A possibilidade de compras diretas com vendedores internacionais, especialmente chineses, e até mesmo o envio interno de produtos pelos Correios alteraram o perfil do público comprador do Paraguai.
Em vez de um grande volume de sacoleiros viajando em centenas de ônibus rumo a Foz do Iguaçu (PR) e Ciudad del Este —cena tradicional nas últimas décadas—, o movimento na região da fronteira do Brasil com o país vizinho agora é formado mais por turistas que gastam valores próximos à cota permitida (US$ 500, ou cerca de R$ 2.500) e por um tipo de comprador invisível: o contrabandista profissional, integrante de quadrilhas internacionais que atuam na região da fronteira com o Paraguai.
Ciudad del Este, principalmente, e também Salto del Guairá, cidade paraguaia vizinha de Guaíra (PR), seguem muito movimentadas por grandes quadrilhas de contrabandistas por causa dos preços atrativos para o comércio ilegal em larga escala.
O dólar na casa dos R$ 5, o risco de roubos dos produtos nas rodovias por "piratas do asfalto" e o aperto na fiscalização adotado por órgãos de repressão brasileiros têm assustado compradores convencionais e consolidado a modificação do perfil do consumidor da fronteira nos últimos anos.
A conta é simples: por mais que os preços sejam bons no país vizinho, dependendo da compra, fica mais barato para o consumidor encomendar o produto a ter de ir buscá-lo, gastando tempo e correndo riscos.
Números das autoridades brasileiras ajudam a explicar a queda no movimento. No pátio da Receita Federal, em Foz do Iguaçu, por exemplo, havia cerca de 30 ônibus apreendidos à espera de serem abertos para conferência quando a Folha esteve no local —número que, no passado, chegou a ser o dobro.
Foram apreendidos neste ano 147 ônibus até outubro. Há uma década, esse volume era mais do que o triplo.
O cerco da fiscalização é crescente. De janeiro a setembro, as apreensões na região de Foz do Iguaçu somaram R$ 450,5 milhões, segundo a Receita, ante R$ 328,4 milhões em igual período de 2022, que hoje dariam R$ 344,4 milhões corrigidos pela inflação.
Cigarro é o principal produto apreendido na fronteira, com um total de R$ 176 milhões neste ano, patamar semelhante aos R$ 174,2 milhões de 2022 (R$ 182,7 milhões, atualizados), o que indica uma atividade constante do contrabando, na avaliação dos órgãos de repressão ouvidos pela Folha.
Também foram apreendidos neste ano na fronteira R$ 107 milhões em eletroeletrônicos, R$ 60 milhões em veículos, R$ 16,8 milhões em produtos de informática e R$ 6,5 milhões em bebidas alcoólicas.
No caso dos veículos, o valor elevado se deve ao fato de eles também serem levados quando há apreensão de contrabando em seu interior, principalmente em casos de fundos falsos nos carros e camionetes.
"O sacoleiro comum, que nós identificávamos lá atrás, já não tem a mesma expressão. Não precisa ir para o Paraguai, você pega os produtos aqui na [rua] 25 de Março, direto da China ou pela internet", afirmou Edson Vismona, presidente do FNCP (Fórum Nacional de Combate à Pirataria) e do Etco (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial).
"Não há mais necessidade de ir para o Paraguai, assumir o risco, já pega o produto aqui dentro, ou viabiliza via marketplaces a compra desses produtos, que chegam [da China]. E é um grande desafio conseguir conter a entrada desses produtos nos Correios", disse.
O perfil de compra também mudou. CDs e DVDs —outrora figurantes do topo do ranking das apreensões e das preocupações das ações de combate à pirataria— somaram apenas R$ 44 mil em apreensões neste ano (R$ 47 mil, em 2022), com tendência ao desaparecimento.
Vismona afirmou que o país saiu de uma "visão inocente", com os sacoleiros, para uma atividade com anteparo de organizações criminosas. "Por isso que cresce o [contrabando] de cigarros."
Ele apontou ainda preocupação com a isenção de imposto de importação para compras de até US$ 50 (cerca de R$ 244,62 hoje), que, em sua avaliação, vai na contramão de combater mercadorias ilícitas. "Ao contrário, facilita a sua penetração no mercado brasileiro."
Metade das apreensões na fronteira é feita pela Receita Federal, que é quem atua na aduana na ponte da Amizade e na fronteira entre Guaíra e Salto del Guairá, enquanto o restante é dividido entre os outros órgãos de repressão.
Na sede da Receita em Foz do Iguaçu, há uma máquina para a destruição de cigarros com capacidade de retirar de circulação 1.200 caixas por dia, carga de uma carreta.
"O cigarro é um problema sério, porque ele é volumoso [e ocupa muito espaço no depósito]. Muitas unidades próximas trazem cigarros para que a gente destrua aqui; a máquina destrói e separa os resíduos de acordo com seu tipo, possibilitando reciclagem e compostagem do fumo", disse o auditor fiscal Hipólito Caplan, delegado-adjunto da Receita Federal em Foz do Iguaçu.
O combate a essa forte atuação do contrabando profissional tem sido feito por meio de operações conjuntas, cada vez mais comuns, segundo o superintendente da PRF (Polícia Rodoviária Federal) no Paraná, Fernando César Oliveira.
"O que a gente tem feito é procurado realizar operações temáticas e eventos, inclusive, não apenas com outras forças de segurança, no caso a Polícia Federal e as polícias estaduais, mas também com órgãos públicos que podem colaborar com o nosso trabalho, como a Receita Federal, Ministério da Agricultura, órgãos estaduais ligados à agropecuária e participação do setor privado do mercado legal, que geralmente tem boas condições de nos fornecer informações para aperfeiçoar o nosso trabalho", disse.
A Receita está utilizando drones na região de fronteira para monitorar a movimentação de barcos no rio Paraná, enquanto a PRF recebeu um veículo blindado para suas operações.
Nas rodovias paranaenses, a maioria das apreensões ocorre na BR-277, ainda próximo a Foz do Iguaçu, e também em cidades como Guaíra, Cascavel, Londrina e Maringá, segundo a PRF.
Com as obras da nova ponte entre o Brasil e o Paraguai —que ligará Foz do Iguaçu a Presidente Franco, na fronteira com o Paraguai—, a área está muito aberta e contrabandistas aproveitaram para passar produtos vindos do Paraguai por ali nos últimos meses.
"Servidores estavam sendo ameaçados, apareceram pessoas armadas, estava ficando bem perigoso. Então, a gente montou operação com prazo indefinido. Exército, PRF, Polícia Federal, Receita Federal, Guarda Municipal, Itaipu e Ministério da Agricultura estão participando", afirmou Caplan.
A Folha procurou a embaixada do Paraguai e questionou o governo do país vizinho sobre medidas tomadas para enfrentar o contrabando e quais foram os efeitos alcançados, mas não houve resposta até a conclusão desta reportagem.
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