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Conheça os 'recicladores de xixi', alternativa aos fertilizantes químicos

Urina humana tem os nutrientes de que as plantações precisam

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Catrin Einhorn
Brattleboro (Estados Unidos) | The New York Times

Quando Kate Lucy viu um cartaz na cidade convidando as pessoas a aprender sobre algo chamado "peecycling", ela ficou perplexa –reciclagem de xixi? "Por que alguém faria xixi numa jarra e o guardaria?", imaginou. "Parece uma ideia maluca."

Ela teve que trabalhar na noite da sessão de informações, então mandou seu marido, Jon Sellers, para saciar sua curiosidade. Ele voltou para casa com um jarro e um funil.

A urina humana, Sellers descobriu naquela noite, sete anos atrás, está cheia dos nutrientes necessários para as plantas florescerem. Na verdade, tem muito mais do que o "número dois", com quase nenhum dos patógenos (bactérias que causam doenças).

Um funil para coleta de urina na casa de Kate Lucy e Jon Sellers - John Tully/NYT

Os agricultores normalmente aplicam esses nutrientes –nitrogênio, fósforo e potássio– às plantações na forma de fertilizantes químicos. Mas isso tem um alto custo ambiental, em combustíveis fósseis e mineração.

O grupo local sem fins lucrativos que realizou a sessão, o Rich Earth Institute, estava trabalhando numa abordagem mais sustentável: as plantas nos alimentam; nós as alimentamos. Iniciativas como essas são cada vez mais urgentes, dizem os especialistas.

A invasão da Ucrânia pela Rússia agravou a escassez mundial de fertilizantes, o que está levando os agricultores ao desespero e ameaçando o abastecimento de alimentos. Os cientistas também alertam que alimentar uma população global crescente num mundo em mudança climática se tornará cada vez mais difícil.

Hoje, depois de terem doado quase 4.000 litros de urina, Lucy e seu marido fazem parte de um movimento global que busca enfrentar uma série de desafios –que incluem segurança alimentar, escassez de água e saneamento inadequado– não desperdiçando nossos resíduos.

No início, coletar a urina em um jarro foi "um pouco desagradável", disse Lucy. Mas ela era enfermeira e ele, professor de pré-escola; fazer xixi não os assustou. Eles deixavam alguns contêineres toda semana na casa de um organizador, mas depois instalaram tanques em sua casa, que são bombeados profissionalmente.

Agora Lucy sente uma pontada de remorso quando usa um banheiro comum. "Fazemos esse fertilizante incrível com nossos corpos e depois o eliminamos com galões de outro recurso precioso", disse Lucy. "Isso é realmente louco de se pensar."

Kate Lucy e Jon Cellers com seus filhos, Josephine, cinco anos, Coleman, três, e Violet, nove meses; família participa do programa de reciclagem de urina - John Tully/The New York Times

Os banheiros são de fato a maior fonte de uso de água dentro das casas, segundo a Agência de Proteção Ambiental. Uma gestão mais racional poderia economizar grande quantidade de água, uma necessidade urgente à medida que as mudanças climáticas agravam a seca em diversos lugares.

Também pode ajudar com outro problema profundo: os sistemas de saneamento inadequados –incluindo fossas sépticas com vazamento e infraestrutura de esgoto envelhecida– sobrecarregam rios, lagos e águas costeiras com nutrientes da urina. O escoamento de fertilizante químico piora a situação.

O resultado é a proliferação de algas que desencadeiam a morte em massa de animais e outras plantas.
Em um exemplo dramático, os peixes-bois na Lagoa do Indian River, na Flórida, estão morrendo de fome depois que a proliferação de algas alimentadas por esgoto destruiu as ervas marinhas de que os mamíferos dependem.

"Os ambientes urbanos e aquáticos tornam-se horrivelmente poluídos, enquanto os ambientes rurais estão esgotados do que precisam", disse Rebecca Nelson, professora de ciência de plantas e desenvolvimento global na Universidade Cornell.

Além dos benefícios práticos de transformar urina em fertilizante, algumas pessoas também são atraídas por uma ideia transformadora incluída no empreendimento.

Ao reutilizar algo que era descartado, elas dizem que estão dando um passo revolucionário para enfrentar as crises de biodiversidade e climática: afastando-se de um sistema que constantemente extrai e descarta, em direção a uma economia mais circular, que reutiliza e recicla continuamente.

O fertilizante químico está longe de ser sustentável. A produção comercial de amônia, que é usada principalmente em fertilizantes, consome combustíveis fósseis de duas maneiras: primeiro como fonte de hidrogênio, necessário para o processo químico que converte o nitrogênio do ar em amônia, e depois como combustível para gerar o calor intenso necessário.

Segundo uma estimativa, a fabricação de amônia contribui com 1% a 2% das emissões globais de dióxido de carbono. O fósforo, outro nutriente essencial, é extraído da rocha, cujo suprimento é cada vez menor.

Do outro lado do Atlântico, na zona rural do Níger, outro estudo de fertilização com urina foi criado para abordar um problema mais local: como as agricultoras podem aumentar a produtividade das colheitas? Muitas vezes relegadas aos campos mais distantes da cidade, as mulheres lutavam para encontrar ou transportar adubo animal suficiente para reabastecer seus solos. O fertilizante químico era muito caro.

Uma equipe que inclui Aminou Ali, diretor da Federação dos Sindicatos dos Agricultores Maradi, no centro-sul do Níger, adivinhou que os campos relativamente férteis mais próximos das casas das pessoas estavam recebendo uma ajuda dos moradores que faziam suas necessidades do lado de fora.

Eles consultaram médicos e líderes religiosos sobre se seria adequado tentar a fertilização com urina e receberam a aprovação. "Então nós dissemos: 'Vamos testar essa hipótese'", lembrou Ali.

Demorou um pouco, mas no primeiro ano, 2013, eles tiveram 27 voluntários que coletaram urina em jarros e aplicaram em plantas junto com esterco animal; ninguém estava disposto a arriscar sua colheita apenas com xixi.

Arthur Davis, pesquisador e diretor de programa do Rich Earth Institute, preparou um caminhão de coleta de urina para suas rondas em maio - John Tully/NYT

"Os resultados que obtivemos foram fantásticos", disse Ali. No ano seguinte, aproximadamente mais cem mulheres estavam fertilizando dessa forma, depois mil. A pesquisa de sua equipe descobriu que a urina, com esterco animal ou sozinha, aumentou a produção de milheto, a cultura básica, em cerca de 30%.

Isso pode significar mais comida para uma família ou a capacidade de vender o excedente no mercado e obter dinheiro para outras necessidades. Era tabu para algumas mulheres usar a palavra "urina", então a renomearam para "oga", que significa "chefe" na língua igbo.

Para pasteurizar o xixi, ele fica no jarro por pelo menos dois meses antes de o agricultor aplicá-lo, planta por planta. A urina é usada pura se o solo estiver úmido, ou, se estiver seco, diluído com uma parte igual de água para que os nutrientes não queimem as plantações. Lenços ou máscaras são aconselhados para reduzir o cheiro.

No início, os homens estavam céticos, disse o agrônomo Hannatou Moussa, que trabalha com Ali no projeto. Mas os resultados falaram por si, e logo eles também começaram a guardar urina. "Agora se tornou uma competição em casa", disse Moussa.

Ao entender a dinâmica, algumas crianças começaram a pedir dinheiro ou doces em troca do serviço, acrescentou. As crianças não são as únicas que veem o potencial econômico. Alguns jovens agricultores empreendedores começaram a coletar, armazenar e vender urina, disse Ali, e o preço disparou nos últimos dois anos, de cerca de US$ 1 por 25 litros para US$ 6.

"Você pode pegar sua urina como se estivesse pegando um galão de água ou um galão de combustível", disse Ali. Até agora, a pesquisa sobre a coleta e embalagem dos nutrientes da urina não avançou o suficiente para resolver a atual crise de fertilizantes. A coleta de urina em escala exigiria, por exemplo, mudanças transformadoras na infraestrutura de encanamento.

Um dos maiores problemas, porém, é que não faz sentido ambiental ou econômico transportar urina, que é principalmente água, das cidades para fazendas distantes.

Kim Nace, cofundadora do Rich Earth Institute, com um tanque de coleta do lado de fora de sua casa em Brattleboro - John Tully/NYT

Para resolver isso, o Rich Earth Institute está trabalhando com a Universidade de Michigan em um processo para fazer um concentrado de xixi higienizado. E em Cornell, inspirados pelos esforços no Níger, Nelson e colegas tentam ligar os nutrientes da urina ao biocarvão, um tipo de carvão feito de fezes.

(É importante não esquecer o cocô, observou Nelson, porque contribui com carbono, outra parte importante do solo saudável, juntamente com quantidades menores de fósforo, potássio e nitrogênio.)

Um agricultor em Dummerston, Vermont, rebocou um aplicador cheio de urina pasteurizada - John Tully/NYT

Experimentos semelhantes e projetos-piloto estão em andamento em todo o mundo. Na Cidade do Cabo, na África do Sul, cientistas estão encontrando novas maneiras de coletar os nutrientes da urina e reutilizar o restante.

Em Paris, as autoridades planejam instalar banheiros separadores de xixi em 600 novos apartamentos, tratar a urina e usá-la em viveiros de árvores e nos espaços verdes da cidade.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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