Inesperadamente, repressão na Turquia poupa escritores
Alguns escritores turcos que não estão presos podem bem estar imaginando o motivo para que isso não tenha acontecido.
O mundo literário da Turquia tem uma orgulhosa tradição de suportar encarceramento e repressão, mas os escritores mais conhecidos vêm desfrutando de uma estranha, se bem que parcial, imunidade, às medidas repressivas adotadas pelo governo do presidente Recep Tayyip Erdogan depois de uma tentativa fracassada de golpe, alguns meses atrás.
Não é que não haja escritores aprisionados. Uma conhecida romancista e ativista pelos direitos humanos, Asli Erdogan, foi condenada à prisão perpétua. E milhares de livros publicados pelas 29 editoras alinhadas ao líder religioso exilado Fettulah Gülen, a quem o presidente turco atribui a culpa por orquestrar o golpe fracassado, foram retirados das livrarias, universidades e escolas do país, e destruídos.
Asli Erdogan, que não é parente do presidente, não está na cadeia por qualquer coisa que seus livros contenham, mas por seu trabalho para um jornal curdo perseguido, e posteriormente proibido, o "Ozgur Gundem". Outro romancista, Ahmet Altan, e seu irmão Mehmet, acadêmico, foram aprisionados por "mensagens subliminares" em favor do golpe fracassado —uma vez mais, não em seus livros, mas durante participações em programas de TV.
Nas livrarias, os livros publicados por grandes editoras, exceto os considerados pró-curdos, passaram intocados pelas medidas repressivas. Os livros de Erdogan continuam sendo vendidos, e em números maiores do que no passado, de acordo com dirigentes do setor.
Os motivos para que o setor literário tenha escapado, até o momento, não são claros. Há quem pense que é reflexo do status do mundo dos livros, mais elevado que o do jornalismo, e por a repressão a escritores ter associações desagradáveis com períodos de governo autoritário na Turquia. Outros especulam que os escritores talvez pratiquem autocensura, evitando questões que poderiam se provar problemáticas. E muitos alertam que essa pode ser só uma fase, possivelmente de curta duração.
Não é por as figuras literárias turcas terem evitado se pronunciar sobre os acontecimentos atuais. "Nas três últimas décadas, os romancistas não encontraram muitos problemas pelo que tenham escrito em sua ficção", disse o escritor Orhan Pamuk, que ganhou o Nobel de Literatura em 2006 (o único turco a receber a honraria).
Fabio Braga-6.dez.2011/Folhapress | ||
O escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de Literatura, durante visita a São Paulo, em dezembro de 2011 |
Mas Pamuk muitas vezes encontrou problemas da parte do governo Erdogan. "Tive enormes problemas com o governo, e processos judiciais, não por causa dos meus romances mas por causa de entrevistas e de ensaios políticos curtos", ele disse. "O comentário político jornalístico é perigoso na Turquia, e depois do golpe fracassado a situação se agravou, no que tange à liberdade de imprensa".
Irfan Sanci, dono da editora Sel Publishing, foi processado dez vezes por livros que sua empresa publicou, e está aguardando em liberdade o resultado de um recurso contra uma sentença de três anos de prisão. Mas esses processos eram todos relacionados a acusações de obscenidade, e em geral envolviam obras estrangeiras, como os romances "beat" de William Burroughs ou obras eróticas de Guillaume Apollinaire.
A crítica política e social, especialmente ao governo atual, muitas vezes resulta em cadeia para escritores, mas raramente quando aparece em forma de livro.
Quer dizer, isso se a obra não tiver relação com o movimento de Gülen e se abstiver de tratar com simpatia as questões curdas —dois "ses" consideráveis na Turquia contemporânea. Mas a maioria dos turcos se opôs à tentativa de golpe, mesmo aqueles que detestam Erdogan. E eles ainda trazem fresco na memória o tempo, anos atrás, em que o movimento de Gülen era aliado do presidente e os seguidores de Gülen eram acusados de perseguir escritores.
A questão curda também é nebulosa, porque as Forças Armadas da Turquia estão em guerra aberta contra o Partido dos Trabalhadores Curdos, o PKK, que foi proscrito pelo governo.
Ainda assim, ninguém está se sentindo empolgado por conta de uma imunidade que pode ser temporária e é limitada. "Sim, os livros parecem mais intocáveis que os jornais, e as autoridades parecem temer acusar os autores de livros", disse Eray Ak, editor da seção de resenhas de livros no jornal "Cumhuriyet", cujo editor-chefe Turhan Gunav, está preso.
Tora Pekin, advogado do "Cumhuriyet", disse que o governo já fez o bastante para causar preocupação. "Deter Asli Erdogan e Necmiye Alpay significa que um limite foi cruzado. Depois disso, eles podem colocar qualquer pessoa na cadeia".
Alpay, que pode ser condenado a prisão perpétua, é um linguista muitas vezes descrito como o dicionário vivo do idioma turco.
Hasan Cemal, antigo editor chefe do "Cumhuriyet", publicou uma dúzia de livros sem incidentes —mesmo os que tinham temas bastante provocativos, como aquele no qual ele tratava de um tema que é forte tabu em Istambul, o genocídio contra os armênios em 1915. Mas "Delila", um livro que ele escreveu sobre uma cantora e guerrilheira curda, foi proibido no ano passado e o autor enfrenta acusações criminais por conta da obra, ainda que não tenha sido preso.
Cemal disse acreditar que boa parte da razão para que mais escritores não tenham sido presos por conta de seus livros é que muitos deles são cuidadosos quanto ao que escrevem. Milhares de pessoas, afinal, sofreram acusações judiciais por insulto ao presidente.
Senay Aydemir, editor chefe da editora Posta Kitap, disse que mais tempo era necessário para que as respostas literárias à repressão começassem a se manifestar.
"A tradição da literatura da Turquia é forte nesse sentido", ele disse. "Ao longo da história da república, escritores sempre enfrentaram pressões semelhantes, exílio ou prisão, mas encontraram maneiras de resistir. Creio que essa tradição vá continuar".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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