cerca de metade das necessidades do país em termos de equipamentos e serviços para as forças armadas, incluindo equipamento de transporte, computadores, equipamento óptico, maquinaria, metal laminado e outros bens, de acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) compilados por Klein.

O restante do equipamento e serviços usados pela Rússia foi importado, com cerca de um terço vindo dos Estados Unidos, Europa, Japão, Taiwan, Austrália e outros governos parceiros que, juntos, impuseram sanções a Moscou.

Funcionários do governo americano dizem que, em companhia da ampla variedade de outras sanções que restringem ou desencorajam relações comerciais, os controles de exportação provaram ser altamente efetivos. Eles apontaram para as fábricas russas de tanques, que licenciaram trabalhadores e enfrentam escassez de componentes. O governo dos Estados Unidos também recebeu relatórios de que as forças armadas russas estão enfrentando dificuldades para encontrar peças de reposição para satélites, equipamentos eletrônicos de aeronáutica e sistemas de visão noturna, disseram os entrevistados.

As restrições tecnológicas também prejudicaram outros setores da economia da Rússia, segundo os representantes do governo americano. O equipamento do setor de petróleo e gás natural se deteriorou, a manutenção dos tratores e veículos pesados produzidos pela Caterpillar e John Deere foi suspensa, e até 70% dos aviões comerciais operados pelas companhias de aviação russas estão parados, porque deixaram de receber peças sobressalentes da Airbus e Boeing, de acordo com os funcionários americanos.

Mas alguns especialistas recomendam cautela. Michael Kofman, diretor de estudos sobre a Rússia do instituto de pesquisa CNA, na Virgínia, expressou ceticismo sobre as afirmações de que os controles de exportação haviam forçado algumas fábricas de tanques e outras empresas do setor de produtos de defesa russo a fechar temporariamente as portas.

"Não houve provas suficientes para substanciar as informações de que há problemas na indústria de defesa russa", ele disse. Ainda é cedo demais na guerra para esperar problemas significativos de cadeia de suprimento nas indústrias de defesa russas, ele afirmou, e as fontes quanto às afirmações iniciais a esse respeito não são claras.

Representantes da administração americana dizem que o governo e empresas da Rússia vêm procurando maneiras de contornar os controles, mas até agora em geral sem sucesso. O governo Biden ameaçou penalizar qualquer empresa que ajude a Rússia a contornar as sanções, cortando seu acesso à tecnologia americana.

Em entrevista no mês passado, Raimondo disse que os Estados Unidos não estavam vendo qualquer esforço sistemático de contornar as sanções, por parte de qualquer país, o que inclui a China, que se alinhou à Rússia antes da e durante a invasão da Ucrânia. Algumas empresas decidiram por conta própria não se envolver com a Rússia, a despeito de o país estar "tentando ao máximo contornar as ações" da coalizão mundial de aliados que impôs controles de exportação, disse Raimondo.

"O mundo sabe com que seriedade nós, e nossos aliados, estamos determinados a reprimir qualquer violação", ela disse. "Haverá consequências reais para qualquer empresa ou país que tente escapar aos nossos controles de exportação".

Dados sobre o comércio internacional chinês também apontam que a maioria das companhias do país está respeitando as restrições. Ainda que a China tenha continuado a comprar energia russa, as exportações chinesas à Rússia caíram acentuadamente desde a invasão.

Mas Spleeters disse que as forças armadas russas usaram métodos criativos para contornar restrições passadas à importação de tecnologia – recorrendo a companhias de fechada, distribuidores civis ou terceiros países para comprar produtos estrangeiros, por exemplo -, e que podem recorrer aos mesmos métodos para contornar as sanções.

A pesquisa de Spleeters revelou esforços de alguns agentes para disfarçar a presença de tecnologia ocidental em equipamento russo. Durante sua visita à capital ucraniana, Spleeters e seu colega desmontaram três rádios criptografados Azart, que oferecem canais de comunicação seguros às forças armadas russas.

Eles descobriram que os dois primeiros continham chips nos quais as marcas de fabricação haviam sido cuidadosamente apagadas, aparentemente como parte de um esforço para disfarçar sua origem. Mas dentro do terceiro rádio, eles encontraram um chip idêntico que havia escapado às atenções dos censores russos, e constataram que a peça tinha sido fabricada por uma empresa sediada nos Estados Unidos. (Spleeters disse que sua organização não divulgaria os nomes dos fabricantes até que ele envie solicitações de informação a cada empresa, perguntando como seus produtos foram parar nas mãos das forças armadas russas.)

Spleeters disse que não estava claro quem havia alterado as marcações dos componentes, ou quando os chips tinham sido entregues à Rússia, embora tenha dito que a tentativa de disfarçar a origem foi intencional. Em 2014, depois da invasão russa à Crimeia, os Estados Unidos impuseram restrições, em boa parte unilaterais, quanto à transferência para a Rússia de itens de alta tecnologia que pudessem reforçar as capacidades militares do país.

"As peças foram apagadas cuidadosamente, talvez com uma ferramenta, para apagar uma linha de informações", disse Spleeters. "Alguém sabia exatamente o que estava fazendo".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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