Denúncias de trabalho escravo doméstico duplicam após lançamento de A Mulher da Casa Abandonada

Novos casos costumam ser identificados após divulgação de resgates

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Curitiba

Denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão aumentaram 123% desde o lançamento de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha sobre a história de Margarida Bonetti, brasileira acusada de manter uma empregada em condições análogas à escravidão durante 20 anos nos EUA.

Levantamento do MPT (Ministério Público do Trabalho) mostra que a média mensal passou de 7 para 16 denúncias após o dia 8 de junho, reforçando que a divulgação de casos de resgate pode influenciar o combate à escravidão contemporânea.

No período de cinco meses entre 1º de janeiro e 7 de junho, foram 36 denúncias, 12 a mais do que as 24 registradas no mês e meio que sucedeu o lançamento do podcast.

No estado de São Paulo, as denúncias quadruplicaram, com a média passando de 0,6 para 2,66 por mês.

A coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT, Lys Sobral Cardoso, diz que não há certeza dos motivos para o aumento, mas que o assunto estar em pauta certamente teve influência.

​"O fato de que o tema ganhou as redes sem dúvida influenciou esse aumento, o que é muito positivo, no sentido de estimular mesmo a sociedade a se apropriar do conceito de que a escravidão é um tema atual, de que a exploração ainda existe e de que é muito necessário que os órgãos de fiscalização recebam denúncias", diz Cardoso.

"Inclusive porque o trabalho escravo doméstico é uma das formas mais invisibilizadas de escravidão contemporânea", diz a procuradora, que cita que a tolerância social e o fato de a exploração ocorrer dentro de residências tornam a situação mais difícil de ser flagrada ou denunciada.

Imagem mostra uma mulher negra sentada em um sofá, com as mãos entre as pernas. Seu rosto não aparece. Ela foi vítima de trabalho escravo doméstico.
Divulgação de casos de escravidão podem incentivar denúncias. Na imagem, Silvana, que passou mais de 30 anos numa casa de família e foi resgatada pela fiscalização do governo federal de combate ao trabalho escravo - Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

Ela afirma que a repercussão dada pela mídia é de extrema importância, e cita caso em que trabalhou recentemente, de Madalena Santiago, da Bahia. Cardoso relata que a mídia foi fundamental no resgate da empregada doméstica, que viveu 54 anos de seus 62 anos em regime análogo à escravidão.

"Quando fomos entrevistar Madalena e a vizinha que a acolheu quando saiu do sítio onde ela trabalhou, elas relataram que quando viram o caso de Madalena Gordiano, de Minas Gerais, no Fantástico, entenderam que os casos eram muito semelhantes, e a vizinha amiga dela a estimulou a ir na Procuradoria do Trabalho em Salvador. E assim foi feito, a partir disso que as equipes chegaram lá."

"Hoje ela já é idosa, uma pessoa com sequelas de todos os tipos, mas com esperança de reconstruir a vida", relata a procuradora.

Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, declara que é comum aumento de denúncias nos dias que sucedem a realização ou divulgação de operações e também cita o caso de Madalena Gordiano, retratado no quinto episódio de A Mulher da Casa Abandonada.

Madalena Gordiano, que passou 38 anos em condições análogas à escravidão, segura a boneca de tricô que ganhou de um promotor federal após ser resgatada - Joel Silva - 19.jan.21/UOL

"Especialmente em casos de trabalho escravo doméstico é comum receber além do relato da situação, um relato do tipo 'situação muito parecida com a trabalhadora da matéria do Fantástico', bem na época da Madalena", explica.

Krepsky também atribui à grande repercussão do caso de Madalena o aumento de resgates de 2020 para 2021. Foram 27 vítimas resgatadas em 2021, enquanto em 2020 foram três trabalhadoras encontradas nessa condição, como informa relatório da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).

Imprensa deve adotar cuidados ao relatar casos

Cardoso diz que a imprensa deve adotar vários cuidados ao relatar casos de escravidão contemporânea.

"É importante entender que tem de ter um respeito, e isso tanto à pessoa que foi vítima mas ao próprio estado de direito. Existe um devido processo legal, e a pessoa que explorou também tem direito, está na Constituição que tem direito a provar, a mostrar elementos de como a circunstância aconteceu, então ter isso em mente já conduz a um bom caminho", declara.

Segundo ela, os cuidados ao lidar com a história da vítima têm de ser redobrados. "A pessoa já passou por violência, então os cuidados têm de ser redobrados na forma de abordar, entender que a pessoa passou por uma vida inteira às vezes de violência de vários tipos, e respeitar também que ela se manifeste", diz a procuradora.

Uma mulher negra está sentada em um sofá, de costas para a câmera, com a mão no rosto. Ela foi vítima de trabalho escravo doméstico
Repercussão de casos de trabalho escravo doméstico motivou outras denúncias, como o caso de Madalena Goldiano, no final de 2020. Na imagem, Silvana, resgatada em 2022 - Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

"É difícil, porque ao dar divulgação, acaba que expõe mesmo a pessoa, a violência que ela sofreu, é inevitável."

Em relação à exposição, Krepsky recomenda não divulgar o nome do trabalhador resgatado, caso seja seu desejo, como fez Chico Felitti ao relatar o crime no podcast A Mulher da Casa Abandonada sem o nome da vítima. "Muitas vezes, saem da situação com algumas ameaças, alguns traumas, e não vale a pena colocar ele em exposição dessa forma."

"Cada pessoa vai reagir de um jeito a essa violação de direitos, algumas preferem falar, outros, após o resgate e a reparação de direitos, preferem colocar uma pedra no assunto."​

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