Empreendedores contam como lidam com sobrecarga mental na pandemia

Mais de 30% dos donos de negócios começaram tratamento psicológico na crise, aponta estudo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Diante da incerteza e da queda de receita, quase um terço dos empreendedores brasileiros buscou ajuda psicológica na pandemia. O estudo é da Troposlab, empresa de inovação, em parceria com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

De acordo com o levantamento, 30,1% dos empresários recorreram a tratamento profissional. A pesquisa foi feita com 312 pessoas em 18 estados e no Distrito Federal.

Comparado ao ano passado, mais empreendedores estão usando medicamentos psiquiátricos —26% neste ano, enquanto 16% disseram ter tomado medicação em 2020. O uso de ansiolíticos saltou de 6% para 10%, e de antidepressivos de 3% para 8%.

"Quem reportou queda na renda apresentou mais sintomas moderados e severos de ansiedade ou depressão", afirma Marina Mendonça, sócia da Troposlab.

Na Vibe Saúde, startup de telemedicina, houve aumento no diagnóstico de burnout entre os donos de negócios, afirma a psicóloga Isadora Bettarello, coordenadora do setor de psicologia.

Segundo ela, os sintomas se manifestam de forma física e psicológica, com estresse prolongado, dificuldade de concentração, falta de memória, insônia, dor de cabeça e sudorese excessivo.

Sem o tratamento adequado ou mudanças de hábitos, o quadro pode evoluir para depressão severa e estagnação completa, afirma Bettarello.

As mulheres sofreram mais psicologicamente com a pandemia, segundo o estudo da Troposlab. Elas apresentaram mais sintomas severos de ansiedade (12,5%) em comparação com homens (2,8%), estresse (7,3% contra 1,1%) e também depressão (6,6% contra 2,8%).

"O empreendedorismo acompanhado do home office fez com que as mulheres ficassem ainda mais atarefadas. A cobrança é maior, e muitas vezes, até inconscientemente, elas entram em conflito interno", diz Cintia Martins, consultora do Sebrae-SP.

Conheça a seguir histórias de empreendedores que tiveram a saúde mental fragilizada durante a pandemia.

‘Reservei momentos de lazer para não enlouquecer’
Rodolfo gomes, 37, sócio da startup PPTGO

A jornada do empreendedor é de muita incerteza, risco e responsabilidade. Antes de abrir o próprio negócio, cuidava financeiramente só da minha família. Mas, quando você emprega, tem a responsabilidade sobre a de outras pessoas também.

Somos uma startup que cria vídeos e apresentações de alto impacto. Não sabíamos como os clientes reagiriam à pandemia já que nossos materiais são usados principalmente em eventos corporativos. Isso foi muito temeroso.

Rodolfo Gomes, sócio da PPTGO, no escritório da empresa em São Paulo
Rodolfo Gomes, sócio da PPTGO, no escritório da empresa em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

O medo do futuro aumentou a minha ansiedade e fragilizou a minha saúde mental. Estar em casa com dois filhos conciliando as atividades de empreendedor foi um processo novo. Tive insônia, palpitações e falta de concentração.

Ser um executivo negro no mercado de marketing sempre exigiu 200% de mim. Na pandemia, me senti ainda mais sobrecarregado.Voltei para a terapia. Ganhei autoconhecimento e revi minhas prioridades. Mudamos de São Paulo para Guararema [Grande São Paulo] em busca de mais espaço e qualidade de vida.

Também passei a fazer pequenas pausas no horário de expediente. Saio de casa e vou passear à beira do rio com o meu filho. São momentos gostosos que me permitem respirar.

O equilíbrio é possível desde que você tenha disciplina. Obviamente não passo o dia inteiro na piscina ou pescando.

As mudanças ajudaram a aumentar a minha produtividade. Hoje eu consigo ficar mais centrado. A minha empresa é de criação e, com a pressão sob controle, tenho novas ideias, penso em estratégias e planejo o futuro.

A PPT GO sempre teve uma política de austeridade, e isso também ajudou no cenário de incerteza. Desde o início distribuímos o lucro de modo que nosso caixa tenha reserva de um ano de faturamento.

As fases difíceis inevitavelmente vão aparecer na vida do pequeno e do grande empreendedor. Por isso, é importante estar preparado.

Apesar do medo inicial, agregamos novos serviços na pandemia e conseguimos manter a média de crescimento de 50% ao ano. E aprendi uma lição na crise. Agora sempre me pergunto: "Por que eu vou esperar para mudar amanhã se eu posso fazer hoje?".

‘Minha ficha só caiu quando eu comecei a sentir dores’
Jucelha Carvalho, 43, diretora-executiva da Smart Tour

Atuamos com geração e inteligência de dados para gestão pública do turismo e estávamos no ápice quando a pandemia chegou e paralisou o setor. Nossos contratos foram congelados e saímos do 100 para o 0 em queda livre

A empresa entrou em uma montanha-russa. Ao mesmo tempo, trabalhava em home office e meus dois filhos começaram a estudar em casa. Foi tudo muito confuso.

As startups já sofrem grande pressão por que precisam crescer rapidamente. Também é mais difícil ser mulher na área de tecnologia. Somos minoria e temos que provar tudo o tempo todo. Na pandemia, tivemos que nos reinventar, e o estresse piorou.

Jucelha Carvalho, na sede Associação Catarinense de Tecnologia, em Florianópolis
Jucelha Carvalho, na sede Associação Catarinense de Tecnologia, em Florianópolis - Anderson Coelho/Folhapress

Por outro lado, nas startups as mudanças acontecem de forma muito mais rápida. Ainda no começo da crise criamos a Smart Tracking, plataforma que rastreia pessoas que tiveram contato com quem testou positivo para Covid.

Com a ferramenta, terminamos 2020 entre as melhores startups do mundo em ranking da Organização Mundial de Turismo, mas todo o processo foi a duras penas.

No início, não prestava atenção em toda a carga emocional. Mas, com o tempo, o corpo somatizou. Tenho artrite reumatoide e comecei a sentir dores como nunca antes.

Trabalhava até 16 horas por dia e passei a ter insônia. Chorava por qualquer coisa. A sensação era de pânico. As crises se assemelhavam às da gravidez, com toda aquela mudança hormonal, só que ainda mais pesadas.

Foi aí que caiu a ficha sobre a minha saúde mental. Às vezes, os empreendedores não percebem que algo está acontecendo. Tem que estourar alguma coisa para olhar para si.

Fiz consultas psicológicas e isso me ajudou muito. Mas foi com o avanço da vacinação que a minha saúde mental melhorou significativamente.

O Smart Tracking ajudou a manter contato com investidores e teve reconhecimento internacional. E, com a retomada do turismo, voltamos a ganhar mercado.

‘Com negócio próprio, você pensa em trabalho 24 horas’
Fabio Aguiar 51, fundador da UFA Hospitalar

Quando você abre o próprio negócio, passa a viver isso 24 horas por dia. Você vai para o banho pensando em como inovar. Respiramos a empresa até nos momentos em que estamos com a família.

Também é difícil competir com marcas já consolidadas e conquistar espaço quando você tem poucos recursos. Isso leva tempo.

Passei a me dedicar exclusivamente à UFA Hospitalar em 2017. O carro-chefe da empresa é uma bandeja retornável térmica, que garante mais tempo de comida quente para os pacientes. Muitas vezes ele está indisposto, retornando de exame ou usando alguma sonda. Com nosso produto, as pessoas podem se alimentar independentemente do horário.

Fabio Aguiar, 51, fundador da UFA Hospitalar
Fabio Aguiar, 51, fundador da UFA Hospitalar - Arquivo pessoal

Estávamos crescendo quando veio a pandemia. Foi uma loucura. Os departamentos de infecção hospitalar determinaram só poderiam ser usados itens descartáveis. Como nossa bandeja é retornável, tivemos contratos suspensos. Nosso faturamento caiu 60%.

O maior medo era que a empresa não sobrevivesse. Passei a trabalhar 16 horas todos os dias procurando soluções inovadoras. Pesquisava oportunidades na internet, procurava novos parceiros e conversava com mais fornecedores.

Fiquei sobrecarregado e comecei a ter insônia. Dormindo pouco, levantava no dia seguinte ainda mais cansado.

Procurei ajuda profissional e passei a tomar ansiolíticos. Fui orientado a fazer esporte, mas não tinha cabeça para isso. Então, como válvula de escape, voltei a fazer viagens de moto depois de seis anos.

Só fiz roteiros curtos. Saindo de São Bernardo do Campo [na Grande São Paulo] passei a visitar a fábrica de bandejas que fica em Curitiba de moto. Nesses momentos eu consigo relaxar e esvaziar a cabeça. Isso melhorou até o meu sistema imunológico.

Estabeleci horários e parei de tomar medicamento. Aprendi a trabalhar na crise e percebi que o momento era ruim para todos. Sei que são nessas fases que você aprende e faz acontecer.

As bandejas já voltaram aos hospitais, e conseguimos recuperar nossos clientes. Temos como meta crescer pelo menos 20% em relação a 2020.

‘Lidar com críticas foi pesado e tive que voltar para a terapia’
Catarina Pignato, 25, fundadora de loja online com o mesmo nome e ilustradora da Folha

No início do negócio, ainda sem experiência, subestimei as ferramentas de impulsionamento das redes sociais e recebi quase cem pedidos de pôsteres em apenas uma semana. Eu produzo e mando pelos Correios e, até então, aquilo era surreal.

Não dei conta. Atrasei vários pedidos e precisei enviar emails explicando que a demanda estava alta. Acabei muito atarefada.

Foi um período difícil. Embora em nenhum momento os produtos tenham perdido qualidade, demorei para me acostumar a lidar com a expectativa do comprador. Isso é pesado, e a responsabilidade é muito grande.

Qualquer reclamação tinha um peso emocional enorme. Se o produto atrasava ou se chegava amassado, eu me sentia arrasada mesmo fazendo a substituição. Ficava triste como se fosse problema só meu, sem levar em consideração que existem diversos fatores na cadeia de entrega.

Tive de voltar para a terapia. Hoje sei que faço o meu melhor. Estou sendo honesta, cobro um preço justo e tenho noção da qualidade do meu produto. A experiência também me fez perceber que não existe só cliente bom no mundo.

A ideia de empreender veio da possibilidade de combinar o negócio com meu trabalho em home office. Sempre tive vontade de montar uma lojinha própria, mas nunca tive muito tempo para organizá-la.

Foi difícil conciliar as duas coisas no início, mas hoje o equilíbrio é possível. Ajustei o alcance da publicidade e consigo atender todos os meus clientes com a atenção merecida.

Sou ilustradora e comecei produzindo pôsteres de papel. Com o negócio estabilizado, abri uma caixa de perguntas no Instagram para sentir outras demandas. Hoje expandi o meu escopo e também faço camisetas e pins de metal.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.