Com demissão de diretor, Trump ameaça independência do FBI

BARBARA MCQUADE
ESPECIAL PARA "THE WASHINGTON POST"

Se os norte-americanos concordam quanto a alguma coisa é sobre a importância de que o Judiciário e as agências policiais sejam independentes. É por isso que a demissão de James Comey, o diretor do Birô Federal de Investigações (FBI), deveria preocupar a todos.

E a demissão sublinha o quanto é importante indicar um procurador especial para investigar a interferência russa na eleição presidencial norte-americana de 2016 e suas conexões com o governo Trump.

Um dos motivos para que Comey fosse altamente respeitado nos círculos policiais e judiciais é sua reputação de agir com independência e não ocultar fatos. As pessoas podem discordar da maneira pela qual ele conduziu a investigação sobre os e-mails de Hillary Clinton, mas Comey sempre agiu de acordo com sua consciência.

Ainda que muitos partidários de ambos os candidatos tenham ficado insatisfeitos com as suas diversas declarações, ninguém que o conheça —e eu vim a conhecê-lo bem em meus 19 anos de carreira como procuradora federal no FBI— duvidou nem mesmo por um instante que ele estivesse agindo de acordo com a sua melhor interpretação dos fatos e da lei, e com base no que sinceramente acreditava, e não por motivos de política partidária.

Muito antes que o FBI começasse a investigar questões envolvendo Hillary Clinton ou o presidente Trump, vimos a independência de Comey durante o governo de George W. Bush, quando Comey era vice-secretário da Justiça, o segundo em comando em seu departamento.

Quando o secretário da Justiça John Ashcroft foi hospitalizado em 2004, Comey interceptou funcionários da Casa Branca buscando autorização para um programa de vigilância que o Departamento da Justiça havia concluído ser ilegal.

Em um duelo dramático com Alberto Gonzalez, o assessor jurídico da Casa Branca, no quarto de hospital de Ashcroft, Comey se recusou a assinar a ordem.

Mesmo antes disso, como procurador federal indicado pelos republicanos para o distrito sul de Nova York, no começo da década de 2000, Comey já era conhecido por enfatizar a importância da integridade no Departamento da Justiça.

Ele frequentemente definia reputação como um reservatório de confiança que demora a vida inteira para ser enchido e pode ser esvaziado subitamente caso aconteça um vazamento. Trump parece pensar que o reservatório de Comey está vazando, mas a conduta firme deste último sugere que o contrário é verdade.

Durante minha carreira como procuradora, aprendi que independência é essencial para a Justiça. A legitimidade de nosso sistema judicial depende da confiança pública em que acusações criminais e investigações sejam conduzidas com uma aplicação equânime da lei, e não com base em agendas políticas ou ideologia.

Os procuradores e investigadores de carreira sabem que a confiança pública importa, e por isso protegem zelosamente não só a sua independência como a aparência de independência.

A tarefa não é fácil quando o alvo de uma investigação é membro do partido que tenha apontado o procurador para o posto. Como procuradora federal indicada pelo presidente Barack Obama, eu ajudei a tomar decisões investigativas e quanto a acusações envolvendo autoridades de ambos os partidos.

Como sabe toda pessoa que tenha treinado seu próprio filho em uma equipe esportiva, a coisa mais difícil pode ser tratar com justiça aqueles com quem você está publicamente alinhado, porque você não quer que o público perca confiança em suas decisões.

A única maneira de exercer a função com sucesso é deixar de lado os relacionamentos e tomar decisões com base em critérios objetivos. Como resultado, procuradores e policiais dedicam tempo e esforço consideráveis a investigações que envolvam autoridades públicas, a fim de garantir tanto um tratamento justo ao acusado quando a preservação da confiança pública em que a decisão de apresentar ou não acusações formais será tomada pelos motivos certos.

Isso é ainda mais complicado em casos envolvendo a segurança nacional, como o inquérito do FBI sobre as atividades russas no ano passado. Os procuradores devem buscar o equilíbrio entre a proteção a fontes, métodos e técnicas empregados para recolher informações, de um lado, e os interesses públicos na realização de um processo, do outro.

Apresentar acusações pode resultar em condenação em um caso mas também comprometer centenas de outras investigações. As decisões precisam ter por base os melhores interesses da segurança nacional, e não interesses políticos.

Tudo isso explica porque os diretores do FBI têm mandatos de dez anos. Sabendo que continuará no cargo depois que o presidente que o indicou deixar a presidência, e que ocupará a posição durante duas ou até três administrações, um diretor do FBI pode agir desconsiderando as paixões políticas, e ser visto pelo público como alguém que fica acima das disputas do momento.

Antes da noite da terça-feira, só um diretor havia sido demitido, na história da agência: William Sessions, que ocupou o posto entre 1987 e 1993 e foi demitido pelo presidente Bill Clinton depois de uma longa deliberação sobre uma auditoria do Departamento da Justiça que constatou que ele havia abusado de seu poder.

Comey demonstrou recentemente por que o mandato de 10 anos é importante. Ele mostrou que não tinha medo de se opor ao seu chefe quando refutou as afirmações de Trump sobre escutas contra sua campanha, em depoimento ao Congresso.

SUSPEITA

Legisladores dos dois partidos deveriam ficar satisfeitos por o país ter como diretor do FBI alguém que age por princípio e não por lealdade partidária. A demissão de Comey coloca em questão se esses ideais serão mantidos.

O momento da demissão só agrava a preocupação quanto à possibilidade de que outros motivos tenham influenciado a decisão. Se funcionários do governo realmente acreditavam que a conduta de Comey em outubro e julho foi inapropriada e era motivo de demissão, por que não demiti-lo em 20 de janeiro, no momento da posse de Trump?

Por que esperar até que ele estivesse em meio à investigação sobre a Rússia, em um dia no qual o foco da mídia era até que ponto a Casa Branca estava informada sobre as ligações entre Michael Flynn, o primeiro assessor de segurança nacional de Trump, e a Rússia? Um novo diretor do FBI enfrentará uma tarefa dificílima para convencer o povo norte-americano de que é completamente independente do presidente.

O único remédio para a crise de confiança criada por Trump é a indicação de um procurador independente. A lei federal permite a indicação de um procurador independente a fim de evitar conflitos de interesse, reais e aparentes, na investigação de funcionários importantes do Executivo. Esse mecanismo foi usado pela última vez no processo contra I. Lewis "Scooter" Libby, assessor do vice-presidente Dick Cheney.

Mas há um problema: quem decide sobre a indicação de um procurador especial é o secretário da Justiça. Até agora, o departamento vem resistindo aos apelos pela indicação de um procurador independente.

O secretário da Justiça, Jeff Sessions, já havia se afastado da investigação por conta de seus contatos com autoridades russas durante a campanha e por não tê-los revelados em sua audiência de confirmação perante o Senado, o que deixa Rod Rosenstein, o vice-secretário da Justiça, no comando do caso.

Menos de duas semanas depois de assumir o posto, Rosenstein escreveu o memorando que recomendava a demissão de Comey. Conheço Rosenstein como um procurador de carreira que serviu admiravelmente a governos tanto democratas quanto republicanos, e tenho esperança de que ele compreenda a importância da confiança pública em nossas instituições de governo.

Se queremos honrar a independência do Judiciário e das investigações, é preciso compreender que chegou a hora de apontar um procurador especial para comandar a investigação sobre a Rússia.

Não tenho dúvida de que os agentes do FBI e os procuradores de carreira que estão trabalhando na investigação sobre a Rússia continuarão a fazê-lo com a maior integridade.

Mas em algum momento, um ocupante de posto de primeiro escalão terá de decidir se acusações serão ou não apresentadas. Podemos apenas esperar que essa decisão venha a ser tomada por um líder independente.

BARBARA MCQUADE é professora de Direito na escola de Direito da Universidade do Michigan, e foi procuradora federal dos Estados Unidos para o distrito leste do Michigan.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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