Programa para transição energética divide mercado e fala pouco em fontes limpas

Pacote anunciado por Lula prioriza combustíveis fósseis, como o gás, e eleva intervenção no setor, dizem especialistas

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São Paulo e Rio de Janeiro

A chamada Política Nacional de Transição Energética, lançada pelo governo federal nesta segunda-feira (26), foi encarada pelo mercado como um pacote voltado ao gás natural de petróleo e dividiu o setor.

A indústria de petróleo e gás afirma que o governo eleva a intervenção e contraria a Lei do Gás com as medidas anunciadas. Consumidores veem um caminho para reduzir o custo do combustível, pleito antigo da indústria.

O uso de gás natural na transição energética é controverso. Alguns pedem a adoção indiscriminada dessa fonte, enquanto ambientalistas defendem o uso restrito à substituição de processos produtivos mais poluentes, que ainda adotam lenha, carvão ou óleo diesel, por exemplo.

O presidente Lula, acompanhado do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em anúncio no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 09.abr.2024/Folhapress

Elaborados após meses de debates, os textos finais foram aprovados nesta segunda sem qualquer consulta ao mercado, que teve acesso apenas a fragmentos. Foram inúmeras resoluções, dois decretos, uma MP (medida provisória) e um PL (projeto de lei) que tratam de diferentes segmentos do mercado.

Apenas duas medidas podem ser qualificadas como efetivamente dedicadas ao caráter mais verde da transição: a criação de um grupo de trabalho para integrar ações públicas na área e a resolução com diretrizes para a descarbonização da exploração de óleo e gás.

O pacote é genérico e amplo. Para o setor de petróleo, gera insegurança e pode levar a questionamentos judiciais, já que dá à ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) poder para arbitrar preços em instalações privadas de escoamento e processamento de gás natural.

A legislação atual prevê que essas instalações sejam autorizadas a pedido de qualquer investidor interessado. Agora, o governo quer definir onde construí-las e depois licitar concessões, como é feito no setor de eletricidade.

Para isso, o decreto cria o Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano, que ficará a cargo da EPE (Empresa de Pesquisa Energética). Essa centralização já foi tentada sem sucesso no passado, lembra o professor da PUC-Rio Edmar Almeida.

"Os agentes econômicos, por diferentes circunstâncias e oportunidades de negócios, é que propõem os projetos", afirma. "Esse modelo centralizador não tem viabilidade nem faz sentido. E vai em direção contrária à Lei do Gás, que era para liberalizar a indústria."

Aprovada em 2021, a Lei do Gás tinha o objetivo de ampliar a competição no setor, dando maior autonomia a investidores privados para desenvolverem seus projetos e reduzindo o papel da Petrobras, que deveria dar acesso a terceiros à sua infraestrutura de gás.

Ajudou a ampliar o número de fornecedores de gás no Brasil, mas a falta de regulamentação ainda garante à estatal poder excessivo para definir quem pode usar as instalações fundamentais para trazer o gás natural das plataformas em alto-mar para o continente.

"A Petrobras cobra o que quiser, pedindo valores exorbitantes para outros acessarem", diz Adrianno Lorenzon, diretor de Gás Natural da Abrace (Associação Brasileira dos Consumidores de Energia).

"Verificou-se que isso não estava funcionando, é que é preciso um monitoramento maior do regulador para determinar preços justos em relação ao acesso. O decreto ainda não está claro como isso vai ser feito, mas se espera que ocorra num processo transparente."

De modo geral, a Abrace vê um movimento favorável para criar concorrência.

"A Lei do Gás não colou, muito em função dos inúmeros feudos do setor, e o decreto tenta dar um empurrão na direção que foi pactuada: alcançar um mercado mais competitivo", diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace.

O consultor Adriano Pires, do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura), concorda que a Lei do Gás precisa ser aprimorada, mas destaca que "um decreto não muda uma lei". "A impressão que dá é que o decreto cheira a uma nova lei para o setor, mas com defeitos", afirma.

Alexandre Calmon, sócio da área de Energia e Recursos Naturais do Campos Mello Advogados em cooperação com o DLA Piper, reforça que "por se tratar de um decreto complementar pode suscitar questionamentos – não poderá se sobrepujar à lei."

O setor de petróleo questiona ainda a possibilidade de intervenção da ANP na operação dos campos petrolíferos, definindo quanto volume de gás pode ser reinjetado nos poços. As minutas divulgadas permitem que a agência mude contratos já assinados, mas não se sabe como ficará o texto final.

Apesar das divergências e dúvidas, um ponto do pacote que é considerado positivo por todos, pelo potencial de reduzir o preço do gás, é escalar a estatal PPSA para fazer leilão da parcela de gás do pré-sal que pertence à União, como já faz hoje com petróleo.

Essa medida, porém, tem efeito apenas no médio prazo, já que a União ainda tem direito a volumes pequenos de gás, que são vendidos diretamente à Petrobras. Atualmente, são cerca de 150 mil metros cúbicos por dia, o equivalente a 0,25% da demanda em 2023.

A reunião do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) para tratar do tema nesta segunda, bem como a solenidade que se seguiu ao encontro, foram prestigiadas por integrantes do governo e do setor de energia.

Contou com a presença do presidente Luis Inácio Lula da Silva (PT) e de ministros, como Rui Costa (Casa Civil), Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento), além de Alexandre Silveira (Minas e Energia).

O QUE TEM NO PACOTAÇO
Apesar de ter anunciado que o CNPE aprovaria a Política Nacional de Transição Energética, o governo ratificou um pacote mais focado em reorganizar o mercado de gás fóssil. No conjunto, as medidas incluem:

  • Decreto que consolida medidas do programa Gás para Empregar
  • Decreto para extinguir o plano de venda de ativos da Petrobras
  • PL para distribuição de botijões de gás a famílias que ainda dependem de lenha para cozinhar
  • MP que incentiva a indústria naval no setor de óleo e gás
  • Resolução com diretrizes para a estatal PPSA comercializar gás natural que cabe à União, inclusive com o uso de swap com petróleo
  • Resolução para reduzir queima de gás natural e aumentar a oferta
  • Resoluções para regulamentar exploração no blocos blocos de óleo e gás de Jaspe, Rubi e Granada
  • Resolução com diretrizes para a descarbonização da exploração de óleo e gás
  • Criação do GT (Grupo de Trabalho) para integrar as iniciativas dos diferentes ministérios e órgãos do governo
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