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Desigualdade e clima são crises que ameaçam economia e coesão social, diz chefe do Pnud

Para Achim Steiner, governos e setor privado precisam convergir esforços para a transição ecológica

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Brasília

O aumento da desigualdade social e a falta de sustentabilidade provocada pela crise climática ameaçam não só a economia, mas também a coesão social e a própria estabilidade política dos países ao redor do mundo, alerta o administrador do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), Achim Steiner.

"A desigualdade está crescendo. Isso vai afetar a estabilidade em todos os países e regiões", afirma em entrevista à Folha, concedida durante visita ao Brasil neste mês.

Para Steiner, o endividamento excessivo de países em desenvolvimento e os conflitos recentes estão, indevidamente, reduzindo a capacidade de investir em avanços e na transição ecológica. Ele também critica a pressão de setores com poder econômico, como o petrolífero, que vêm ampliando sua produção —na contramão dos esforços de redução das emissões de carbono.

O administrador do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), Achim Steiner, durante entrevista à Folha em Brasília - Pedro Ladeira - 14.nov.2023/Folhapress

No Brasil, Steiner se reuniu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ministros e lideranças empresariais. Ele demonstrou otimismo com a capacidade do país de proteger os mais vulneráveis e pelo fato de o plano de transição ecológica ser encampado pelo Ministério da Fazenda.

Como o sr. avalia os esforços para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em 2030?
Não estamos no trilho. Por outro lado, não esperávamos a pandemia e a destruição econômica que ela trouxe, a crise de dívidas que muitos países em desenvolvimento estão enfrentando, as guerras e conflitos, incluindo os das últimas semanas em Israel e Gaza. Nossa capacidade de investir na implementação dos ODS foi severamente afetada por todos esses choques.

Os ODS permanecem ainda mais relevantes e válidos no mundo de hoje. Saúde, meio ambiente, redução de pobreza, transição energética, descarbonização, todos esses temas requerem investimentos inteligentes. O Brasil aprendeu muitas lições com os retrocessos [que ocorreram] em desigualdade, sustentabilidade, desmatamento da Amazônia, e fez disso uma prioridade em termos de desenvolvimento nacional.

Vivemos momentos muito disruptivos, dependendo mais de como governos e líderes, incluindo nos negócios e no setor financeiro, estão dispostos a reconhecer que a desigualdade e a falta de sustentabilidade são crises fundamentais que não só ameaçam os futuros econômicos, mas também ameaçam a coesão social, a confiança dos cidadãos em seus governos e as instituições do Estado.

O sr. mencionou retrocessos vividos pelo Brasil. Isso já ficou para trás?
Não acho que já ficou para trás. Primeiro, a pandemia deixou cicatrizes psicológicas profundas. Em alguns casos, também uma profunda falta de confiança em instituições de Estado, que às vezes agiram de forma irracional e errática. Essa erosão de confiança continua em muitos países.

Segundo, ainda sentimos as consequências econômicas da Covid-19 em muitos lugares do mundo. O Pnud monitora 52 países que exauriram suas reservas fiscais e enfrentam agora uma situação quase impossível: investir na recuperação ou arcar com suas dívidas.

A questão da dívida deveria ser prioridade para a presidência do Brasil no G20. Os países estão sendo forçados a desinvestir em áreas centrais para o desenvolvimento nacional porque têm que investir muito dinheiro em serviços de dívida. Isso não é sustentável.

O tema da dívida costuma ser discutido por FMI e Banco Mundial. Por que o Pnud decidiu encampar a agenda?
Talvez possamos aprimorar uma posição que, no passado, era orientada por condições de estabilidade fiscal e monetária, ignorando as consequências sociais e econômicas de cortes e reduções orçamentárias.

O plano mais otimista que o novo presidente do Banco Mundial idealizou talvez possa mobilizar mais US$ 150 bilhões a US$ 190 bilhões adicionais nos próximos dez anos. Na última reunião do G20, um relatório estimou que precisaríamos de aproximadamente US$ 3 trilhões por ano para alcançar os ODS e o Acordo de Paris.

A desigualdade está crescendo. Isso vai afetar a estabilidade em todos os países e regiões. Isso requer de nós pensar sobre financiamento de formas diferentes e muito mais significativas.

Como o Brasil pode ajudar?
A presidência do Brasil no G20, em particular com o presidente Lula, tem como prioridades desigualdade, fome e mudanças climáticas. O Brasil tem credibilidade e legitimidade para chamar a atenção para os riscos de não se tratar do problema. Isso é um risco potencial não só de estabilidade financeira, mas também de estabilidade política.

Famílias e empresas ainda dependem de fontes antigas de energia. Como fazer a transição sem prejudicá-las?
No Uruguai, mais de 95% da eletricidade é produzida com energia renovável. Na Alemanha, chegaremos neste ano ou no próximo ano a 50%. A China é o maior produtor de energia eólica e está ampliando a energia solar. Uma indústria inteira cresceu, criando milhões de empregos em torno da ideia de que a transição energética é o futuro.

Uma vez que um país abraça a ideia de que o futuro de energia, indústria e mobilidade será de baixo carbono, muitas decisões diferentes acontecem. A transição não ocorre em detrimento de bem-estar econômico ou crescimento. A evidência mostra o contrário. Algumas das economias com melhor performance hoje são também as que investem mais em transição energética.

Como fazer isso sem excluir os mais vulneráveis?
Subsidiar os combustíveis fósseis beneficia mais os ricos, que usam muito mais petróleo, diesel ou querosene. Uma forma muito mais inteligente de lidar com os preços mais altos de combustível é direcionar subsídios ou transferências de renda para aqueles domicílios mais vulneráveis. É mais eficiente do ponto de vista macroeconômico e da transição.

Temos muitos instrumentos fiscais e de subsídios. O Brasil pode alcançar milhões de pessoas através de programas diferentes, como o Bolsa Família.

O que achou do plano do Brasil para a transição ecológica?
Primeiro, vou destacar o fato de que é o ministro da Fazenda lançando o plano. Passamos os últimos 20 ou 30 anos em uma situação em que o ministro de finanças em quase todos os países foi o maior cético quanto a investimentos em sustentabilidade ou ameaças ambientais.

Ainda não estudamos o plano em detalhes. Está claro que as dimensões social e ecológica são partes integrantes da estratégia de transformação econômica. É a melhor aposta que o Brasil pode fazer para ter um país sustentável, justo e uma economia competitiva no futuro. Se o objetivo de um instrumento de política ecológica é estabelecido às custas ou ignorando a realidade social e econômica dos cidadãos, eles não o apoiam.

Como os conflitos recentes entre Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas afetam os esforços de adaptação climática e redução de desigualdades?
Isso aprofundou a divisão entre as nações. Vemos estratégias muito mais defensivas, começando a investir recursos para se defender de ameaças militares. Menos dinheiro está disponível para o desenvolvimento.

Os países estão perdendo 10, 20 anos de seus avanços em desenvolvimento por causa de conflitos. Em 7 anos de guerra, o Iêmen perdeu mais de 20 anos de avanços. Estamos vendo o impacto do conflito na economia de Gaza e Palestina. Está se criando uma crise de desenvolvimento a longo prazo. Quando 45% do parque habitacional e 40% das escolas foram destruídas ou danificadas, você vai gastar muito dinheiro para voltar ao que estava. O conflito não só destrói o desenvolvimento, ele destrói vidas e meios de subsistência.

Esses países só sairão dessas crises se conseguirem recuperar uma economia onde as pessoas possam ganhar vida. Isso faz parte da construção da estabilidade e resiliência política.

Alguns analistas veem uma crise de confiança gerada pela inação do Conselho de Segurança da ONU e pela dificuldade em gerar consenso sobre temas como cessar-fogo e ajuda humanitária. Quais são os desafios para a ONU?
Não acho que você possa culpar a ONU por não ter tido acesso concedido a Gaza. Essa é uma responsabilidade que pertence diretamente aos países que não estão concedendo o acesso. Mas insisto que as pessoas não cheguem à conclusão de que, portanto, todas as Nações Unidas não estão funcionando.

Houve um tempo em que forças de manutenção da paz realmente conseguiam, até certo ponto, garantir a paz. Hoje, somos bombardeados por terroristas em meio à retirada de Mali. Perdemos mais de 100 colegas em Gaza. É um mundo que já não protege o multilateralismo e talvez esteja demasiadamente disposto a negociar princípios fundamentais com base nas agendas de curto prazo da política.

Quando as pessoas veem o Conselho de Segurança sem conseguir concordar, é muito frustrante. Mas não devemos olhar as Nações Unidas como uma forma de fazer as diferenças desaparecerem, mas um lugar em que todo país é representado. Vale a pena preservar isso.


RAIO-X

Achim Steiner, 62

É administrador do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento desde 2017. Filho de pai alemão, nasceu em Carazinho, no Rio Grande do Sul, mas se mudou para a Alemanha ainda na infância. Possui formação em filosofia, política e economia pela Universidade de Oxford e mestrado em desenvolvimento econômico e planejamento regional na Universidade de Londres. Atuou em diferentes postos nas Nações Unidas, entre eles como diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Ambiente.

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