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Pacote da Fazenda para estados pode virar perigoso déjà-vu

Flexibilizar empréstimos a estados e municípios traz riscos e ignora desequilíbrios vividos no passado

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Brasília

O anúncio do pacote de medidas para flexibilizar a concessão de crédito a estados e municípios, às vésperas de uma eleição municipal, causou um frio na espinha de quem acompanhou de perto a grave crise financeira que eclodiu em 2016 e cujos efeitos se arrastam até hoje nas discussões federativas.

Muitos especialistas e até representantes dos estados consideram que o embrião da crise foi justamente a forte ampliação dos financiamentos entre 2012 e 2014, patrocinada pelo governo Dilma Rousseff (PT).

Na época, uma portaria do Ministério da Fazenda dava ao chefe da pasta o poder de, numa única canetada, conceder garantia da União a quem já estava em péssimas condições financeiras. O instrumento serviu para irrigar estados com notas C ou D, as piores na classificação do Tesouro, com R$ 73 bilhões (em valores históricos) entre 2012 e 2014.

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O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron; órgão anunciou medidas para flexibilizar acesso de estados e municípios a empréstimos - Gabriela Biló - 04.jan.2023/Folhapress

O Rio de Janeiro foi um dos principais beneficiados. Em 2016, deixou servidores à míngua sem salários e puxou a fila do calote bilionário em empréstimos, que obrigou a União a arcar com as obrigações e serviu de ponto de partida para a negociação do RRF (Regime de Recuperação Fiscal).

O pacote anunciado nesta quarta-feira (26) pelo Ministério da Fazenda é muito mais sofisticado e complexo do que uma mera canetada. Ele tem inclusive pontos favoráveis, mas também retrocessos.

Do lado positivo, o governo propõe maior rigor dos gestores na manutenção de recursos em caixa, exigindo o cumprimento da regra em todos os anos, não só em fim de mandato.

O governo também quer ampliar o leque de municípios que poderão contar com garantias da União na obtenção de empréstimos. Isso é importante para baratear o custo de financiamento para pequenas e médias cidades.

As demais mudanças acenderam a luz amarela entre ex-secretários do Tesouro, especialistas do mercado e até mesmo entre representantes dos estados.

O governo vai afrouxar os critérios para que estados e municípios obtenham a nota de classificação A, que indica boa saúde financeira. Na largada, quatro estados e mais de 400 municípios serão contemplados.

Uma vez alçados ao melhor rating do Tesouro, eles poderão contratar crédito fora dos limites atuais estipulados pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), que fixa uma trava anual para operações com o setor público. Neste ano, esse teto está em torno de R$ 20 bilhões.

Não está claro qual será o resultado final disso em volume adicional de empréstimos: R$ 5 bilhões? 10 bilhões? R$ 20 bilhões? Sem trava explícita, o céu é o limite.

As mudanças têm implicações fiscais. Cada R$ 1 de crédito significa R$ 1 a mais em gasto, com piora do resultado primário de estados e municípios. A dívida bruta, que o ministro Fernando Haddad (Fazenda) almeja controlar, vai subir por causa do novo pacote.

Para os estados, as facilidades incentivam a busca pela melhora da nota —de forma meritória ou via atalhos. As análises são feitas com dados declarados pelas próprias secretarias de Fazenda. Seria ingenuidade esquecer o histórico de maquiagens, que ajudaram a encobrir a real situação das finanças e tiveram a cumplicidade dos TCEs (Tribunais de Contas dos Estados).

Os estados podem ainda usar a bonança de empréstimos para direcionar recursos próprios à ampliação da despesa com pessoal, que, num momento de maré ruim, não poderá ser cortada. Isso já aconteceu de 2012 a 2014. Depois, ficaram anos parcelando salários.

As mudanças no RRF são ainda mais preocupantes. O objetivo é tornar opcionais as contrapartidas de ajuste hoje obrigatórias —como privatizações e corte de benefícios a servidores por tempo de serviço— em nome de um "foco no resultado". O estado decide como chegar ao reequilíbrio.

Nas palavras de um experiente técnico, o RRF é um programa desenhado para ser uma UTI, na qual o paciente deve seguir o tratamento prescrito, e não uma colônia de férias em que cada um escolhe suas atividades.

Além disso, é um desprestígio àqueles que já fizeram seus ajustes. Também cria um problema político para os governadores, que usam a barganha "a União me obriga" como forma de convencer suas Assembleias. Sem esse argumento, será difícil avançar nas medidas amargas.

O governo ainda quer criar exceções perigosas na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que podem ser usadas pelo Congresso Nacional para corroer os pilares da lei que, embora tenha suas falhas, ainda ajuda e muito a blindar as finanças públicas no Brasil.

O artigo 35 proíbe que um ente financie outro diretamente ou por meio de fundo, autarquia ou empresa estatal. É isso que impede, por exemplo, a União de assumir gastos ou dívidas de estados e municípios.

Agora, a Fazenda quer criar uma exceção para permitir que bancos públicos financiem a totalidade das contrapartidas que os estados precisam honrar nos contratos de PPPs (parcerias público-privadas). Técnicos experientes dão como certa a inclusão de outras exceções pelo Congresso Nacional, como uma permissão para a União financiar estados e municípios em situação de calamidade.

É legítima a visão de que o gasto público e o maior acesso de estados e municípios a fontes de crédito podem induzir o crescimento econômico do país. O que não se pode é ignorar a razão pela qual as regras para a concessão desses financiamentos foram endurecidas ao longo dos últimos anos: o elevado potencial de causar desequilíbrios.

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