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Argentinos têm equivalente a dívida externa 'embaixo do colchão'

Mais ricos poupam em dólar, e país convive com aumento da desigualdade

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Buenos Aires

Enquanto a taxa de pobreza na Argentina saltou 15 pontos percentuais em dez anos, levando 19,7 milhões dos 45 milhões de argentinos a essa condição e ao aumento da desigualdade, dados oficiais revelam que os mais ricos têm o equivalente a quase toda a dívida externa do país "embaixo do colchão".

Isso inclui dólares e outras moedas estrangeiras guardadas em casa, em cofres de empresas e bancos e em contas externas regularizadas, mas fora do fluxo regular de transações do sistema bancário.

Quantidade de pesos argentinos equivalentes a uma única nota de US$ 100 - Fernando Canzian/Folhapress

Segundo o Indec, órgão que apura as contas nacionais, os argentinos tinham US$ 261,8 bilhões (R$ 1,3 trilhão) nessas condições ao final do ano passado. Já a dívida externa bruta fechou 2022 em US$ 276,7 bilhões (R$ 1,4 trilhão).

Essa montanha de dólares fora do sistema reflete a desconfiança dos argentinos na moeda local (o peso), nos bancos e no governo. E é um dos principais motivos para o dólar paralelo (ou "blue") no país valer praticamente o dobro da cotação oficial —pela qual os argentinos não têm livre acesso à moeda norte-americana.

Segundo a estimativa oficial, o valor entesourado aumentou 2,7% em um ano. No país, é comum aos argentinos trocar rapidamente pesos que pretendiam poupar por dólares, a fim de se proteger de uma inflação em aceleração que atingiu 102,5% nos 12 meses terminados em fevereiro. No período, a cotação do dólar também praticamente dobrou.

Para isso, a população recorre às centenas de "cuevas" espalhadas pela cidade, muitas operando atrás de um comércio de fachada onde o principal negócio é o câmbio paralelo. Na rua Florida, principal via comercial da cidade, há dezenas de cambistas operando dessa maneira.

Segundo o economista Dante Sica, ex-ministro da Produção e do Trabalho no governo de Mauricio Macri (2015-2019), o nível de depósitos de correntistas nos bancos argentinos é um dos menores do mundo, equivalentes a 9% do Produto Interno Bruto.

Contribui para isso o fato de muitos argentinos terem trauma de "corralitos" (confiscos) de depósitos em crises passadas. Uma das consequências é que o sistema financeiro não tem reservas para operar com financiamentos de bens de maior valor e prazos mais longos ao setor privado.

Agrava o quadro, segundo Sica, o fato de o governo, altamente deficitário —por conta de excesso de funcionalismo, aposentadorias sem contribuição e subsídios à energia—, tomar cerca de 70% do crédito interno disponível.

No país, transações para a compra de imóveis e automóveis, por exemplo, são normalmente feitas em dólar.

O crescimento da pobreza, por um lado, e dos dólares nas mãos dos argentinos e fora do sistema financeiro, por outro, reflete também a tendência de aumento da desigualdade social na Argentina, e o encolhimento cada vez mais acelerado de sua ainda grande classe média.

A partir de 2010, houve um salto de mais de 25% no número de favelas no país, enquanto mais argentinos endinheirados passaram a morar fora dos centros urbanos —em condomínios fechados como os existentes no Brasil.

Segundo a base de dados sobre desigualdade WID (World Inequality Database), da Escola de Economia de Paris e da qual participa o economista Thomas Piketty, entre 2012 e 2018, a parcela da renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos na Argentina subiu de 39% para 47%. A dos 50% mais pobres caiu de 15% para 13,5%.

Os dados, até 2018 (últimos disponíveis para o país no WID), não captam a desorganização recente da economia argentina, com a aceleração da inflação —pior cenário para a conservação da renda dos mais pobres, que não conseguem poupar em dólares.

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