Acerto de Haddad e empresários para derrubar multas e juros no Carf é criticado por auditores

Técnicos veem incentivo ao litígio, ampliação de perdas da União e punição a quem paga tributo em dia

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Brasília

O acordo prestes a ser selado entre empresários e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), para livrar contribuintes de pagar juros e multas em caso de empate nos julgamentos administrativos sobre cobranças tributárias é alvo de críticas de técnicos da Receita Federal e do sindicato da categoria.

Para os auditores, um acerto nessa direção pode incentivar o litígio pois mais empresas recorreriam ao Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) na tentativa de se livrar dos encargos. Além disso, sem a correção por juros sobre o montante cobrado, algo previsto nos termos em negociação, a inflação vai corroer o valor real da dívida, ampliando as perdas da União e penalizando de forma indireta quem pagou o tributo em dia.

"É como se as pessoas que compraram um apartamento financiado pudessem pagar seu apartamento sem juros e sem correção monetária ao final de dez anos", exemplifica o presidente do Sindifisco Nacional (Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal), Isac Falcão, que é contra o acerto. Ele ressalta que as próprias empresas não aceitariam financiar clientes sob essas condições.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), em conferência na Argentina - Augustin Marcarian - 23.jan.2023/Reuters

Haddad vem negociando as mudanças como forma de evitar uma derrota no Congresso, dadas as resistências à retomada no Carf do chamado voto de qualidade (que assegura a manutenção da cobrança em caso de empate, algo comum no órgão). O resgate do instrumento estava em medida do ministro publicada em janeiro.

Como a iniciativa enfrenta resistência na iniciativa privada, empresários propõem uma "regulamentação" do voto de qualidade: em caso de empate, permanece a cobrança do valor principal, mas caem as multas e os juros, desde que o débito seja quitado dentro de um prazo estipulado.

Os contribuintes ainda manteriam a prerrogativa de recorrer à Justiça —neste caso, os juros voltariam a ser cobrados, mas não a multa.

A proposta, porém, desagrada a técnicos do Fisco. Uma das críticas é que a União pode acabar abrindo mão das multas de forma permanente sem nenhuma garantia de que os tributos serão efetivamente pagos pelas empresas devedoras.

O auditor fiscal da Receita Ricardo Fagundes da Silveira, membro do conselho deliberativo do IJF (Instituto Justiça Fiscal), concluiu em 2019 sua tese de doutorado sobre a efetividade do Carf, analisando julgamentos ocorridos entre 2013 e 2017.

Dos R$ 517 bilhões julgados de forma favorável ao Fisco ao longo desses cinco anos, apenas R$ 48,7 bilhões haviam sido pagos, parcelados ou compensados pelos contribuintes —o equivalente a 9,42%.

Esse índice é decrescente no tempo. Apenas em 2017, a União recuperou só R$ 6,7 bilhões dos R$ 172,2 bilhões julgados a favor da Fazenda (3,47%).

O auditor também fez uma análise setorial. Bancos e holdings financeiras demonstraram ter um dos menores índices de pagamento das dívidas validadas pelo Carf: só 0,32% em 2017 e 4,35% na média dos cinco anos analisados.

"Um dos motivos da penalidade é aumentar o risco da sonegação, para estimular o recolhimento espontâneo. Imagina se isso [acordo] passa. O que vai surgir de planejamentos tributários de tudo quanto é forma…", diz Silveira.

As multas aplicadas pela Receita vão até 75%, no caso de simples não-recolhimento, e até 150%, caso seja identificada fraude.

Sem essas penalidades, segundo o auditor, empresas com boas condições financeiras podem se sentir compelidas a não pagar os tributos em dia, na expectativa de receber a autuação, discutir administrativamente e, ao final, conseguir perdão de multa e juros. "Isso é um desastre", afirma.

Outros auditores ouvidos pela Folha sob reserva também criticam a proposta de acordo apresentada pelos empresários. A avaliação é que as empresas só pagarão o tributo se verificarem que recorrer à Justiça para se livrar da cobrança integral, pagando advogado e custas processuais, acabará saindo mais caro que o valor com descontos.

Há reclamações também pelo fato de o acordo representar não uma concessão eventual, mas sim uma mudança permanente de regra. A medida é vista pelos técnicos como uma forma de "carimbar com o selo da legalidade" os planejamentos tributários abusivos praticados por empresas.

Procurado, o Ministério da Fazenda não se manifestou. Abrasca e representantes do Grupo Esfera que estiveram na reunião também não se pronunciaram sobre as críticas.

Isac Falcão, do Sindifisco, ressalta que a correção monetária é feita por meio da aplicação dos juros. "Ou seja, tirar os juros é na verdade reduzir o valor do próprio imposto. Depois de nove, dez anos, é claro que o valor original do tributo precisa ser reajustado. Se não for, o empresário vai pagar metade do que era devido", afirma.

Para o presidente do sindicato, as mudanças estão sendo pleiteadas para beneficiar um pequeno grupo de empresas que usa o Carf como instrumento para protelar a cobrança tributária e manter recursos em caixa de forma mais barata do que custaria uma captação em mercado, por exemplo.

"Essas empresas que se beneficiam desse sistema vão ter estímulo enorme ao deixar de pagar tributos que devem para passar a discuti-los no tribunal, porque sabem que, no final, o que vão pagar é muito menos do que pagariam hoje", alerta. "Não pode haver estímulo maior à litigiosidade no âmbito administrativo que a garantia de não-pagamento de multa e juros."

Falcão também rebate as críticas de empresas de que, antes do fim do voto de qualidade, quase todos os julgamentos eram favoráveis ao Fisco. A Receita diz que os direitos do contribuinte são reconhecidos, parcial ou totalmente, em mais de 25% dos casos já na primeira instância de contestação e em 40% no Carf.

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