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Glorify põe a devoção cristã no mundo das startups

Empresa britânica comemora 10 milhões de usuários, metade deles no Brasil, e não descarta virar meio de pagamento

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Márvio dos Anjos
Rio de Janeiro

O britânico Henry Costa, 35, conta que passou quatro anos na África trabalhando numa fintech que oferecia serviços financeiros para a população de baixa renda em países como a Zâmbia. Casado e pai de três filhos pequenos, o ex-militar afirma que a rotina de orações da família estava bastante atribulada.

"Tentávamos praticar diariamente a citação [leitura bíblica] e o devocional, que era algo realmente importante para nós. Mas com o dia bastante atarefado, cada um com seu trabalho, encontrar o tempo e os recursos era bem difícil, além da disciplina em um mundo tão conectado. Lembro-me de virar para a minha esposa e falar: por que a tecnologia não pode nos ajudar a fazer isso?", afirma Costa à Folha, por email.

Antiquada para muitos, a preocupação já tinha suscitado investimentos semelhantes no mundo islâmico, em que aplicativos que avisam a hora das cinco orações diárias são comuns. No cristianismo, ela se tornou insight em 2019, quando Costa fundou, ao lado do também britânico Ed Beccle, a startup Glorify.

Ilustração mostra a tela de um celular sobre um fundo azul. Na tela vê-se um sol cor de laranja com raios largos de cor ocre, um halo azul sobre ele e duas estreitas nuvens brancas. Duas mãos cor de rosa se estendem para o sol, como se o quisessem pegar, mas também como se estivessem em oração
Catarina Pignato

Trata-se de um aplicativo de celular que –além do trocadilho óbvio com o Spotify– funciona como lembrete da prática religiosa diária, fornecendo leituras, poemas e músicas de inspiração cristã, de forma a combater a ansiedade dos tempos atuais. Se a ideia parece simples, a execução impressiona: o app já soma 10 milhões de usuários no mundo.

Baseada em Londres e com operações em Nova York e San Francisco, a empresa já nasceu com pedigree: Henry é filho de Ken Costa, 73, banqueiro sul-africano de investimentos que reside há décadas no Reino Unido. Conhecido filantropo evangélico e escritor com quatro livros sobre estratégias cristãs de trabalho e liderança, Ken presidiu a gestora de bens Lazard, foi consultor de figurões como o bilionário Mohamed Al Fayed e mantém ótimas relações no Oriente Médio –chegou a ser enviado especial do ex-premiê Boris Johnson para intensificar tratativas com o reino dos Salman. Foi nesse ambiente que Henry despontou como uma liderança cristã com tino para os negócios.

Tantos foram os sinais que o mercado de venture capital já deu suas bênçãos à percepção de valor do Glorify. A startup obteve dois aportes de US$ 40 milhões (R$ 213 milhões): a primeira rodada se deu em dezembro de 2021, com investimentos liderados pela empresa de venture capital Andreesen Horowitz, com participação do SoftBank e até do clã de celebridades Kardashian e do cantor Michael Bublé. O segundo aporte de US$ 40 milhões ocorreu em março deste ano, com nova entrada do Softbank.

Se há um país ao qual o Glorify é grato, é o Brasil. Só neste ano, a empresa comemorou a chegada de 4 milhões de usuários brasileiros, entre quem o consome de forma gratuita e quem paga o plano mensal (R$ 12,49) ou o anual (R$ 149,90). Hoje, cerca de 5 milhões de usuários são brasileiros, de acordo com a empresa.

"O Brasil é um país muito importante para nós, uma população incrível, com uma incrível penetração no mercado cristão. Vemos um enorme crescimento no Brasil, por isso estamos muito animados para continuar investindo", afirma Costa. Segundo a startup, 54% dos usuários utilizam o app entre 6 e 7 vezes por semana.

Para quem se importa com qual tradução da "Bíblia" está lendo, a versão em português oferece trechos bíblicos extraídos apenas da Nova Versão Internacional (NVI), uma edição consagrada entre várias denominações do público evangélico por sua clareza e boa sonoridade. Já em inglês, o Glorify conta com outras duas traduções, além da própria NVI.

Mas é na abordagem da música que o Glorify revela sua maior brasilidade. No serviço pago, além de narração da leitura do dia, "adoração diária completa" e acesso a conteúdo exclusivo, também funciona um streaming musical de bem-estar. Parte da estratégia de divulgação do app já envolveu patrocínio de festivais musicais online e a criação de um podcast, apresentado pela cantora e compositora gospel Lu Alone.

Mas há desafios. Como se manter amplo o suficiente sem soar muito identificado com alguma denominação cristã específica, o que poderia afugentar outros fiéis?

"Esta é uma das coisas mais difíceis quando você embarca no que estamos fazendo, e é um dos nossos pontos fortes: construir algo sem denominação e sem política, com conteúdo independentemente da igreja ou afiliação", afirma Costa. Segundo ele, o Glorify formou um conselho teológico com pessoas de diferentes origens e habilidades, a fim de poder ajudar a empresa a criar "algo neutro". "Estruturamos tudo para cristãos, não pretendemos ter uma opinião. Temos PhDs e muita gente engajada para nos ajudar a criar o melhor conteúdo neutro possível."

Um exemplo dessa neutralidade é a preferência por imagens da natureza e paisagens serenas em vez de iconografia tipicamente cristã —não se veem cruzes no aplicativo, por exemplo. Como a presença de santos católicos desagradaria evangélicos, as citações que surgem vêm principalmente de autores modernos, como coaches e pastores evangélicos americanos.

"Acho que acabamos de começar. O setor da fé ainda tem uma longa jornada, muitos anos pela frente, com muitos produtos a serem desenvolvidos. Ele apenas começou." Indagado pela Folha se projeta a transformação do Glorify como meio de pagamento, ambição comum nas startups da attention economy, Costa não descarta a aplicação entre as igrejas e seus fiéis.

"A filantropia, as causas de doação e as instituições de caridade são muito importantes para os cristãos, e se o Glorify puder ajudá-los, será um passo à frente."

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