'Ogronegócio' para Marina, ruralistas dizem que precisam 'cacarejar' mais

Produtores afirmam que minoria descumpre leis; para ONG, há 'terceirização' do desmate

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O Ministério do Meio Ambiente estima que os ruralistas agindo na ilegalidade, e provocando o grosso do desmatamento, são cerca de 2% do total. Mas especialistas acreditam que muitas das terras devastadas por poucos acabem compradas por fazendeiros, numa espécie de "terceirização" do desmatamento.

No final de maio, quando procurava impedir o esvaziamento de seu ministério pelo Congresso, Marina Silva referiu-se a parcelas do setor como "ogronegócio". Ela ponderou que "boa parte já está fazendo o dever de casa, e a parte que não faz, contamina todo resto".

Plantação de milho em fazenda entre Campo Novo do Parecis e Sapezal (MT) com reserva ambiental ao fundo - Fernando Canzian/Folhapress

"Se fôssemos delimitar, estamos falando de menos de 1% do universo de proprietários rurais, pelo menos daqueles cadastrados no CAR [Cadastro Ambiental Rural], que foram responsáveis por quase 50% do desmatamento ilegal mapeado em 2022", afirma André Lima, secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente.

O CAR é uma espécie de CPF autodeclarado dos produtores, em que registram quanto de sua terra está sendo usada ou preservada, segundo regras do Código Florestal, entre outras informações.

Lima qualifica esse pessoal como "maçãs podres". "É aquele pequeno contingente que ainda depende de algum poder, sobretudo na política local, e obviamente que isso reverbera nos outros níveis, estadual e federal. E que, direta ou indiretamente, está envolvido com ações de desmatamento ilegal, de grilagem de terras."

Ele lembra que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) editou medida provisória para tentar beneficiar ocupantes e desmatadores ilegais de terras da Amazônia até dezembro de 2018. "O alvo de nossa crítica está muito direcionado a isso, aos que ainda investem em ocupar áreas ilegalmente na Amazônia."

Segundo o secretário, Bolsonaro também praticamente paralisou a checagem dos CAR (que ficou a cargo do Ministério da Agricultura em seu mandato) e a sinergia entre o governo federal e estaduais, a quem cabe a fiscalização da veracidade das informações.

A intenção, segundo Lima, é voltar a trabalhar no tema para checar os CAR dos proprietários, e chancelá-los ao longo do tempo, dando segurança aos fazendeiros.

"Na gestão anterior, inclusive, foi desligado o filtro de terra indígena, e o camarada podia ir lá e fazer um registro em cima dessas terras e emitir um recibo de CAR ativo", diz.

Segundo ele, apareceram cerca de 20 mil imóveis rurais sobrepostos com terras indígenas, que vieram da gestão Bolsonaro, num total de mais de 7 milhões de hectares (um hectare equivale a 10 mil m²). Destes, 17 mil imóveis foram tornados pendentes; 943, suspensos e 2.500, cancelados.

"Mas, de um modo geral, sempre existe um embate, e ele é histórico, da Frente Parlamentar da Agropecuária com a legislação florestal brasileira. Desde 1999 há movimentos que ganham dimensão e ritmo e depois recuam, dependendo da conjuntura. É um estica e puxa histórico", diz Lima.

Para o deputado federal Pedro Lupion (Progressistas-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária —com 302 deputados e 45 senadores—, o setor "apenas trabalha ativamente para defender seus interesses".

"Temos dito sempre que não apoiamos ou colaboramos com malfeitos, especialmente o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem. Infelizmente, como em todo setor, existe gente que faz errado. Mas não podemos colocar todo o agronegócio brasileiro no mesmo balaio", diz.

"Quando a Marina se posiciona em relação a nós como ‘ogronegócio’, a discussão vai para o lado ideológico, o que dificulta muito o debate."

Lupion afirma que, após os resultados do PIB do primeiro trimestre terem sido fortemente puxados pelo agronegócio, "o comportamento do presidente Lula mudou da água para o vinho".

"Infelizmente, quando entra a pauta ideológica na conversa, eles gritam de lá, a gente grita daqui. Isso é normal." Lupion considera a legislação ambiental brasileira "pesada e muito restritiva". "Mas estamos cumprindo."

Questionado sobre as mudanças aprovadas no Congresso para tirar o CAR do Meio Ambiente (agora com o Ministério da Gestão), Lupion diz que a pasta de Marina estava repassando informações do CAR para ONGs "patrulharem" os produtores.

"Não vamos permitir nunca que usem isso contra nossos produtores. Tivemos número [votos] aqui e vencemos essa batalha. É uma questão de sobrevivência, porque o Meio Ambiente não está interessado em conversar conosco", diz.

Questionado sobre as razões de os ruralistas não se empenharem mais em combater e explicitar a ilegalidade dos que consideram uma minoria, Lupion afirma: "Estamos tentando, todos os dias."

Segundo ele, fazendo contato com diversas organizações, com a União Europeia, principalmente, organizando "road shows" com formadores de opinião e a imprensa "para verem a realidade da produção agropecuária no Brasil."

"Infelizmente, ainda falta muito da nossa parte. Brinco que precisamos 'cacarejar' mais para mostrar o bem feito", diz.

Segundo Nelson Ananias, coordenador de Sustentabilidade da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), um dos principais problemas nesse embate é a morosidade do Estado em homologar o CAR dos produtores.

"São pessoas que ocupam de boa-fé essas áreas e que se enquadram na legislação. Mas que não têm a oportunidade de comprovar nada em função do próprio Estado de não promover essas ações de reconhecimento de cumprimento da legislação e das medidas do Código Florestal", afirma.

O CAR foi criado junto com o novo Código Florestal, de 2012, mas se tornou operacional no início de 2014. "Dos 6,9 milhões de cadastros inscritos, só 46.915 [0,7%] tiveram a análise concluída", diz Ananias.

"O produtor fez sua parte, ofereceu transparência e não recebeu em troca a mesma agilidade para demonstrar essa transparência. Com essa demora do Estado, o produtor avança", diz.

"Em grande parte dos casos, ele não está em área de APP [Área de Proteção Permanente] ou reserva legal, mas onde ainda não tem autorização para supressão. Aí age e é jogado na ilegalidade. Coisa que ele teria direito, mas a morosidade não permite que exerça plenamente esse direito".

O mais recente Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas, que consolida dados do território nacional, revela que, em quatro anos (2019 a 2022), foram reportados mais de 303 mil eventos de desmatamento, totalizando 6,6 milhões de hectares, o equivalente a uma vez e meia a área do estado do Rio de Janeiro.

Vista aérea de região desmatada em Uruara, no Estado do Pará. - Reuters

Segundo Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, no período foi detectado pelo menos um desmatamento em 212.884 CARs, o que representa 3,1% do total.

"É possível dizer com clareza que 95,7% do desmatamento teve como vetor a agropecuária. Independentemente de quem desmatou, a terra acaba servindo à atividade. Há, inclusive, uma ‘terceirização’. Alguém desmata e outra pessoa depois compra a terra", afirma.

Azevedo diz que, em 98% dos casos, há pelo menos uma incidência de ilegalidade, como supressão em área indígena ou APP.

Segundo ele, a principal ação contra ilegalidades que o governo vem adotando é a retomada de "embargos remotos", a partir de desmatamentos detectados por 11 diferentes sistemas de monitoramento.

Nesse processo, os embargos (que dificultam a tomada de crédito pelo produtor, por exemplo) e multas triplicaram em 2023 em relação ao mesmo período de 2022, o que tende a conter atividades ilegais.

O desmatamento na Amazônia caiu 33,6% no primeiro semestre de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Para Azevedo, quem mais deveria estar preocupado em inibir o desmatamento ilegal são os produtores, já que começam a ser alvo de sanções, como as novas regras anunciadas pela União Europeia.

No final de junho entrou em vigor lei do bloco que obriga empresas a confirmar que produtos como soja, café, cacau, madeira, borracha e carne, entre outros, não provêm de áreas relacionadas a desmatamento ou degradação florestal ocorridos após 31 de dezembro de 2020. Há prazo de 18 meses para a implementação, mais dilatado para médias e pequenas empresas.

Segundo Ludmila Rattis, coordenadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, a maior parte da grilagem de terras ocorre na Amazônia, onde existe uma proporção de terras públicas equivalente ao tamanho da Espanha ainda sem destinação.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.