Descrição de chapéu Financial Times União Europeia

Como a falta de redes elétricas vai atrasar a era da energia renovável

Acúmulo de projetos eólicos e solares aguardando conexão coloca em risco planos de carbono zero

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Financial Times

O parque eólico Couture, em Poitou-Charentes, no sudoeste da França, se encontra num limbo. Apesar de ter permissão de planejamento, a construção do parque de 33,3 megawatts, que pode alimentar 30 mil casas com energia, está parada. O problema: gargalo na rede elétrica.

A BayWa RE, responsável pelo projeto, diz que o parque eólico terá que esperar oito anos até poder se conectado à rede elétrica –a rede de cabos, subestações e transformadores que transmite eletricidade pelas regiões e os países e atravessa fronteiras para levar energia a nossas casas, fábricas e escritórios.

É uma espera longa, mas não excepcional. Em todo o mundo, desenvolvedores de infraestrutura de energia renovável estão ouvindo que terão que esperar algo entre dois anos, em partes dos Estados Unidos, a até 15 anos no Reino Unido para poderem ligar projetos a redes que estão tendo dificuldade em acompanhar as mudanças na geração de eletricidade.

Homem caminha em meio a painéis solares em fazenda
Fazenda de painel solar - Shiraaz Mohamed - 18.mai.23/AFP

Há uma consciência crescente de que essas esperas longas para conexão podem ter um impacto calamitoso sobre os esforços globais para reduzir as emissões de gases estufa.

Cientistas dizem que o mundo precisa transformar rapidamente o sistema energético global, abandonando os combustíveis fósseis em favor de fontes energéticas mais limpas, como a eólica e solar, para limitar o aquecimento global e evitar os efeitos catastróficos da mudança climática.

Mas essa mudança só pode ser realizada se os projetos renováveis puderem ser conectados às redes elétricas, que pertencem ao Estado em alguns países mas são privatizadas em outros.

Duas décadas atrás, a rede elétrica era apenas uma das maneiras de se obter energia. Havia também opções como petróleo e gás. "Mas agora a rede elétrica está se tornando a principal forma de obter energia", diz Frédéric Godemel, vice-presidente executivo de sistemas e serviços elétricos da empresa francesa Schneider Electric. "A rede precisa ser modernizada completamente."

Matthias Taft, executivo-chefe da BayWa RE, que tem operações em mais de 30 países, diz que os atrasos de conexão com a rede hoje representam o principal obstáculo à operacionalização de projetos renováveis, não apenas na Europa mas também nos EUA e Austrália, entre outros países.

"Estamos enfrentando uma situação muito real de termos que aguardar cinco ou dez anos [para conexão com a rede]. Temos a autorização [para construir projetos], mas a rede física de conexão não está disponível."

Isso representa uma ameaça real à transição energética, ele alertou.

Gargalos pela frente

Políticos em todo o mundo querem apoiar projetos de energia renovável, tanto para melhorar a segurança energética, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis que em muitos casos são importados, quanto como parte dos esforços para cortar emissões, na esteira do acordo de Paris. As partes acordaram limitar a elevação da temperatura global para menos de 2ºC acima dos níveis pré-industriais, e idealmente para no máximo 1,5ºC.

Para manter viva a meta de 1,5ºC, a energia renovável gerada precisa mais que triplicar, dos 3.000GW atuais para mais de 10 mil GW em 2030, segundo a Agência Internacional para as Energias Renováveis (Irena).

Os países vêm definindo metas ambiciosas de energia verde. Em março a UE fechou um acordo provisório para exigir que até 2030 pelo menos 42,5% da eletricidade venha de fontes renováveis. Então em abril o grupo G7 dos países mais ricos assumiu o compromisso de elevar a capacidade eólica no mar em 150 GW até 2030 e a capacidade solar em mais de 1 terawatt. Uma meta global para renováveis pode ser formalizada este ano na cúpula climática da ONU COP 28 em Dubai.

Longe dos discursos, porém, poucos políticos estão falando da rede de transmissão, a infraestrutura vital para alcançar as metas ambiciosas e os planos de carbono zero.

"A rede elétrica não está na consciência pública", diz Stephanie Batjer, da Renewables Grid Initiative, entidade sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento de redes elétricas. "Todos sabemos que para nosso futuro energético precisamos de energia eólica, solar, de fontes renováveis. Mas as redes elétricas muitas vezes não são incluídas nessa discussão."

Os problemas com a rede elétrica são tão profundos que o primeiro-ministro britânico pagou por um upgrade particular à rede local para conseguir aquecer uma piscina em sua casa. Ativistas do Greenpeace fizeram um protesto diante da residência dele em Yorkshire (norte da Inglaterra) em março. Trajando roupas de banho e agitando faixas, exortaram Rishi Sunak a modernizar a rede nacional para abastecer a população inteira de energia verde.

Batjer acrescenta que com o mundo avançando para a eletrificação crescente, por exemplo com a adoção de veículos elétricos e bombas de calor, "vamos precisar transportar mais eletricidade que no passado".

"Não sei de nenhum país onde a rede elétrica insuficiente não esteja obstruindo a transição energética em algum nível", diz Mark Hutchinson, diretor para a Ásia do Conselho Global de Energia Eólica. Ele diz que um dos grandes problemas é que não há infraestrutura suficiente para suprir as necessidades do sistema energético em transformação. A provedora de dados BloombergNEF estima que até 2050 serão necessários 80 milhões de quilômetros de rede nova, mais que o suficiente para substituir a rede de transmissão global inteira hoje.

Em boa parte do mundo ocidental, as redes elétricas foram desenvolvidas após a Segunda Guerra Mundial para atender às grandes usinas elétricas que queimavam um combustível fóssil como carvão ou gás. A eletricidade gerada nas usinas elétricas era então transmitida para nossas casas através de uma rede de linhas e cabos de transmissão.

A transição verde vai exigir uma reforma da estrutura atual. Em muitos casos são necessários vários parques eólicos e solares para tomar o lugar de uma grande usina elétrica, em parte devido à natureza intermitente da energia renovável: nem sempre há vento. Esses parques todos precisam de conexões com a rede, mas normalmente estão situados em áreas remotas ou no mar, onde as redes estão menos presentes.

"A rede está no lugar errado para transmitir a energia das fontes de energia renovável para os centros econômicos", diz Peter Crossley, professor de sistemas de energia na Universidade de Exeter.

Ao lado desse obstáculo, a implantação de painéis solares em residências e locais comerciais que são conectadas à rede –sem falar na adoção de veículos elétricos e bombas de calor—vem aumentando a complexidade da administração das redes elétricas. Os operadores precisam fazer um malabarismo delicado –conservar as luzes acesas e expandir a rede sem elevar os custos para os consumidores, e ao mesmo tempo considerar cada vez mais seu papel na redução das emissões de gases estufa.

Um gargalo enorme está surgindo. Operadores de redes elétricas em todo o mundo estão sobrecarregados com o simples volume de projetos que solicitam uma conexão.

"Estamos vendo gargalos enormes no curto prazo pelo fato de as operadoras elétricas não terem profissionais suficientes para fazer os trabalhos de processamento necessários, devido a uma falta crônica de investimentos", diz Harald Overholm, executivo-chefe da empresa sueca de energia solar Alight. "É um problema enorme. Acho que se não houvesse esses gargalos, poderíamos dobrar o ritmo de lançamento global de renováveis."

No Reino Unido, Espanha e Itália, mais de 150 GW de projetos eólicos e solares estão parados em filas de conexão com a rede em cada país, segundo números da BloombergNEF.

O número de pedidos de ligação com a rede aumentou 40% em 2022 nos EUA, conforme estudo chefiado pelo Laboratório Nacional Lawrence Berkeley. Os pesquisadores descobriram que quase 2.000 GW de projetos solares, eólicos e de armazenagem estavam em filas para ser ligados às redes de transmissão –a rede elétrica de longa distância e alta voltagem—, muito mais que a capacidade instalada de toda a frota americana de usinas elétricas.

Muitos desses projetos nunca chegarão a ser construídos. Segundo o autor Joseph Rand, os desenvolvedores muitas vezes apresentam pedidos especulativos. Sua pesquisa analisou pedidos de ligação apresentados entre 2000 e 2017 e descobriu que de modo geral apenas um quinto dos projetos chegaram a ser construídos.

Uma das razões da diminuição da construção é que os desenvolvedores têm informações limitadas sobre a capacidade da rede –ou a capacidade dela de aceitar um projeto novo— antes de apresentar seus pedidos. Os problemas potenciais e custos adicionais só emergem quando a operadora realiza um estudo sobre a possível conexão.

Os desenvolvedores desistem dos projetos quando descobrem que sua concretização leva a uma fatura enorme para a modernização ou o reforço da rede elétrica. Nick Pincott, sócio da firma de advocacia TLT, diz que um projeto no Reino Unido foi abandonado quando o desenvolvedor soube que teria que arcar com uma "conta de reforço" de £19 milhões (cerca de R$ 100 milhões) para modernizar a rede –mais que o valor do próprio projeto.

Mesmo quando projetos conseguem uma conexão, "cada vez mais frequentemente há restrições a quando se pode utilizar a conexão", como restrições a quando eles podem vender eletricidade, diz Pincott. Isso reduz a viabilidade comercial de alguns projetos.

Apesar de os países definirem metas legais de redução das emissões e aumento da geração de energia renovável, operadoras elétricas e políticos têm relutado em gastar dinheiro para a modernização das redes.

"A razão por que temos gente fazendo fila para conexão com a rede", diz Nick Dunlop, co-fundador do Climate Parliament, grupo que trabalha para levar políticos a agir sobre o aquecimento global, "é que os governos ainda não estão levando a mudança climática a sério. Ainda não estão se dedicando a atrair investimentos nas redes."

Cifras da Agência Internacional de Energia mostram que, em lugar de o investimento de capital em redes elétricas ter aumentado globalmente após o acordo de Paris, caiu entre 2017 e 2020 e só voltou ao nível de 2016 em 2022, com US$ 330 bilhões. Os investimentos na rede na Europa estagnaram entre 2015 e 2020 em cerca de US$50 bilhões por ano, subindo apenas levemente nos últimos dois anos. Na China, depois de terem caído entre 2029 e 2021, os investimentos nas redes nacionais subiram 16% no ano passado, para quase US$83 bilhões.

Mas a Irena diz que, para manter viva a meta de 1,5ºC, o investimento global anual em redes elétricas e na chamada flexibilidade, que inclui a armazenagem de energia, terá que chegar a quase US$550 bilhões até 2030. A Comissão Europeia estima que € 584 bilhões precisam ser investidos na rede europeia até 2030.

Crossley diz que tem havido relutância em investir em redes porque esse custo muitas vezes é repassado ao consumidor, pelo menos em parte, através das contas de eletricidade. Mesmo quando há planos para ampliar a rede, as operadoras se queixam de que as propostas acabam bloqueadas no sistema de planejamento, muitas vezes devido a preocupações com a construção de linhas de transmissão aéreas passando sobre campos verdes.

Keith Anderson, executivo-chefe da ScottishPower, companhia de eletricidade britânica que opera uma rede e desenvolve parques eólicos, diz que foram precisos dez anos para conseguir a autorização de planejamento para substituir e ampliar a capacidade de uma linha de transmissão existente entre Beauly e Denny, na Escócia.

Para ele, as redes são "o gigante esquecido da descarbonização e do carbono zero".

Redes vão se globalizar?

As filas e o custo das modernizações geram o receio de que os esforços para reduzir emissões serão prejudicados não por uma falta de interesse nas energias renováveis, mas pela infraestrutura básica que sustenta o sistema.

"Serão os velhos cabos que vão literalmente nos fazer tropeçar no caminho para a descarbonização", diz Marlon Dey, diretor de pesquisa para o Reino Unido e Irlanda na Aurora Energy Research.

"Só existe uma solução, que é fisicamente reforçar e construir mais rede", ele fala. "E se você não puder fazer isso com rapidez suficiente, não conseguirá construir a energia renovável que necessitamos e não conseguirá deixar os combustíveis fósseis para trás com rapidez suficiente. E então não conseguiremos descarbonizar com a rapidez necessária."

Os políticos e estrategistas estão tomando consciência dos problemas gradualmente, disse Lisa Fischer, líder de programa do think tank climático E3G. "Estão começando a entender que as redes elétricas estão virando bens estratégicos prioritários."

Fischer diz que os países precisam considerar soluções inovadoras como construir linhas de transmissão ao lado de estradas ou gasodutos, onde a permissão de construção é mais provável. "Ainda não houve criatividade suficiente na busca por soluções", ela disse. "É aqui que a liderança política precisa entrar em ação."

Frank Jotzo, professor de economia ambiental na Universidade Nacional Australiana, diz que outra opção é desenvolver "zonas" de energia renovável em áreas geograficamente apropriadas e priorizar o desenvolvimento de redes elétricas nesses locais. Isso já está sendo feito em partes da Austrália, segundo ele.

No ano passado a Comissão Federal de Regulação Energética dos EUA apresentou propostas para diminuir as filas para conexão com a rede, incluindo a revisão do sistema "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", para priorizar projetos que têm mais chances de ser construídos, como os que já contam com permissão de planejamento. Ela também propôs que os desenvolvedores tenham acesso a mais informação sobre a capacidade da rede –por exemplo, sobre onde as linhas de transmissão já estão congestionadas.

No Reino Unido, a Ofgem, a agência britânica que regulamenta a energia, também está tentando resolver o problema. Em maio ela propôs uma revisão do sistema britânico de fila "primeiro a chegar, primeiro a ser servido", juntamente com outras medidas.

Também há um interesse crescente em vários países em construir redes que ultrapassem fronteiras, com a ideia de poder usar energia de diferentes lugares em diferentes momentos. A Holanda e o Reino Unido, por exemplo, estão construindo uma linha de transmissão entre os dois países chamada LionLink.

Em março o primeiro-ministro grego Kyriakos Mitsotakis pediu que a rede da UE seja reformada e ampliada para permitir a transferência de eletricidade gerada por energia renovável entre o norte e o sul do continente. A proposta já recebeu ao apoio de metade do bloco.

"É fácil alimentar o mundo de energia, mas apenas se houver as redes corretas", disse Dunlop, da Climate Parliament. "É preciso ter redes continentais ou até transcontinentais de grande escala."

O chefe da Irena, Francesco La Camera, argumenta que é preciso pensar mais em desenvolver redes tanto locais quanto internacionais na África, argumentando que o continente pode ser "a mais importante fonte de energia limpa do mundo", devido ao potencial de grandes parques solares serem construídos ali. Mas ele não possui a infraestrutura de rede necessária, desde cabos até armazenagem de baterias.

"Pensamos que os bancos de desenvolvimento multilateral deveriam enfocar a construção da estrutura física que é necessária para construir o caminho para o novo sistema energético", ele acrescentou.

Apesar de todos os problemas, Rand, da Berkeley, diz que as filas enormes para conseguir conexão com redes mostram que existe uma disposição e um interesse em transformar o sistema energético. "Temos todos esses desenvolvedores querendo construir projetos solares, eólicos e de armazenagem de bateria. É um lado muito positivo da história."

De volta ao parque eólico Couture, na França, a BayWa estima que o projeto levará apenas 12 meses para ser construído. Mas não faz sentido iniciar a construção de um parque eólico que não vai poder ser conectado à rede por anos.

Taft, o executivo-chefe da BayWa, se reuniu recentemente com políticos na Europa, onde pediu que o bloco e países individuais redobrem seus esforços para resolver os problemas com a infraestrutura das redes.

Sua mensagem é inequívoca. Se os governadores e as operadoras de redes não adotarem ações urgentes, "vamos fracassar com a transição energética".

Tradução de Clara Allain

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