ANÁLISE
Turquia ainda vê curdos como principal ameaça à integridade
A Guerra Civil síria continua se expandindo regionalmente e a Turquia está mais próxima de sua linha de fogo. Ao mesmo tempo, este país parece reavivar seu passado trágico recente, por conta do conflito com os curdos. Neste sentido, vale indicar aqui algumas pistas para desvendar os imbróglios políticos e conflitos militares decorrentes desta tensão.
1) A Turquia contou com eleições parlamentares em junho último. O AKP (partido do presidente Recep Erdogan e do premiê Ahmet Davutoglu) teve maioria, mas não suficiente para governar sozinho e impor seu projeto presidencialista.
A grande surpresa foi o HDP (partido pró-curdo) ter ultrapassado a barreira dos 10%. O país encontra-se em período de formação de governo e, caso uma coalizão não seja alcançada, novas eleições devem ser convocadas. Integrantes do HDP entendem que a guerra atual contra o Estado Islâmico e o PKK (facção que luta pela causa pró-curda) seja uma tentativa de criar clima nacionalista e militarista, como se houvesse larga guerra contra o terrorismo, a ser capitalizada em eventuais eleições antecipadas.
2) A Turquia é membro da Otan (aliança militar ocidental) e desde os primórdios do conflito sírio vem sendo questionada por seus aliados ocidentais por não fazer o suficiente para combater os jihadistas em suas fronteiras. Acabou até sendo apelidada de "avenida jihadista", por conta da "porosidade" de sua fronteira com a Síria.
Como afirma o professor David Phillips, da Universidade de Columbia, as alegações dão conta ainda de transferência de armamentos, apoio logístico e financeiro, apoio para recrutamento, e mesmo oferta de serviços médicos para jihadistas. Essa pretensa "ajuda" aos jihadistas é lida na chave do "inimigo do meu inimigo é meu amigo", já que o AKP vê Assad e curdos como principais inimigos. Para a Turquia, o incremento da influência dos curdos na região é interpretada como uma ameaça à sua própria segurança nacional.
3) Curdos têm identidades diferentes e até mesmo polarizadas. O PKK, desde os anos 1980, teve grande projeção nos assuntos curdos, com demandas separatistas e uso de táticas terroristas que ceifaram milhares de vidas. Seu líder, Abdullah Öcalan, mesmo preso desde 1999, tem papel central seja nas negociações de paz como nos enfrentamentos crescentes. Sequestros, atentados e assassinatos atribuídos ao grupo vem acontecendo nos últimos dias e serviram de justificativa para ação corrente do governo contra este.
A questão era saber como o HDP se posicionaria, a respeito do atentado de Suruç, que matou 32 pessoas, mormente curdos e simpatizantes de sua causa: iria manter seu discurso pluralista e a favor do diálogo ou apoiaria o PKK? As falas de seus líderes desde então vêm sendo de manutenção da luta pela paz e pela democracia, mesmo conclamando uma ampla marcha da paz em 26/7, cancelada pelo governo. Como dito, os curdos não são monolíticos e vale acompanhar em que medida o HDP pode se consolidar como voz de maior projeção dos curdos da Turquia.
Temos aqui, portanto, alguns indícios do quão complexa é a relação entre turcos e curdos, e de como, aparentemente, a tardia ação turca contra o "Estado Islâmico" não o tem verdadeiramente como alvo. Apesar do processo de paz e expansão dos direitos culturais, certa facção dos curdos ainda são vistos como a principal ameaça à segurança nacional.
MONIQUE SOCHACZEWSKI é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Eceme (Rio); ARIEL LEVAGGI Gonzalez é pesquisador da Universidade Koç (Istambul)
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