Descrição de chapéu The New York Times

Antes elogiada por eliminar armas químicas, agora Rússia é vigiada

Envenenamento de ex-espião na Inglaterra coloca também órgão de monitoramento em xeque

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Com roupas especiais, militares britânicos trabalham para descontaminar um veículo atingido pelo agente químico usado contra o ex-espião russo Serguei Skripal em Salisbury, na Inglaterra
Com roupas especiais, militares britânicos trabalham para descontaminar um veículo atingido pelo agente químico usado contra o ex-espião russo Serguei Skripal em Salisbury, na Inglaterra - Adrian Dennis - 14.mar.2018/AFP
Ellen Barry
Londres | The New York Times

No final de 2017, o presidente Vladimir Putin chamou uma equipe de televisão do Kremlin à sua residência para uma cerimônia que marcava a destruição do último estoque declarado de armas químicas da Rússia.

A ocasião pedia um toque teatral: projéteis foram desmontados diante das câmeras, decorados com letras floridas em alfabeto cirílico que diziam: “Adeus, armas químicas!”

Putin falou com orgulho sobre a posição da Rússia como promotora da paz e zombou dos EUA por estarem atrasados. 

Uma autoridade da Organização para Proibição das Armas Químicas (Opaq), o órgão global que monitora os acordos de redução dos arsenais, observava contente. 

Apenas seis meses depois, a Rússia foi acusada de produzir em segredo uma série de agentes nervosos letais durante anos, no que seria uma grave violação de seus compromissos internacionais.

Uma equipe de inspetores da organização de vigilância global —a mesma agência que comemorou com Putin em setembro passado somou-se nesta semana à investigação sobre o envenenamento de Serguei Skripal, um ex-espião russo, e sua filha Iulia, que foram encontrados quase inconscientes na cidade inglesa de Salisbury em 4 de março.

O Reino Unido acusou a Rússia de expor Skripal ao Novitchok, um agente de grau militar, altamente secreto, desenvolvido nos anos finais da União Soviética. 

No domingo, o secretário britânico das Relações Exteriores, Boris Johnson, intensificou o caso contra a Rússia, dizendo que o Reino Unido tem provas de que Moscou tem armazenado agentes químicos Novichok e está pesquisando seu uso em assassinatos. A Rússia negou a acusação. 

Se for comprovada, ela projetará dúvidas sobre o trabalho do órgão de monitoração, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2013 por tornar as armas químicas um “tabu sob o direito internacional”. 

“É um verdadeiro choque para o sistema”, disse Paul Walker, diretor de sustentabilidade ambiental na Cruz Verde Internacional, grupo que defende o desarmamento.

“Ninguém que eu conheça questionou a veracidade de que eles declararam tudo”, disse Walker. “Agora, com a situação do Novichok, é um novo dia na Opaq. As pessoas vão perguntar: esse sistema de inspeção é intrusivo o suficiente? No conselho executivo, especialmente, as pessoas estão perguntando sobre arsenais secretos.”

NEGATIVA

A Rússia reagiu firmemente à acusação, comparando-a ao caso dos EUA, mais tarde desacreditado, de que Saddam Hussein armazenava armas químicas. Moscou sugeriu que o agente nervoso usado nos Skripals pode ter sido produzido no Reino Unido, na Suécia, na Eslováquia, na República Tcheca ou nos EUA.

A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zakharova, e o vice-ministro Sergey Ryabkov, disseram que não existia programa do Novitchok na Rússia ou na União Soviética.

Mas cientistas se apresentaram para descrevê-lo. Leonid Rink, que trabalhou para um laboratório de armas químicas soviético, disse ao serviço de notícias RIA Novosti que “um grande grupo de especialistas” trabalhou nas variedades e que produzir o agente seria “zero problema” para os laboratórios fora da Rússia.

Vladimir Uglev, que trabalhou no mesmo laboratório que Rink, disse ao site de notícias The Bell que ajudou a produzir quatro agentes sob o codinome Foliant de 1972 a 1988. Ele disse acreditar que, ao analisar os vestígios de agentes químicos no sangue, seria possível determinar “onde e por quem foi produzida a dose específica”. 

Ele acrescentou que, com base no que testemunhou na época, é improvável que as vítimas sobrevivam.

“Posso dizer com quase 100% de certeza que se Skripal e sua filha forem desligados dos equipamentos de apoio à vida eles morrerão”, disse Uglev. “Hoje eles estão vivos apenas tecnicamente.”

As autoridades britânicas estão caladas sobre a investigação, mas nos últimos dias intensificaram seu foco em veículos que os Skripals usaram, onde o agente, em forma de pó, poderia ter sido colocado em um trinco de porta ou no sistema de ventilação. 

Em uma entrevista à RIA Novosti, Rink, o cientista russo, desprezou a teoria de que o Novitchok poderia ter sido colocado na mala de Yulia Skripal, dizendo que é tão letal que “ela não teria chegado a Londres”. 

Atualmente, os inspetores da OPCW têm uma tarefa limitada: tirar amostras do agente usado no ataque e enviá-las para laboratórios independentes para determinar se é o Novitchok.

Se a disputa aumentar, porém, o Reino Unido poderá requisitar uma chamada inspeção de contestação nos laboratórios russos para procurar sinais de produção do Novitchokmedida que nunca foi invocada nos 21 anos de história do grupo de monitoração.

As inspeções de contestação se destinam a ser intensas e realizadas em curto prazo: os inspetores devem ter acesso a um laboratório em 36 horas após sua chegada.

EXCLUSÃO

A Convenção de Armas Químicas foi criada para eliminar grandes arsenais de armas químicas que poderiam ser usadas em batalha. A Rússia se comprometeu a destruir 40 mil toneladas e os EUA, 31,5 mil toneladas. A Rússia anunciou no ano passado que havia completado a tarefa. Os EUA eliminaram sete de nove arsenais, que continham cerca de 90% de seus agentes.

O Novichok, então um projeto em estágio inicial, não foi incluído na lista de substâncias proibidas feita em 1987, por isso a Rússia não tinha obrigação de relatar regularmente sobre seus estoques e sua destruição. 

Mas produzir o Novichok seria uma violação grave, porque o tratado proíbe de modo geral o desenvolvimento e o uso de armas químicas, disse Richard Guthrie, um especialista independente em armas químicas e editor da CBW Events.

No domingo, Johnson disse que o Reino Unido tem evidências de que a Rússia armazenou Novichok durante a última década e investigou maneiras de utilizar agentes nervosos para assassinatos. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores não quis descrever a evidência, dizendo apenas que “claramente, a informação a que o secretário se referia é muito delicada”.

Especialistas disseram que Londres poderia ter sabido de um programa secreto de diversas maneiras: interceptação de comunicações, espiões em laboratórios, publicações de químicos russos relatando a síntese de substâncias raras, ou um vírus de computador espreitando em equipamento ocidental vendido para uso em laboratórios russos.

Guthrie disse que ocasionalmente haviam surgido preocupações sobre um programa do Novichok, mas que o Reino Unido provavelmente tinha preferido não levantar a questão publicamente com a organização de monitoração de armas químicas por medo de atrapalhar acordos comerciais ou outros com a Rússia. 

“Se sua informação não é perfeita, você pode pensar: ‘Vamos deixar essa denúncia, talvez esta não seja muito séria’”, disse Guthrie. “Eles não acharam que fosse muito importante, e eu acho que o Novichok teria ficado em segundo plano se não o tivessem usado em Salisbury.”

Esta não foi a primeira vez que a agência de vigilância de armas químicas foi abalada pela política das grandes potências. Em 2002, seu diretor-geral, José Bustani, foi demitido em meio à polêmica sobre se o Iraque possuía estoques de armas químicas. Em uma entrevista, Bustani disse que os EUA pressionaram por sua remoção porque ele tinha convencido Saddam Hussein a aderir à convenção, o que segundo ele teria minado a tese dos EUA para invadir o Iraque. 

Mais recentemente, a Rússia usou seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU repetidamente para bloquear ações contra seu aliado, a Síria, com base nos relatórios do grupo de monitoria sobre o uso de armas químicas no país. Andrew Weber, um ex-secretário-assistente da defesa para programas de armas químicas, nucleares e biológicas, disse que isso maculou a “extraordinária conquista” da Rússia ao destruir 40 mil toneladas de armas estocadas.

“Isso reduz sua conquista —francamente, é uma desgraça, e agora a Federação Russa aparentemente foi apanhada em uma flagrante violação da Convenção de Armas Químicas”, disse Weber, que saiu na terça-feira (20) de uma reunião de rotina sobre projetos de desarmamento com especialistas em armas químicas russos. Eles estavam “envergonhados”, disse ele, quando o Novichok surgiu na conversa.

“Não querem acreditar que seu governo realmente fez isso”, disse Weber. 

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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