O que a Reforma Tributária tem a ver com sonho de valsa, sorvetes e cerveja

Produtos cuja tributação depende de interpretação se tornaram símbolos de ações de planejamento

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São Paulo

A Reforma Tributária permitirá que o Sonho de Valsa volte a ser bombom e que a casquinha do McDonald's volte a ser sorvete. A não ser que bombons e sorvetes passem a ser enquadrados como alimentos com tributação adicional por serem prejudiciais à saúde.

Os dois casos acima se tornaram símbolos de ações de planejamento para reduzir a tributação de alguns produtos. Bombons passaram a ser chamados de waffles; sorvetes, de bebidas lácteas; perfumes, de água de colônia (veja casos abaixo).

As discussões sobre algumas mudanças de classificação foram parar no Carf (conselho de recursos fiscais) ou no Judiciário, em processos envolvendo barrinhas de cereal, farinha de rosca e sandálias crocs. Esse último caso, aliás, nem a reforma conseguirá resolver.

A foto mostra um bombom cortado com recheio cremoso. E três bombons embrulhados em papel alumínio verde
Bombom de chocolate recheado com licor de marula - Reprodução do site lugano.com.br

O texto original da PEC 45/2019 (Proposta de Emenda à Constituição) previa um único IVA (Imposto sobre Valor Agregado), com a mesma alíquota para todos os bens e serviços no país, substituindo cinco tributos: PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS.

Apenas itens classificados como prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente teriam uma tributação adicional com um Imposto Seletivo. O objetivo era taxar apenas bebidas alcoólicas, cigarros e armas.

A versão aprovada na Câmara, no entanto, traz mais de 20 grupos de exceções, lista que pode ser revista pelo Senado. Depois de aprovadas as mudanças na Constituição, será necessário regulamentar a reforma por meio de uma lei que vai dizer exatamente quais produtos terão tratamento específico ou favorecido.

Essa lei complementar definirá, por exemplo, as listas de bens e serviços com alíquotas de CBS e IBS (os principais tributos criados pela reforma) reduzidas em 60%, desde que estejam relacionados a alguns grupos de produtos. Entre eles, serviços de saúde, medicamentos, insumos agropecuários, alimentos e produtos de higiene. Alguns medicamentos e alimentos poderão ter alíquota zero.

Em evento realizado em agosto, o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, afirmou que não é possível descartar alguma controvérsia sobre o que é serviço de saúde, por exemplo.

Entre tributaristas, já há dúvidas sobre como enquadrar serviços de dentistas, nutricionistas e dermatologistas para fins estéticos. Ou se a cerveja será considerada alimento para consumo humano, com redução de 60% de IBS e CBS e isenção de Imposto Seletivo.

Bactericida e impressoras

Na lista de exceções há também os chamados regimes específicos, aqueles em que a cobrança é feita de forma diferenciadas do padrão, mas sem redução de carga. Isso inclui combustíveis e alguns serviços financeiros, imobiliários e de lazer, por exemplo, com regras e listas que dependerão de lei complementar prevista para ser enviada ao Congresso em 2024.

A avaliação de advogados tributaristas é que a reforma vai diminuir significativamente as brechas para buscar uma tributação menor —estudo do Insper estima em mais de 90% a redução do contencioso ligado a esses tributos. Ainda assim haverá espaço para discutir a classificação de alimentos, medicamentos e produtos de higiene, por exemplo.

"Pode ser que a gente mantenha alguma complexidade, mas muito menor do que a que temos hoje", afirma Carlos Eduardo Navarro, sócio do Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados e professor FGV (Fundação Getúlio Vargas).

"É natural que os contribuintes tentem encaixar os seus produtos na alíquota reduzida. Dizer que deo perfume ou deo colônia, porque têm substância bactericida, é produto de higiene e não cosmético, por exemplo."

Gilberto Ayres Moreira, sócio do escritório Ayres Ribeiro Advogados, afirma que as regras de classificação podem gerar vantagem competitiva para alguns contribuintes, mas são um problema para a maioria, uma vez que o enquadramento é feito pela empresa, e nem sempre o Fisco concorda com ele.

Ele cita como exemplo a discussão sobre classificar impressoras multifuncionais, um equipamento que possui mais de uma função, como fotocópia ou scanner.

"A Reforma Tributária vai facilitar muito a vida das empresas. Quanto menos exceções, mais fácil é a questão da classificação fiscal. Quanto mais você aumenta a complexidade da aplicação de uma lei, mais fácil criar abertura para planejamento tributário, confusão e algum contencioso", afirma.

Prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente

Luciano Martins Ogawa, tributarista sócio de Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados, diz que uma das maiores preocupações é o alcance de outro tributo criado pela reforma, o Imposto Seletivo.

A lei complementar vai definir uma lista de bens e serviços com tributação adicional, quando esses forem considerados como prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Nesse caso, a luta das empresas será para não ser enquadrada nesse critério.

E nesse ponto, a redação aprovada na Câmara já levanta debates. A PEC diz que esse imposto não incidirá sobre os bens ou serviços com alíquotas reduzidas em 60%, como alimentos destinados ao consumo humano. Mas não deixa claro se isso se refere a todos ou apenas àqueles que entrarão na lista a ser definida em lei complementar.

O tributarista destaca, por outro lado, que a reforma é positiva ao uniformizar o que entra ou não no critério de isenção para cesta básica. Atualmente, isso varia de acordo com o estado. Há pão de queijo em Minas Gerais, tapioca em diversos locais do Norte/Nordeste, erva-mate no Sul e até itens da construção civil, material escolar e bicicletas no Ceará.

"O que se pretende com a reforma é afastar isso, buscar uma padronização para que se acabe com esse custo Brasil de ter tantas diferenças de tributação. Não há dúvida de que o contencioso vai ser muito menor, porque agora a regra é não ter exceção", afirma.

Em termos de alíquota, as exceções da reforma podem representar uma tributação que passa de cerca de 22% para até 27%, segundo cálculos do Ministério da Fazenda.

Os tributaristas lembram que a classificação dos produtos é uma questão utilizada por diversos países para aplicação de tarifas e do Imposto de Importação, que não é afetado pela reforma. No Brasil, utiliza-se a NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul). Por aqui foram criadas também listas para tributação de IPI e ICMS, tributos extintos com a reforma. Também há alguma diferenciação para aplicação do PIS/Cofins, como no caso da cesta básica.

Navarro, da FGV, afirma que casos como o do Sonho de Valsa e do McDonald 's, relacionados ao IPI, tendem a ser resolvidos. Mas lembra que a reforma não tem impacto sobre o Imposto de Importação ou medidas de defesa comercial, como o direito antidumping aplicado sobre calçados Crocs. "Esse é um caso que não mudaria em nada com a reforma."

Ainda assim, a expectativa é de simplificação com o formato atual da reforma. "A uniformidade de alíquotas e o rol enxuto de bens e serviços com possibilidade de tributação diferenciada pode representar uma redução nos planejamentos tributários realizados por classificação dos produtos", afirma Daniela Teixeira, consultora tributária da Bento Muniz Advocacia.

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