Guerras sequestram debate econômico, e ministros do G20 não chegam a acordo para comunicado

Encontro em SP chegou a impasse devido a uma preposição em nota de rodapé de documento

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São Paulo

Por causa de uma preposição em uma nota de rodapé, os ministros das 20 maiores economias do mundo não chegaram a um consenso e não publicaram um comunicado final no encerramento do encontro econômico do G20, que aconteceu nesta semana em São Paulo.

O tradicional comunicado ("communiqué", no jargão dos órgãos multilaterais) costuma ser publicado ao fim desses eventos refletindo as posições consensuais das nações participantes.

Nesta quinta (29), ao fim do encontro de ministros das Finanças e chefes de Bancos Centrais, havia a expectativa de um comunicado final sobre os desafios econômicos atuais. Mas foi a Guerra da Ucrânia o ponto de dissonância.

sala de reunião com grande mesa oval e telões na parede, com homens e mulheres reunidos
Reunião de ministros do G20 em São Paulo - Nelson Almeida/AFP

O Brasil defendia que o tema não deveria entrar no comunicado do encontro econômico e que o fórum mais apropriado seria a reunião dos chanceleres do G20, que aconteceu na última semana no Rio de Janeiro —e que também não chegou a um consenso.

O texto que tinha consenso dos membros do G20 começava dizendo que os ministros enfatizavam a importância "da cooperação econômica internacional aprimorada para enfrentar desafios globais e promover uma economia mundial aberta e próspera."

Ao fim do trecho, uma nota de roda pé incluía entre os desafios globais a Guerra da Ucrânia. Mas os países do G7 queriam que o trecho se referisse à "guerra contra a Ucrânia" ("war on Ukraine", em inglês, língua em que o comunicado é publicado). Já Rússia e aliados marcaram posição defendendo usar "guerra na Ucrânia" ("war in Ukraine").

A disputa foi até o final, quando os ministros perceberam que não haveria consenso. Assim, houve apenas a divulgação de um comunicado da presidência do G20, ocupada pelo Brasil —que, segundo o ministro Fernando Haddad, reflete as posições consensuais dos ministros, com exceção da nota de rodapé.

O ministro da Fazenda participou presencialmente do encontro após dois testes de Covid terem apresentado resultado negativo. Os exames foram realizados na noite de quarta-feira e na manhã desta quinta, depois de o ministro ter ficado em isolamento desde sexta-feira, participando dos eventos de forma virtual.

"Havíamos nutrido a esperança de que temas mais sensíveis relativos a geopolítica fossem debatidos exclusivamente na reunião diplomática, mas como não se chegou a uma redação comum no Rio de Janeiro na semana passada, isso acabou contaminando um estabelecimento de consenso na nossa", afirmou Haddad.

Uma possibilidade seria abrir uma segunda nota de rodapé apontando que determinados países não concordavam com aquela redação, mas pesou a avaliação de que abrir essa possibilidade dificultaria a chegada de consensos futuros.

O problema mesmo foi a questão ucraniana, já que a Guerra Israel-Hamas foi mais consensual, segundo um membro da delegação brasileira, e os países haviam concordado em tratar da "crise humanitária em Gaza", sem mencionar Israel.

Apesar da falta de consenso, o documento divulgado pelo Brasil cita "guerras e conflitos" no geral como riscos para a economia global.

"Entre os riscos negativos para a atividade global estão guerras e conflitos em escalada; fragmentação geo-econômica; aumento do protecionismo; interrupções nas rotas comerciais; maior volatilidade nos preços das commodities, bem como nos fluxos de capital; dinâmicas inflacionárias adversas que levam a um aperto nas condições de financiamento; endividamento público e privado excessivo; redução da coesão social em decorrência do aumento da desigualdade; e aumento dos custos econômicos das mudanças climáticas."

No encontro de Nova Délhi no ano passado, quando a Índia ocupava a presidência do G20, o Brasil foi considerado essencial para fazer a ponte entre os países do G7 e União Europeia com o restante dos membros do bloco e superar a discordância.

Por isso, a presidência brasileira neste ano optou por orientar os trabalhos para que não fosse obrigatória uma declaração ao final de cada reunião ministerial. Na avaliação de um membro brasileiro, os temas de guerra contaminavam cada grupo de trabalho e paralisavam os debates.

Apesar da falta de consenso para um comunicado final do G20, Haddad considerou que o encontro "foi um sucesso", já que o Brasil conseguiu colocar em pauta os focos de sua presidência, que são o combate à pobreza e o desenvolvimento sustentável.

"Os debates aconteceram exatamente da forma como nós imaginamos inicialmente. Foram muito bem aceitos os temas propostos pelo Brasil, o tema da desigualdade foi especialmente valorizado", disse Haddad.

Imposto a super-ricos

Outro ponto de debate foi a implementação de um imposto global sobre super-ricos, defendido por países como o Brasil e a França. O assunto, no entanto, não entrou no texto do comunicado da presidência do G20 (que refletia as posições consensuais do grupo, com exceção da nota de rodapé).

O documento fala na necessidade de implementar os dois pilares de um novo sistema global de impostos já defendido pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento) —uma taxação mínima de "receitas não físicas", como ativos digitais, e de multinacionais.

Segundo Haddad, nas reuniões de ministros "ninguém se manifestou contrariamente" à taxação de super-ricos. "O que houve foi uma parte querendo focar exclusivamente no debate sobre o pilar um e o pilar dois, imaginando que antes de abrir uma nova perspectiva de debate nós deveríamos concluir as negociações", afirmou. "Talvez o Brasil tenha sido mais otimista dos países em relação a isso porque justamente a nossa presidência termina no final do ano."

Além disso, os encontros em São Paulo discutiram a inclusão social e combate à fome e pobreza; transição energética e desenvolvimento sustentável; reforma das instituições de governança global, segundo o documento da presidência brasileira.

"Trocamos opiniões sobre os desenvolvimentos econômicos globais e observamos que a recuperação econômica tem se mostrado mais resiliente do que o esperado, mas as perspectivas de crescimento de médio prazo permanecem contidas. Circunstâncias desafiadoras exacerbam pressões socioeconômicas e ambientais de longa data ao redor do mundo, impactando desproporcionalmente populações pobres e vulneráveis, principalmente em Economias Emergentes e em Desenvolvimento."

O documento ainda ressalta "a importância de adotar políticas que facilitem transformações estruturais e convergência global, incluindo inovação, diversificação e desenvolvimento de setores industriais e de serviços de alta produtividade, capazes de aumentar a produção potencial, fomentar a criação de empregos, ampliar oportunidades para melhorar os padrões de vida e catalisar investimentos para transições justas."

Guerra na Ucrânia

Dois anos após o início do conflito na Europa, a guerra na Ucrânia esteve presente tanto nas reuniões privadas como em diversas declarações públicas das autoridades reunidas na capital paulista.

A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, defendeu a desapropriação dos fundos russos congelados pelo mundo desde a guerra, avaliados em US$ 285 bilhões, e afirmou que a posição era defendida pelos países do G7.

Mas membros do bloco, no entanto, como ministros da França e Alemanha, baixaram o tom. "Os países do G7, os países europeus, não devem dar nenhum passo que possa prejudicar o sistema jurídico internacional. O G7 é baseado no Estado de Direito, deve agir respeitando o Estado de Direito. O que significa que, como não temos a base legal para apreender os ativos russos, precisamos trabalhar mais nisso", afirmou o francês Bruno Le Maire.

Líderes como o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, defendem que esses fundos sejam usados para reconstruir a Ucrânia após a guerra. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que o dinheiro deveria ser usado para comprar munição para a Ucrânia.

Em entrevista à Folha na terça, o ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, chamou a proposta de roubo, afirmou ser "um tiro no pé" e mina a estabilidade financeira global.

Segundo Haddad, os ativos russos não foram mencionados nas reuniões plenárias, das quais todos os ministros de finanças do G20 participam.

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