Descrição de chapéu Financial Times China

Nenhum investidor tem uma história de vida tão incrível quanto a de Li Lu

Radical fugiu de Massacre da Paz Celestial e depois ganhou bilhões apostando na China

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Eleanor Olcott
Hong Kong | Financial Times

Na primavera de 1989, um trem lotado de estudantes chegou a Pequim. Seus vagões estavam tão cheios que os ocupantes se amontoavam nos bagageiros e embaixo dos assentos. Após chegarem à capital chinesa, eles saíram às ruas para participar de protestos pró-democracia desencadeados pela morte de um líder reformista popular. Um dos passageiros era Li Lu, de 23 anos.

Um estudante da Universidade de Nanjing, esguio e usando óculos, Li tinha embarcado sem passagem. Ele tentava se misturar à multidão que saía da estação em Pequim, quando um homem uniformizado o parou. Li temeu o pior, mas o cobrador apenas acenou para que ele passasse, indicando seu apoio aos manifestantes. Ele fez um sinal de V com a mão e sorriu. Agradecido pelo apoio, Li seguiu a multidão em direção à Praça da Paz Celestial, na capital chinesa.

O dissidente chinês, Li.Lu, em Washington. Ele foi um dos líderes estudantis mais procurados pelo governo da China antes de ganhar bilhões investindo no país
O dissidente chinês, Li.Lu, em Washington. Ele foi um dos líderes estudantis mais procurados pelo governo da China antes de ganhar bilhões investindo no país - Reuters

É difícil avaliar a escala da praça sem vê-la pessoalmente. É tão imensa que, num dia normal, o Portão da Paz Celestial parece estar no horizonte, muito longe. No dia em que Li chegou, estava cheia de massas de seres humanos que exigiam liberdade. Os manifestantes queriam uma reforma política, e alguns estavam preparados para passar fome por isso. As manifestações duraram meses, nos quais os estudantes se organizaram em facções e realizaram eleições para liderança. Apesar de não pertencer a uma das instituições proeminentes de Pequim, Li conquistou um assento. Ele representava os radicais.

Li nasceu em abril de 1966. Pouco depois, seus pais foram enviados para campos de trabalhos forçados em consequência da revolução cultural de Mao Zedong. Li passou a infância oscilando entre cuidadores e um orfanato. Aos 10 anos, ele sobreviveu a um catastrófico terremoto em Tangshan, que, segundo registros oficiais, matou 240 mil pessoas, incluindo todos os membros da família adotiva de Li.

Embora experiências como essa não fossem raras entre a sua geração, Li sabia que muitos estudantes na Praça da Paz Celestial o consideravam um estranho. Ele não se preocupou em tentar conquistar os duvidosos com discursos empolgantes, preferindo, em vez disso, trabalhar como um mediador de poder. Wang Juntao, um dos organizadores do protesto, observou que Li mantinha silêncio durante a maior parte das reuniões, absorvendo as opiniões divergentes. Segundo Wang Juntao, Li também cuidou para se aproximar das pessoas certas. Ele rapidamente se tornou amigo de Wang Dan, um líder estudantil da Universidade de Pequim, e impressionou Chai Ling, a chefe de um grupo de estudantes que se autodenominava QG de Defesa da Praça da Paz Celestial. Chai, que era mais radical, nomeou Li como um de seus vice-comandantes.

Alguns líderes estudantis conversaram com Wang Juntao sobre Li, curiosos sobre por que ele havia chegado a Pequim sem qualquer vínculo com as organizações por trás do movimento e por que não portava identificação. Eles se perguntavam se Li seria um espião. Veterano de protestos anteriores, Wang Juntao ignorou as suspeitas. Mas Li parecia diferente. Quando apertaram as mãos no primeiro encontro, o ativista mais velho sentiu suas mãos ásperas, de um trabalhador e não um acadêmico.

Wang Juntao preferiu se concentrar no importante papel desempenhado por Li na tomada de decisões dos estudantes. A maioria deles esperava negociar com o governo a fim de conseguir uma reforma política na China. Li não só não acreditava que as autoridades honrariam um acordo, como sempre pareceu defender os métodos mais agressivos para chamar sua atenção. Desempenhou um papel fundamental na orquestração de uma greve de fome de seis dias em meados de maio, que galvanizou a simpatia do público, mas também provocou a ira do governo.

Quando o moral dos manifestantes começou a baixar, Li anunciou que ele e sua namorada se casariam numa cerimônia pública simbólica. Nas fotos daquele dia, ele está usando uma velha camiseta e óculos escuros quadrados, com uma bandeira revolucionária pendurada no pescoço. Amigos aplaudiram o feliz casal com bebidas baratas e canções de casamento, e os tons de alegria e esperança do momento reenergizaram a multidão.

No final de maio, um milhão de pessoas estavam reunidas na praça. À medida que a presença policial e militar em torno delas se intensificava, alguns estudantes temiam que o exército estivesse se preparando para desocupar a Praça da Paz Celestial. O grupo de Chai e Li queria ficar. Nas primeiras horas do dia 4 de junho, as tropas marcharam, abrindo fogo contra os ativistas. Os tanques esmagaram tendas com manifestantes que dormiam dentro delas e bloquearam as rotas de saída, enquanto os soldados prendiam os que tentavam fugir. As autoridades afirmaram que 200 civis foram mortos; líderes estudantis estimaram o número em até 3.400.

Estudante em meditação durante protestos na Praça da Paz Celestisal em 1989
Estudante em meditação durante protestos na Praça da Paz Celestial em 1989 - Arquivo pessoal/Jian Liu via NYT

Após o massacre, o governo nomeou 21 estudantes procurados por liderarem o levante. Li, com seu cabelo preto despenteado e óculos de sol enormes estampados na mídia estatal, escondeu-se. Usando uma rota criada para contrabandear mercadorias ocidentais de Hong Kong, então ainda uma colônia britânica, ele conseguiu escapar. Wang Dan e Wang Juntao não tiveram tanta sorte. Embora Li estivesse livre, era um homem procurado. Quando finalmente regressou, décadas depois, tinha uma relação profundamente mais complexa com o estado chinês, e centenas de milhões de dólares sob seu comando.

No final de 1989, Li obteve asilo nos Estados Unidos. Nova York era difícil para alguém que nunca tinha estado fora da China comunista. Sem dinheiro e sem falar inglês, Li dependia da generosidade de pessoas nos círculos de direitos humanos que admiravam a posição assumida por ele e outros estudantes. Robert Bernstein, um proeminente ativista dos direitos humanos e executivo-chefe da gigante editora Random House, ajudou-o a se instalar. Outra ativista, Trudie Styler, lhe deu uma sacola com roupas de segunda mão que pertenceram ao marido dela, o astro do rock Sting. Mais tarde, Styler produziu um documentário baseado na história de vida de Li.

Li não quis ser entrevistado para esta reportagem. Sua empresa, a Himalaya Capital, colocou alguns executivos à disposição para esclarecer a evolução de seu pensamento ao longo dos anos.

O livro de memórias de Li, "Moving the Mountain" [Movendo a montanha], de 1990, descreve os acontecimentos tumultuados de sua infância na China. Numa entrevista alguns anos mais tarde, ele resumiu como eles moldaram sua perspectiva: "Tentei me identificar com qualquer família que me acolhesse e aprendi a me adaptar a qualquer ambiente em que me encontrasse", disse ele. Em Nova York, ele estava em situação semelhante. Aprendeu inglês durante um verão, antes de se matricular na Universidade Columbia, onde acabou se tornando um dos primeiros alunos a obter simultaneamente uma graduação em economia e uma pós-graduação em administração e direito. Nas aulas, sua seriedade e suas perguntas penetrantes impressionavam os outros. "Ele não se incomodava com a deferência ao professor, como muitos outros alunos", disse um ex-professor. "Você tinha a sensação de que ele estava indo para algum lugar."

A pergunta era: para onde? Como ativista, Li chamou a atenção para a situação de Wang Juntao ao realizar uma greve de fome de 15 dias diante do Congresso em 1991. Mas em meados dos anos 1990 os holofotes sobre a Praça da Paz Celestial já começavam a perder força, à medida que mais e mais dissidentes eram autorizados a deixar a China. Depois de chegar aos Estados Unidos, "sempre tive medo de como ganharia a vida", disse Li a um grupo de estudantes, muitos anos depois. E, em Columbia, ele fez um curso intensivo sobre o capitalismo americano. Depois de assistir a uma palestra proferida por Warren Buffett, Li começou a investir seu empréstimo estudantil no mercado de ações, obtendo retornos significativos.

Quando se formou, em 1996, Li tinha integrado com sucesso seu ativismo estudantil à necessidade de ganhar a vida. Ele ficou conhecido entre as celebridades de Nova York interessadas por direitos humanos, e sua graduação lhe rendeu um breve perfil na revista The New Yorker. As instituições de Wall Street fizeram fila para lhe oferecer emprego. Mas, dentro de um ano, Li abriu seu próprio fundo de hedge.

Os fundos de hedge estavam em plena expansão, aproveitando o crescimento econômico na década de 1990 nos EUA com estratégias de investimento cada vez mais criativas e arriscadas. Gestores como John Paulson, Steve Cohen e Ray Dalio tornaram-se estrelas, e Li aspirava alcançar esses cargos. Era praticamente inédito um recém-formado se aventurar por conta própria, e muito menos que cortejasse investidores de alto nível como Jerome Kohlberg, cofundador da renomada empresa de aquisições de private equity KKR. Mas a maioria dos formandos não tinha a história de vida de Li. A decisão de investir com ele, disse Kohlberg na época ao The New York Observer, "não era meu conselho habitual, mas minha admiração prevaleceu".

O fundo de hedge Himalaya Capital teve um início desfavorável. Ele procurou oportunidades na Ásia, mas, após a crise financeira de 1997 na região, o Himalaya perdeu 19% de seu valor no primeiro ano. Um de seus maiores investidores retirou-se pouco depois. Li logo se cansou do day trading e das vendas a descoberto, o que o expunha a riscos de queda ilimitados e poderia significar a morte de um pequeno fundo se uma ação-alvo disparasse. A aquisição de posições em ações japonesas e coreanas que tinham sido prejudicadas pela crise ajudou Li a se recuperar e, em meados da década de 2000, tinha cerca de US$ 100 milhões sob gestão. Sua firma individual começou a contratar.

Os antecedentes de Li fizeram dele uma figura única nos círculos de investimentos dos EUA –o dissidente chinês que estava fazendo fortuna ao adotar valores capitalistas ocidentais. A transição de "combatente pela liberdade a yuppie de Manhattan", como disse um jornal, estava fadada a causar desconfiança. Em 1989, ele repreendeu funcionários do governo americano que visitaram Pequim por sua "determinação cínica a fazer negócios com a China". Agora, Li abraçou sua mudança de filosofia, falando abertamente sobre uma estratégia de longo prazo para investir no crescimento da China e exaltando os efeitos democratizantes da internet emergente. Ele também estava fazendo conexões com outros imigrantes chineses. Entre eles, Xiong Wanli, um magnata do setor imobiliário que Li conheceu em Los Angeles no final da década de 1990.

Em 2003, Li foi convidado para o almoço do Dia de Ação de Graças na casa em Santa Barbara (Califórnia) de uma mulher que conheceu no meio da defesa dos direitos humanos. O marido da anfitriã era diretor da Berkshire Hathaway, o conglomerado que Buffett construiu, tornando-se o investidor mais bem-sucedido da história do capitalismo. Charlie Munger, vice-presidente da Berkshire e braço direito de Buffett, também estava lá. Munger e Li puxaram conversa sobre ações e ainda conversavam algumas horas depois. Foi o início de uma parceria que durou 20 anos.

"Ele era um jovem muito inteligente e autoconfiante", disse Munger, que tem 99 anos e ainda é vice-presidente da Berkshire. "Ele gostava muito de ser diretor, em vez de ser um agente trabalhando para outra pessoa. Isso ficou imediatamente óbvio para mim, claro, é como eu sou. Então, naturalmente, tive uma simpatia considerável por ele. Tentei convencê-lo a trabalhar na Berkshire, mas estava lutando contra a natureza."

A decisão de Li impressionou Munger. "Não estou interessado em revolução", disse ele. "Sou um capitalista. Foi a aptidão capitalista o que me atraiu, não a sua história revolucionária."

No início, Munger aconselhou Li a se refazer totalmente como investidor nos moldes de Buffett. Isso significava abandonar as negociações cheias de adrenalina em favor de uma forma de "investimento em valor" em longo prazo. A abordagem de Buffett enfatizava o financiamento de ativos subvalorizados que poderiam ser cultivados para crescerem ao longo de décadas. Li chegou da China com uma visão muito diferente. "Minha impressão do mercado de ações era a de Xangai na década de 1930, retratada na peça ‘Sunrise’, de Cao Yu –cheia de espertezas, traições, sorte e derramamento de sangue", escreveu ele anos depois, num prefácio à edição chinesa de "Poor Charlie's Almanack: The Wit and Wisdom of Charles T. Munger" [O Almanaque do pobre Charlie: a inteligência e a sabedoria de Charles T. Munger]. Adotando a filosofia de Buffett, o mantra de Li passou a ser "informação precisa e completa". Completa às vezes significava ir muito longe para ter uma visão do CEO de uma empresa pesquisada pelo Himalaya, como frequentar sua igreja ou conversar com seus vizinhos, segundo artigos da época.

Depois que Li iniciou um novo fundo, em 2004, Munger lhe confiou US$ 88 milhões do dinheiro da família. Foi uma bênção para o jovem gestor financeiro chinês, que de outra forma teria de se esforçar para angariar fundos e, ao mesmo tempo, apresentar retornos mensais. "Tivemos ótimos retornos durante muito, muito tempo. Esses US$ 88 milhões se tornaram quatro ou cinco vezes mais", disse Munger. Por exemplo, Li comprou Kweichow Moutai antecipadamente. A marca de bebida destilada tornou-se a bebida nacional oficial logo após a revolução comunista. À medida que a China crescia, a Moutai se tornou a bebida preferida para brindar aos dignitários estrangeiros e o suborno preferido dos burocratas de alto escalão. Como escolha de ações, é lendária nos círculos de investimento asiáticos, semelhante a comprar Apple no final da década de 1990. Algumas vezes ela foi a maior empresa listada na China. "Foi muito barato, lucros de quatro a cinco vezes", disse Munger. "E Li Lu simplesmente encostou o caminhão, comprou tudo o que pôde e ganhou uma fortuna."

Todo mês de junho trazia o doloroso aniversário da Praça da Paz Celestial. Wang Dan, que estava no topo da lista de procurados pelo governo chinês, passou grande parte dos nove anos seguintes na prisão, antes de finalmente ter o asilo nos EUA concedido em 1998. O colega ativista de Li desempenhou um papel de destaque na sua autobiografia. Wang Juntao, o homem mais velho que notou as mãos rudes de Li, foi condenado a 13 anos por conspirar para subverter o governo. Depois de uma fuga angustiante da China, Chai Ling desembarcou nos EUA e obteve um MBA em Harvard. (Ela não respondeu a pedidos de entrevista.)

Para o aniversário de 1999, uma rede de notícias americana localizou alguns dos "heróis da Praça da Paz Celestial ". Wang Dan disse que sua primeira prioridade era voltar a juntar-se à campanha pela mudança na China após seu exílio nos EUA. "Meu sonho é poder fazer alguma coisa", disse ele. Chai, a antiga radical nomeada para o Prêmio Nobel da Paz em 1990, foi direta: "Ser uma ativista política não vai mudar a China, vamos encarar os fatos. Tentamos há dez anos. Tínhamos milhões de pessoas conosco. Não funcionou". Li tocou uma nota diferente. Ele ainda se autodenominava dissidente, mas admitiu que tinha se afastado em grande parte do ativismo político, dizendo ao entrevistador que era "irreal" continuar se manifestando nas ruas de Nova York.

Wang Juntao tem agora 65 anos. Ele ainda se refere a si mesmo como um "revolucionário profissional". Falando por telefone no início deste ano, de seu escritório em Flushing, em Nova York, ele explicou que a vida de um dissidente é, em alguns aspectos, simples, apesar dos custos pessoais consideráveis. "Se você quer ser um herói, é fácil se sacrificar", disse ele. Por outro lado, quem segue um caminho como o de Li tem que ser "complexo". "Você tem que equilibrar muitas coisas."

Começando aproximadamente com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, a ideia de que o capitalismo de livre mercado democratizaria a China teve uma boa recepção. Embora Li ainda fosse um pária político em Pequim, seu sucesso nos negócios fez que ele parecesse uma ponte natural entre os dois países. Como disse Kohlberg, da KKR, em 1998: "Gostaria de vê-lo ter sucesso e, eventualmente, ajudar a trazer a China para o século 21 e ser uma democracia, e penso que, nessa altura, ele estará excepcionalmente qualificado".

O maior sucesso inicial do Himalaya reforçou essa noção. Em 2002, Li investiu na BYD, então uma fabricante pouco conhecida de baterias elétricas. Embora ainda estivesse ostensivamente proibido de visitar a fábrica da empresa em Shenzhen, ele acreditava que o futuro residia no poder industrial da China e no poder de compra dos seus 1,4 bilhão de consumidores. Ele convenceu Munger de sua visão, e a Berkshire assumiu uma participação de 10% na BYD em 2008. "Eu não gostava do setor automobilístico", lembra Munger. "É difícil fazer fortuna no ramo." Mas, "funcionou tão bem que o investimento inicial na BYD foi um pequeno milagre". A empresa destronou a Tesla como maior produtora mundial de veículos elétricos em vendas no ano passado.

Quer fosse óbvio na época, quer não, a apoteose da ideia de que o comércio levaria a uma China mais livre ocorreu em 8 de agosto de 2008, durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Nessa altura, a China era a terceira maior economia do mundo e estava em crescimento. Na preparação para os Jogos, grupos de direitos humanos tentaram destacar os abusos do governo contra os tibetanos e a perseguição à seita religiosa Falun Gong. Mas os apelos por boicotes tiveram pouco resultado. Após os Jogos, políticos e executivos ocidentais voaram para o país para assinar acordos comerciais e de investimento. A corrida ao capital estrangeiro só foi intensificada pelo colapso nas economias ocidentais causado pela crise financeira em curso. "Foi quando esqueceram o massacre de 4 de junho", disse Wang Juntao. "Depois de 2008, se você for um inimigo do governo chinês, será impossível arrecadar dinheiro em Wall Street."

Essas macroforças criaram divisões entre dissidentes antes muito unidos. Mas, quando Wang Juntao chegou aos EUA, ele e Li se encontraram para tomar um café e conversar sobre o futuro da China. O relacionamento deles mudou depois que Wang se formou em Columbia em 2006 e viajou para a Nova Zelândia para continuar seus estudos. Ao tentar regressar à China em 2007, Wang Juntao foi informado pelo governo que não poderia regressar. "Disseram que se eu ficasse na China minha vida seria um problema." Ele voltou aos EUA em 2008, mas não viu Li desde então. "Eu entendo. Não importa a decisão que ele tomou", disse. "Eu não preciso dele, e se eu me aproximar dele vou atrapalhar seu caminho. Se tomarmos uma xícara de café juntos e o governo chinês souber, pensará que é demais."

Sentado num sofá de couro marrom no bar do Fort Lauderdale Country Club, na Flórida, Xiong Wanli diz que na China da década de 1990 "ganhar dinheiro era realmente muito fácil". Xiong também participou dos protestos da Praça da Paz Celestial mas, nos anos que se seguiram, permaneceu na China, como a maioria da "turma dos 89". Depois da Praça da Paz Celestial, mudou-se para a antiga vila de pescadores de Shenzhen, que estava sendo transformada numa metrópole em expansão. Sua população hoje é de 17,6 milhões, maior que a de Nova York.

Depois de trabalhar durante vários anos numa incorporadora estatal, Xiong fundou sua própria empresa imobiliária, com o objetivo de alavancar as ligações que tinha feito com funcionários do governo local e central nos campos de golfe que surgiram em torno de Shenzhen. Eram os dias que antecederam a repressão anticorrupção de Xi Jinping, quando os laços estreitos entre políticos e executivos eram uma realidade aceita nos negócios na China. "Havia muita terra naquela época", disse Xiong. Ele ficou rico com o boom imobiliário que se seguiu.

Em 2002, Xiong mudou-se para os EUA para fazer mestrado em Harvard. Ele lembra que os gestores de fortunas privadas o perseguiram quando ele chegou, enquanto os cassinos enviavam aviões particulares para levá-lo a Las Vegas. Ele também acreditava que a prosperidade seria uma influência liberalizadora na China. Xiong conheceu Li num campo de golfe. Os dois investiram no Duowei, um site de mídia em chinês fundado por um jornalista exilado chamado Ho Pin. O site se apresentava como o meio de comunicação crítico que estaria preparado para entrar na China assim que o país se liberalizasse. Apesar de ter sido proibido na China, seus furos o tornaram uma pedra no sapato de Pequim. Por duas vezes, previu corretamente a formação do Comitê Permanente do Politburo do PCC, o equivalente chinês a um gabinete e um segredo bem guardado na preparação para o congresso do partido, realizado de cinco em cinco anos.

Xiong viu isso como um investimento no futuro da China. O Duowei, atendendo aos milhões de chineses que vivem no exterior e que queriam uma voz mais crítica do que a oferecida pela imprensa nacional, pareceu um bom investimento financeiro para Li. (O Himalaya e investidores afiliados detinham pouco menos de 50% da matriz do Duowei.)

Em abril de 2008, a equipe de direção do Duowei fez uma reunião rotineira do conselho. Xiong ligou de Wuhan. Através da linha barulhenta, ele ouviu a voz de Li anunciar que estava vendendo sua participação. O pronunciamento chocou Xiong, que pediu a Li que lhe vendesse a participação. Mas Li vendeu para Yu Pun-Hoi, um barão da mídia amigo de Pequim. Xiong diz suspeitar que Li vendeu para Yu para cair nas boas graças e aumentar suas chances de se tornar um canal para Wall Street na China. De acordo com um porta-voz do Himalaya, a decisão de desinvestir no Duowei fez parte de uma liquidação mais ampla do seu fundo de capital de risco. A proposta de Yu foi aceita como a oferta mais alta.

Nos anos seguintes, ficou claro que a ideia de que o comércio criaria uma China democrática era uma fantasia. O presidente Xi Jinping consolidou seu controle do poder, expurgando rivais políticos e empresariais numa repressão anunciada como uma campanha populista anticorrupção. Ele aboliu os limites de mandato em 2018. A política externa cada vez mais agressiva e a postura militar de Pequim em relação a Taiwan, juntamente com a repressão a grupos minoritários no país, levaram os governos e as empresas ocidentais a se distanciarem. A adoção de aspectos do capitalismo de mercado conduziu a uma China muito mais rica e poderosa, mas, em última análise, mais autoritária.

Em meio às mudanças, o site Duowei transferiu sua sede para Pequim e, embora permanecesse proibido na China, tornou-se mais cauteloso na cobertura do regime. No ano passado, fechou, alegando dificuldades financeiras.

No final de setembro de 2010, uma fotografia desfocada no arborizado campus da BYD em Shenzhen apareceu num jornal de Hong Kong. A imagem mostrava fileiras de gerentes da empresa uniformizados e funcionários do governo alinhados atrás de convidados famosos dos EUA. Sentados na frente, em trajes casuais, estavam o fundador da Microsoft, Bill Gates, Buffett e Munger. No final da fila estava Li, de óculos escuros. Embora a cobertura da viagem incluísse principalmente fotos de Buffett, a mídia estatal chinesa confirmou os relatos da presença de Li. Foi o primeiro caso de reentrada de um estudante exilado, dos 21 da lista do governo.

A China estava interessada em cortejar investidores estrangeiros –e não havia ninguém mais proeminente do que Gates e Buffett. Aliados poderosos nos EUA fizeram lobby para que Li fosse incluído na viagem, segundo uma pessoa envolvida, o que ajudou a facilitar sua passagem. Foi acordado que Li evitaria publicidade. Mas ali, sentado entre os bilionários americanos e os representantes do poder chinês, ele parecia o construtor de pontes de que se falava 20 anos antes.

A experiência foi reveladora para ele. Por um lado, finalmente conseguiu ver o interior de seu valioso investimento, a BYD. Embora o regime autoritário da China tenha permanecido em vigor, o que Li viu do país economicamente transformado validou suas atitudes em relação a Pequim, segundo a pessoa que participou da viagem. "Os protestos aceleraram o ritmo das reformas", argumentou essa fonte. "Algumas dessas demandas se tornaram realidade, mas não todas. A vida das pessoas comuns melhorou."

Li fez viagens subsequentes à China, visitando empresas e proferindo palestras sobre investimento em valor nas principais universidades de Pequim. Em 2014, juntou-se ao website de microblogging Weibo, onde publicou sobre o desenvolvimento chinês e atribuiu sua ascensão econômica sem precedentes, em parte, a um partido governante com "poder executivo e talentos extraordinários". Tornou-se uma espécie de celebridade nos negócios e finanças chineses, um exemplo venerado de uma pessoa nascida na era da revolução cultural que conseguiu se tornar um sucesso tanto na China quanto nos EUA. Em 2019, Li deu um seminário na Universidade de Pequim, não muito longe da praça onde arriscou a vida para conseguir mudanças políticas três décadas antes. Na China, ele conquistou uma nova personalidade pública, escrevendo livros sobre investimentos e ensaios sobre a modernização chinesa, desprovidos de referências aos seus tempos de estudante.

Para Wang Dan, a amizade forjada com Li na praça de Pequim é hoje uma memória distante. Depois que o governo Clinton conseguiu sua libertação da China, Wang Dan tornou-se acadêmico. Ele disse que foi amigo íntimo de Li na época em que Wang morou nos EUA, e se reuniam para discutir as perspectivas da democracia chinesa. Ele foi um dos padrinhos no segundo casamento de Li. Afastaram-se depois que Wang Dan foi lecionar em Taiwan, cessando totalmente a comunicação após a primeira visita de Li à China. Falando por telefone de sua casa em Maryland, ele disse que Li "escolheu cooperar com o governo. Ele tem a liberdade de fazer essa escolha, mas não é uma escolha moral. A riqueza de Li hoje está relacionada ao movimento da Praça da Paz Celestial. Ele se beneficiou desse movimento. É muito antiético apoiar os funcionários do governo que mataram os estudantes naquela época".

Pequim também colheu dividendos políticos com a transformação de Li, acredita Wang Dan. "O governo precisa provar que os estudantes de 1989 admitiram seus erros", disse ele, ecoando as críticas de Xiong. "Eles estão usando Li Lu como modelo." Desde que foi entrevistado para esta reportagem, Wang Dan deixou o cargo de professor em Taipei, após acusações de agressão sexual, que ele nega. Uma fonte próxima a Li Lu disse que ele conseguiu arrecadar dinheiro devido ao seu histórico de investimentos, começando quando estava em Columbia. "Foi com base nisso que ele conseguiu construir o Himalaya Capital, não porque fosse um manifestante estudantil."

Mas a mentalidade de Li mudou. Ao longo dos anos, ele passou a se ver mais como um imigrante do que como um refugiado. "Se você continuar se considerando um refugiado político, a vida será mais dura", disse uma pessoa familiarizada com seu modo de pensar. "Estamos lidando com uma realidade diferente, onde ainda consideramos a China como nosso lar... Essa não é uma vida fácil." Munger disse: "Ele mudou. Procurava uma maneira de ter grande sucesso no mundo. Li Lu não é mais um revolucionário. Ele é um capitalista. Você não pode encontrar um capitalista mais capitalista do que Li Lu".

Os visitantes dos escritórios do Himalaya, no 21º andar de um edifício alto no centro de Seattle, seriam perdoados por pensarem que entraram numa biblioteca. Exceto por uma máquina de remo enfiada num canto, faltam ao escritório alguns apetrechos usuais da alta finança. Monitores da Bloomberg não se elevam acima dos analistas, nem há televisões transmitindo notícias financeiras. O Himalaya mudou-se de Wall Street para Pasadena, na Califórnia, em 2007, para ficar mais perto de Munger, antes de se estabelecer no estado de Washington, com impostos mais baixos, em 2018. Cada vez, a configuração do escritório foi copiada em carbono da Berkshire Hathaway, onde as equipes de analistas cobrem detalhadamente um punhado de empresas e se reportam diretamente a um tomador de decisão central. "Todos nós temos um propósito: ajudar Li Lu a tomar decisões de investimento", disse Gene Jing Chang, COO do Himalaya e funcionário mais antigo, depois de Li.

A empresa administra atualmente US$ 14 bilhões em ativos. Em contraste com seu período inicial sob os holofotes da mídia nos EUA, Li não corteja ativamente novos investidores, tendo encontrado um fluxo constante de indivíduos com patrimônio elevado e fundos de pensões para apoiar o Himalaya. Muitos deles se reúnem todos os anos em Omaha para a assembleia geral da Berkshire Hathaway, o encontro definitivo de investidores de valor. Grande parte da riqueza pessoal de Li está vinculada ao fundo. Sua aposta definidora continua a ser o investimento na BYD.

Li prefere a solidão às multidões, atualmente. Quem o conhece diz que ele tem um apetite voraz pela leitura. Ele não gosta de fazer reuniões pela manhã, preferindo reservar esse tempo para absorver relatórios da empresa e notícias financeiras. De seu escritório, forrado de livros do chão ao teto, ele convoca analistas para reuniões individuais para discutir ideias de investimento. "Brincamos que o Himalaya é uma instituição acadêmica, onde Li Lu é o professor, eu sou o professor assistente e os analistas são os alunos", disse Chang.

Recentemente, à medida que as relações com os EUA se deterioravam, tornou-se mais difícil para Wall Street defender laços mais estreitos com a China. Alguns grandes fundos patrimoniais e de pensões dos EUA estão reduzindo investimentos ou desinvestindo totalmente no país. Os principais executivos de muitas das maiores empresas dos EUA passam noites sem dormir pensando em como lidar com a tensão. A BYD não vende seus automóveis de passageiros nos EUA por motivos políticos. Três décadas depois de ativistas estudantis, incluindo Li, terem feito lobby para que os EUA cortassem os laços com o país, está ocorrendo uma dissociação parcial. A última visita de Li à China ocorreu em 2019, pouco antes do início da pandemia.

Pessoas próximas do seu pensamento argumentam, no entanto, que os destinos dos dois países estão mais interligados do que nunca. Quando as notícias da Covid-19 surgiram pela primeira vez em Wuhan, Li mobilizou suas ligações em ambos os lados do Pacífico. Inicialmente, enviou suprimentos médicos dos EUA para a China e depois negociou acordos para a BYD vender máscaras faciais nos EUA. Milhões de consumidores americanos que as compraram nas prateleiras da Costco ficaram mais familiarizados com o logotipo circular da BYD como uma marca médica do que como uma empresa automobilística.

No escritório, Li começou a organizar almoços de equipe diariamente por vídeo, disse Caroline Kim, chefe de relações com investidores do Himalaya. "Ele estava muito preocupado com os funcionários, muitos dos quais não têm família nos EUA. Parece muito com uma família." Mais tarde, Li foi cofundador da Fundação Asiático-Americana, arrecadando US$ 1,1 bilhão para combater uma onda de racismo antiasiático na sequência da pandemia.

Agora com 57 anos, Li está nos EUA há mais de metade da sua vida, e é cidadão americano há quase 30 anos. Ele se descreveu como 100% americano e 100% chinês. Ele tem botas de caubói e gosta de falar sobre o sonho americano que o enriqueceu. No entanto, seria absurdo comparar a viagem de Li com a da maioria dos imigrantes, tanto pelas circunstâncias históricas em que começou quanto para onde finalmente o levou. Com seus funcionários, Li não fala muito sobre o passado. É "uma parte muito pequena da sua história pessoal", diz Chang.

Na sua autobiografia, Li escreveu que ele e seus companheiros revolucionários prometeram se encontrar novamente na Praça da Paz Celestial 50 anos após o movimento. "Levaríamos nossos netos e nossos diários para mostrar aos outros", escreveu ele. Mas se esse grupo de revolucionários exilados, incluindo Wang Dan, Wang Juntao e Chai Ling, tentasse cumprir essa promessa hoje, apenas Li seria capaz de pôr facilmente os pés em solo chinês. Quem Li Lu teve que se tornar para que isso acontecesse? Ele disse ao Museu Nacional de História Americana, para um projeto de história oral, em 2016: "Sou um sobrevivente".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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