Controversa, agricultura familiar abastece boa parte do Brasil

Produtos básicos vêm do setor, que perde área e agricultores nos últimos anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Motivo de embates políticos, a agricultura familiar nem sempre é compreendida dentro do sistema produtivo agrícola brasileiro. O próprio termo transita no campo dos pequenos produtores, que não têm, necessariamente, os mesmos critérios de classificação dos da agricultura familiar.

O conceito de agricultura familiar remonta ao Estatuto da Terra, de 1964. Suas diretrizes básicas, ainda vigentes, foram estabelecidas em 2006, segundo Elisio Contini, ex-pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e consultor de agronegócio.

O agricultor familiar tem de ter uma porção de terra de até quatro módulos fiscais. Estes variam conforme a região e vão de 5 a 110 hectares (um hectare equivale a 10 mil m²).

Assentamento de agricultura familiar da Cootap (Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da região de Porto Alegre), em Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul - Arquivo pessoal/30.set.21

Ao menos a metade da mão de obra utilizada na atividade da propriedade deve ser familiar, e a renda tem de vir predominantemente da atividade rural. A gestão deve ser estritamente familiar.

Dentro desses parâmetros, o Censo Agropecuário de 2017, o mais recente disponível, enquadra 3,9 milhões de estabelecimentos dos 5,1 milhões existentes à época no país, ou seja, 77% do total. Hoje, estima-se em quase 7 milhões as propriedades rurais.

Os números do último censo registraram um encolhimento da atividade familiar, em relação a 2010. Houve queda de 9,5% nos estabelecimentos; redução de 2,2 milhões no número de trabalhadores e a área cultivada ficou 0,5% menor no período.

Segundo o IBGE, responsável pelo censo, a agricultura familiar ocupa 23% da área total cultivada no país.

Aristides Veras dos Santos, presidente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares) destaca a quantidade de áreas pequenas entre as ocupadas pela agricultura familiar.

Dos 3,9 milhões de estabelecimentos, 1,8 milhão tem menos do que cinco hectares, o correspondente a 4,6 campos de futebol. A dificuldade é grande para se produzir em áreas tão pequenas, diz Santos.

Com relação a quanto o setor produz, há divergências. O número que circula atribui à agricultura familiar a produção de 70% dos alimentos que vão para a mesa do consumidor.

Santos diz que é um número difícil de ser contabilizado, mas que "a maioria dos alimentos consumidos sai da agricultura familiar".

Contini afirma que o volume de 70% de fornecimento total de alimentos pela agricultura familiar é discutível. Ele cita, por exemplo, que boa parte do arroz produzido atualmente vem de grandes produtores do Rio Grande do Sul.

O ex-ministro da Agricultura Luis Carlos Guedes Pinto destaca a importância dos produtores familiares no abastecimento nacional. A renda, no entanto, é pequena. Dos 5,1 milhões dos estabelecimentos relatados pelo censo do setor de 2017, 4,75 milhões declararam alguma renda.

Entre eles, 10% ficaram com apenas 0,06% do VBP (Valor Bruto de Produção), um indicador de receitas dos produtores com base nos preços recebidos dentro da propriedade e volumes produzidos.

Se for considerada a metade desses estabelecimentos, a renda total deles é de apenas 1,54% no VBP. Nos cálculos do ex-ministro, 90% desses estabelecimentos ficaram com apenas 12,95% do VBP.

Na outra ponta, apenas 10% dos médios e grandes estabelecimentos obtiveram 87% das receitas do indicador.

A importância da agricultura familiar fica evidente em frutas, hortaliças e em alguns produtos básicos. Pelo menos 80% da produção de mandioca provem desses produtores, que são responsáveis também pelo fornecimento de 69% da oferta de abacaxi e de 42% do feijão consumido.

Apesar da pujança do agronegócio brasileiro e de saltos na produtividade, 33 milhões de pessoas passavam fome no país em 2022, segundo a Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), com base em pesquisa Vox Populi.

Contini diz que tem uma visão otimista e esperançosa sobre o setor, embora a atividade tenha vários gargalos. O setor sofre das imperfeições do mercado, mas os governos fazem grandes esforços, desde os anos 2000.

Há soluções criativas e a área tem senso empresarial. O maior problema está no Nordeste, onde se concentram 47,2% dos estabelecimentos da agricultura familiar. A participação do governo nos programas básicos de auxílio, principalmente no de água e no Bolsa Família são fundamentais, afirma Contini.

Ele alerta, no entanto, de que essa situação não pode perdurar por 50 anos. É preciso desenvolver formas para que esses produtores possam caminhar com as próprias pernas.

O desenvolvimento da agricultura familiar poderá vir até do setor externo, via cooperativismo, que ajuda a superar as imperfeições de mercado. A globalização e a demanda maior por alimentos podem auxiliar no desenvolvimento.

O consultor em agronegócio diz, no entanto, que vários problemas persistem. Entre eles, a titulação da terra, assentamentos distantes de mercados consumidores, deficiência de infraestrutura, falta de conectividade e de educação de qualidade, além de outros.

Para Santos, da Contag, um dos grandes problemas é a dificuldade de acesso ao crédito, principalmente por falta de titularidade da terra.

A infraestrutura precária dificulta o escoamento da produção e há entraves na comercialização, uma vez que nem todos os municípios dispõem de feiras para a agricultura familiar ou estão com os sistemas de aquisição pública de alimentos funcionando.

Santos acredita que está em curso um processo que vai avançar. O Plano Safra da Agricultura Familiar foi positivo, diante das restrições do orçamento governamental, mas o dinheiro precisa ser disponibilizado pelos bancos. Para ele, o Plano Safra de 2024/25 será mais eficiente.

Os incentivos às mulheres, aos jovens, à agroecologia e novas tecnologias, principalmente das pequenas máquinas vindas da China, poderão dar um impulso ao setor.

A falta de tecnologia e inovação faz com que boa parte dos jovens deixe o campo em busca de trabalho fora da propriedade. Nos últimos seis anos, 300 mil deles saíram da agricultura, segundo Santos.

Uso da tecnologia é um passo importante, afirma Contini. A agricultura se transformou nas últimas décadas, com muita inovação e novas tecnologias, mas boa parte dos produtores ficou à margem desse processo.

Nos anos recentes, a agricultura familiar, voltada para o mercado interno, não foi beneficiada pela evolução dos preços internacionais dos alimentos e pela alta do dólar.

Ao contrário, sofreu os efeitos da alta dos insumos provocados pela desvalorização do real. Contini diz que o pequeno produtor, sem escala, compra os insumos mais caros e vende seus produtos em condições mais desvantajosas.

A restrição de terras, de capital, de água e a ausência da mecanização levam ainda mais esses produtores a serem vítimas das imperfeições do mercado.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.