Com mesma escolaridade e experiência, negros ganham 13% menos que brancos

Discriminação racial é parte da explicação para salário menor, dizem pesquisadores; série aponta estagnação em 40 anos

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São Paulo

"Queremos um 'aquilombamento' digital, fazer com que homens e mulheres pretos se sintam confortáveis naquele ambiente, mostrar que a área de tecnologia tem bons empregos e que não há motivo para o nosso povo não estar aqui", conta Amanda Vieira, 29, sócia da AfroPython.

A startup surgiu em Porto Alegre, em 2017, como um grupo de amigos e voluntários que tentavam unir outros jovens que não se sentiam representados nas feiras, eventos e empresas do setor. Hoje eles promovem cursos e oficinas de capacitação para profissionais negros de todo o país.

Amanda Vieira, que promove a capacitação de pessoas negras em tecnologia
Amanda promove capacitação de pessoas negras em tecnologia - Rafaela Araújo/Folhapress

Em um treinamento recente, chamado de Odisseia Ancestral, a introdução à lógica de programação foi integrada à cultura africana, com analogias entre o código binário e o jogo de búzios.

"Parte do desafio é trabalhar a autoestima e o senso de pertencimento, por estarmos em profissões excludentes. São menos pessoas pretas que entram nessa área e falta acolhimento", diz Viera, que hoje mora em Salvador.

Atrair mulheres e homens negros para empregos que pagam melhores salários, como os ligados à tecnologia, e assim ajudar a reduzir as desigualdades no mercado de trabalho e contornar a discriminação não é um desafio simples.

Um comparativo inédito feito por pesquisadores do Insper aponta que trabalhadores negros com características produtivas semelhantes aos brancos —como nível de escolaridade e tipo de vínculo, formal ou informal— ganham, em média, de 13% menos do que os colegas brancos.

Os dados são de 2021 e apontam que essa condição persiste há 40 anos: em 1982, quando a série tem início, esse número era de 13,6% e de 14,2% na média do período.

Os dados fazem parte do livro "Números da Discriminação Racial", dos economistas Michael França (que também é colunista da Folha) e Alysson Portella, ambos do Núcleo de Estudos Raciais. Os números para o ano de 2021 eram os mais recentes quando da publicação.

Segundo os economistas, ainda não é possível dimensionar quanto dessa diferença de salário entre pessoas nas mesmas condições, sendo a raça o fator que distingue esses trabalhadores, pode ser atribuído apenas à discriminação racial, mas o dado serve de norte.

A série mostra que esse percentual atingiu seu ápice (18,1%) em 1989, no fim do governo de José Sarney e em um período turbulento de descontrole da inflação, e teve seu patamar mais baixo em 2011 (12,3%), quando a taxa de desemprego chegou a 4,7% em dezembro daquele ano, sob Dilma Rousseff (PT).

Para chegar a esse percentual, o estudo comparou a renda de trabalhadores negros e brancos condicionando diversas características que influenciam os salários (também foram considerados atributos como experiência, região do país em que vivem, residência na área urbana ou rural e gênero).

Os economistas ressaltam que foi somente a partir dos anos 2000 que a desigualdade salarial começou a cair. Nesse período, os aumentos da escolaridade média e valorização do salário mínimo acabaram se refletindo na questão racial, mas não foram suficientes para mudar o cenário.

"Estamos falhando em incluir a população negra na economia. As ações afirmativas permitiram que uma pequena quantidade avançasse, mas se olharmos para a massa, há uma estagnação e em alguns indicadores, até uma regressão", diz França. "Se quisermos realmente incluir o negro na economia, muito mais precisará ser feito."

Ele ressalta que, sem olhar para o aumento da produtividade do trabalhador e ampliar as oportunidades de formação e treinamento para as periferias, o Brasil irá perpetuar desigualdades. "Até pela dinâmica do mercado de trabalho, vai ficar cada vez mais caro incluir na economia moderna quem hoje já é excluído."

"Achávamos que o indicador estava melhorando, mas o gráfico quebra as expectativas. Em termos de diferenças totais, houve uma melhora nos anos 2000, mas isso é um reflexo da política de redução da desigualdade", diz Portella.

O levantamento foi feito a partir de dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e da Pnad Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O estudo, portanto, usa o mesmo conceito do IBGE, que considera negras as pessoas que declaram como pretas ou pardas.

Ele também aponta que os brasileiros que se declaravam negros ganhavam 60,1% do que ganhavam os brancos em 2021, considerando-se a renda total obtida com o trabalho —40 anos antes, esse percentual era de 48,8%.

Quando considerada a renda domiciliar per capita (que inclui outras fontes de renda por pessoa além do salário, como a aposentadoria), negros ganhavam 50,9% dos brancos, ante 44,6% em 1982.

Nestes dois casos, a comparação se dá pelo percentual de rendimento dos negros em relação aos brancos e mostra uma pequena melhora em relação à década de 1980.

Os números também mostram que as diferenças são mais profundas, a depender do gênero: o desemprego para mulheres negras, em dados anuais, era de 20,5% em 2021, de 13,7% para mulheres brancas, 12,8% para homens negros e 9,4% para homens brancos. E entre os 10% mais pobres, negros ganhavam 64% dos brancos em rendimentos do trabalho no mesmo período.

Para Portella, uma forma de atacar o problema seria uma política pública integrada, que considere tanto a baixa renda quanto a questão racial e de gênero.

"Os dados mostram que boa parte das desigualdades se devem a fatores que acontecem fora do mercado de trabalho. O gap salarial se reduziria resolvendo a questão do acesso à educação de qualidade."

Ele lembra que parte das vantagens que trabalhadores homens e brancos têm se deve a uma rede de contatos que refletem o privilégio social —ter amigos ocupando cargos de maior destaque facilita a inserção no mercado e a manutenção de vínculos em momentos de crise.

"Vai ser preciso desenhar algum tipo de política específica para mulheres e negros. Alguns países determinam que o governo firme contratos com empresas com políticas afirmativas, por exemplo, e algumas empresas e instituições de ensino já implantaram programas de inclusão voluntariamente."

As políticas públicas precisam chegar na periferia de forma a integrar os diferentes aspectos da vida do cidadão, diz França. "Ele precisa ter o mesmo conjunto de oportunidade de quem vive em lugares mais estruturados. Se o Estado fizer o básico, já vamos ter uma mudança significativa na realidade de muitos brasileiros."

Também do Insper, o professor Raulison Alves Resende desenhou um projeto de capacitação gratuita para negros periféricos, chamado BiT (Black in Tech), que está previsto para começar no ano que vem, a depender de atrair mais patrocinadores.

A ideia é selecionar jovens de 18 a 24 anos, com ensino médio completo e conhecimento de informática, para um curso de capacitação de cinco meses e encaminhamento para o mercado de trabalho.

Para novembro, ele planeja uma versão menor do projeto, chamada de BiT Experience, em que irá promover um ciclo de palestras com nomes do setor e criará um banco de talentos com os inscritos, que serão selecionados para a versão ampliada.

"As áreas que oferecem melhores empregos ainda são muito excludentes. O desafio é encontrar e reter esses talentos, eles estão nas periferias das cidades brasileiras, esperando por uma oportunidade."

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