Falta de pilotos preocupa países e deve afetar o Brasil nos próximos anos

Empresas estrangeiras atraem profissionais brasileiros com salários até cinco vezes maiores

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São Paulo e Istambul

A carreira de piloto demora a decolar. Entre o frio na barriga do primeiro voo e a estabilidade de um contrato de trabalho em uma empresa aérea, geralmente é preciso acumular mais de 500 horas de prática, cada uma delas custando mais de R$ 700 para o estudante.

Como relativamente poucos profissionais conseguem chegar neste nível, o mercado aéreo vive um cenário de falta de pilotos, especialmente em países como Estados Unidos, Turquia e Qatar.

Para resolver o problema, empresas destes países estão recrutando mais funcionários em lugares como o Brasil. Com isso, profissionais do setor avaliam que a falta de pilotos por aqui se torne mais forte daqui a um ou dois anos.

Christian Cattoni, piloto que faz parte de programa de formação da Minetoo, no Campo de Marte, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

"Para ir trabalhar nos EUA, um dos requisitos é uma carta de que o piloto é filiado a uma entidade de classe. Antes da pandemia, assinava quatro cartas dessas por mês. Hoje eu assino umas dez por semana", comenta Henrique Hacklaender, presidente do SNA (Sindicato Nacional dos Aeronautas).

A remuneração e as melhores condições de vida no exterior são os principais atrativos. "Se formos converter, o salário de um piloto no Brasil começa em cerca de US$ 2.000 dólares e vai até US$ 10 mil. Lá fora, o salário inicial já começa na casa de US$ 8.000 a US$ 10 mil", compara Hacklaender.

Para as empresas aéreas, encontrar pilotos já habilitados para aeronaves grandes é uma vantagem. Normalmente, leva-se em torno de seis meses extras para obter a autorização para conduzir um modelo como um Airbus A320 ou Boeing 737, que levam centenas de pessoas por viagem.

As grandes companhias costumam pagar por estes treinamentos específicos para cada aeronave, mas eles são caros e feitos no exterior. Um candidato já habilitado pode entrar em operação em menos tempo, resolvendo mais rapidamente o problema da falta de pilotos.

A escassez de comandantes de voo é uma das consequências da pandemia. No começo da crise, as aéreas suspenderam milhares de voos e não se sabia quando as coisas voltariam ao normal. Neste cenário, muitos profissionais foram dispensados. Porém, a retomada veio forte já a partir de 2021, e as empresas tiveram de correr para recompor as equipes.

Nos EUA, houve uma questão adicional: lá os pilotos precisam se aposentar obrigatoriamente aos 65 anos. Como a Covid traz maior risco aos mais velhos, várias companhias ofereceram aposentadoria antecipada aos maiores de 60. Quando o mercado aéreo reaqueceu, muitos não quiseram voltar. Em resposta, o governo americano relaxou algumas das regras exigidas para pilotos e buscou facilitar a chegada de estrangeiros.

"Nos EUA e ao redor do mundo, as companhias ainda enfrentam problemas com necessidade de pessoal. Tradicionalmente você tem um desafio com pilotos, engenheiros e mecânicos, mas agora há também com comissários e equipes de solo", avalia Peter Cerdá, vice-presidente da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo) para as Américas.

"A questão na América Latina foi menor durante a pandemia, mas com a reabertura da China —e a Índia e a Indonésia se tornando grandes mercados—, temos o risco de que empresas chinesas e do Oriente Médio venham oferecer empregos na América Latina, o que colocará a região em desvantagem, dados os benefícios oferecidos por elas", completa Cerdá.

Para escapar do problema, empresas estrangeiras passaram a custear a formação de pilotos. A Turkish Airlines investiu US$ 15 milhões em novas instalações para treinamento em Istambul, que incluem 32 simuladores. "Este ano contratamos 600 pilotos. Nossas escolas conseguem formar 200 pilotos por ano, e outras na Turquia conseguem formar cerca de 450 por ano. Temos planos de elevar este número total para mil", diz Ahmet Bolat, presidente do conselho da empresa turca.

A pandemia também atrasou a formação de profissionais: de um lado havia menos voos disponíveis para os jovens pilotos participarem. De outro, a crise econômica aumentou o custo das horas no ar e muitos candidatos ficaram inseguros em investir na formação ou com menos dinheiro.

No Brasil, a formação básica de piloto comercial pode exigir mais de R$ 200 mil, ao somar as horas de voo, cursos teóricos e provas. Cada hora de voo custa de R$ 750 a R$ 2.000.

"Uma empresa aérea regular exige no mínimo 500 horas de voo para contratar. O piloto já pagou por quase 200 horas para conseguir a certificação de piloto comercial e dificilmente vai conseguir custear mais 300", comenta Hacklaender.

Assim, para completar essas centenas de horas, os aspirantes acabam buscando alternativas, como voar em aviões de conhecidos, fazerem trabalhos de pulverização agrícola ou se tornarem instrutores.

"Paga-se pouquíssimo ao instrutor, por volta de 30 reais a hora. E o cara entra numa fila: as escolas formam 200 instrutores por ano, mas tem quatro, cinco vagas para trabalhar", comenta Alysson Soares, coordenador de negócios da Minetoo, empresa que oferece viagens em aviões particulares contratadas por aplicativo.

Assim, chegar às 500 horas pode levar de seis meses a mais de dois anos, dependendo da capacidade financeira do piloto, do tempo que ele tem para se dedicar e até de questões metereológicas. Uma temporada de chuvas pode impedir voos por vários dias, por exemplo.

É também preciso demonstrar habilidade, para ir cumprindo várias missões ao longo da formação. Ao falhar em alguma delas, é preciso repetir o voo e pagar mais horas. "Se o cara só consegue pagar uma ou duas horas por mês e fica muito tempo sem voar, pode acabar perdendo a prática e atrasar ainda mais o processo", comenta Soares.

A Minetoo criou um programa para os jovens que estão nesta fase. Os recém-formados atuam como segundos pilotos em voos da empresa, e podem comandar as aeronaves nos trajetos sem passageiros, como quando o avião precisa ser trazido de volta vazio para a base. Eles não recebem pelo trabalho, porque ainda estão em aprendizagem, mas não pagam pelas horas. Há ajuda de custo para cobrir hospedagem e alimentação em viagens longas.

"A vida real é totalmente diferente do aeroclube. É a mesma coisa que sair da autoescola e enfrentar o trânsito. Você sente tudo na prática", comenta Christian Cattoni, 22, um dos pilotos em formação que integram o programa.

Nascido em Barueri, na Grande São Paulo, Cattoni começou a formação de piloto aos 18 anos. Seu voo mais longo até agora foi de São Paulo a João Pessoa, na Paraíba. Em sua trajetória, viu muita gente desistir.

"O curso de PP [piloto privado] que fiz começou com 50 pessoas e terminou com 30. Dessas 30, dez fizeram a prova da Anac e só umas cinco ainda estão voando", comenta.

Cattoni, que gostava de ir ver os aviões desde criança, quer se tornar piloto de jatos executivos. Ele avalia que levará mais cerca de dez anos para chegar lá. Será o tempo necessário para acumular horas de voo, certificados e conseguir disputar um lugar no mercado.

"Pela quantidade de currículos que a gente recebe, não há falta de pilotos. Faltam pilotos qualificados, que tenham as habilidades necessárias", diz Soares, da Minetoo. "O cara precisa ser bom de braço."

O repórter viajou a convite da Iata.

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