Patrões são suspeitos de ficar com benefício de idosa mantida havia 27 anos em situação de escravidão

Nomes dos suspeitos não foram divulgados pela PF

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Ribeirão Preto

Uma ação de auditores e do Ministério Público do Trabalho resgatou uma idosa de 82 anos que, de acordo com o órgão, vivia em trabalho análogo à escravidão havia 27 anos em uma casa localizada em um bairro nobre de Ribeirão Preto (333 km de São Paulo).

Segundo a investigação, os patrões sacavam o benefício previdenciário da vítima sem repassá-lo a ela. A Polícia Federal não informou o nome do advogado nem do casal suspeito do crime.

Conforme a denúncia, a vítima morou quase três décadas em um quartinho de empregada com banheiro anexo à mansão dos patrões, na Ribeirânia, bairro nobre da cidade do interior de São Paulo, e trabalhava sem folga semanal ou férias. Também ajudou a criar os filhos dos patrões, hoje médicos.

Analfabeta e trabalhadora doméstica desde a infância, a vítima passou por três patroas e teria sido "cedida", como um pertence, à atual empregadora por uma amiga, segundo os investigadores.

idosa negra com rosto ocultado
Idosa de 82 anos, que nunca recebeu salário, foi resgatada por trabalho análogo à escravidão em casa de bairro nobre em Ribeirão Preto (SP) - Ministério Público do Trabalho

O procurador Henrique Correa afirmou nunca ter visto em sua carreira "um caso tão cruel": "Ela tinha uma rotina espartana de afazeres na casa, não sabia usar um celular. Fora o chamado ‘dano de existência aniquilada’, porque essa pessoa não teve chance de ter uma vida digna". Ela contou aos auditores que não saía e nunca teve relacionamentos.

Segundo MPT, os patrões também fraudavam o sistema previdenciário e retinham o benefício para custear os gastos da vítima na casa. De acordo com a idosa, a patroa afirmava que guardava o dinheiro para comprar uma casa para ela.

A auditora fiscal do Ministério do Trabalho Jamile Freitas Virginio afirmou tratar-se de um caso clássico de trabalho escravo contemporâneo, com negação da pessoa como um sujeito de direito.

"Tínhamos um abuso de uma situação de vulnerabilidade, uma retenção salarial, uma negação sistemática de todos os direitos trabalhistas. Mesmo o descanso semanal não era respeitado como deveria, as férias não eram concedidas", disse Virginio.

A Justiça determinou um bloqueio de bens do casal no valor de R$ 815,3 mil e a transferência de venda de um veículo pertencente aos réus foi impedida. O artigo 149 do Código Penal estabelece para quem comete crime de trabalho análogo à escravidão reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.

detalhe de pés de idosa de 82 anos
Detalhe de pés de idosa de 82 anos; patrões sacavam benefício previdenciário sem repassar valor a ela, segundo denúncia - Ministério Público do Trabalho

A reportagem procurou a mulher que seria supostamente a empregadora em uma das unidades de saúde onde ela trabalha, sem sucesso.

Uma vizinha que pediu anonimato afirmou à Folha ter reconhecido a doméstica pelas fotos na imprensa. Ela disse que a idosa, sempre maltrapilha e com chinelos gastos, lhe pedia itens básicos como medicamento para dor e sabão para lavar as roupas.

O muro de uma casa onde supostamente viviam os suspeitos e a idosa foi pichado com a palavra "escravista". O local foi vandalizado na madrugada desta quinta-feira (8).

Pelo relato de vizinhos, o casal não é visto há algum tempo —o processo teve início em fins de outubro.

A suspeita chegou a afirmar que a empregada era "como se fosse da família", segundo a investigação. De acordo com auditoria fiscal do Ministério do Trabalho, a trabalhadora, porém, não era convidada para eventos familiares, como casamentos ou formaturas.

"Perguntei [à idosa]: Ela é sua amiga? E ela disse que era patroa, e não tinha amizade, não", disse o procurador.

Foram dados dois dias para a apresentação da documentação, mas não havia recibos de direitos trabalhistas, previdência ou qualquer tipo, mesmo informais, de pagamento de salário. A médica apresentou apenas um registro tardio dos últimos cinco anos e o pagamento de R$ 5.000, considerado ínfimo diante do prejuízo causado à vítima.

A polícia ouviu os envolvidos e outros três funcionários da casa (um faz-tudo, um jardineiro e uma diarista) e, segundo Pereira, todos recebiam salário.

A idosa, depois de resgatada e de entender a situação, pediu para voltar à casa da família, em Jardinópolis, onde a Assistência Social da cidade tem lhe oferecido amparo psicológico. Não foram constatados maus-tratos, mas práticas assediadoras com "trabalho forçado" ou "trabalho em condições degradantes".

"Existia a falsa promessa da casa e isso prende muito o trabalhador. Se for embora, não recebe mesmo. Ela tinha o sonho de ter uma casa em recompensa por todos esses anos de trabalho, e expressava isso, tinha essa crença muito forte de que a receberia da empregadora", conta Virginio.

Segundo o delegado da PF Marcelo Pereira, o inquérito já está em andamento e deve ser concluído até o final de dezembro, quando será encaminhado ao Ministério Público Federal. O artigo 149 do Código Penal estabelece, para quem comete crime de trabalho análogo à escravidão, pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.

O procurador Henrique Correa disse que, além da tentativa de fuga e agressividade desproporcional para a abordagem feita na casa, a médica também deu outros sinais de que havia algo errado.

"Outros casos tem mais ou menos essa mesma linha de que a pessoa tem problemas psíquicos, então: 'ah, ela está aqui em casa porque eu ajudo, ela não arruma serviço em outro lugar'. Diversas vezes a empregadora disse: ‘ela não arruma serviço em outro lugar porque ela bebe’", diz Correa.

Segundo a auditora Jamile Freitas Virgínio, a patroa parecia considerar a exploração do trabalho da idosa como uma forma válida de ajuda. "É [como se fosse] uma caridade. Usava isso de ‘estou fazendo uma caridade com uma pessoa idosa que ninguém quer’, mas estava lá todos os dias trabalhando e servindo muito bem a família, passando, cozinhando".

Quem encontrar pessoas em situação similar, pode fazer denúncia de forma anônima pelo site https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br.

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