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Vítimas de agressão sexual revivem trauma com audiência de Kavanaugh

Durante relato de denunciante de nomeado de Trump à Suprema Corte, serviços telefônicos colapsaram

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Blasey Ford aparece de olhos fechados e boca franzida. Ela é amparada por uma outra pessoa, que só aparece a mão.
Christine Blasey Ford controla lágrimas enquanto fala na Comissão Judiciária do Senado dos EUA na última quinta-feira (27) - Michael Reynolds - 27.set.18/Reuters
Deborah Bloom
Washington | Washington Post

Doloroso. Torturante. De partir o coração. Insuportável. 

Foi assim que mulheres descreveram seus sentimentos enquanto ouviam na quinta-feira (27) a audiência na Comissão de Justiça do Senado, quando Christine Blasey Ford declarou que o juiz Brett Kavanaugh, indicado para a Suprema Corte dos EUA, a atacou quando ambos eram estudantes colegiais.

“Eu tive que desligar no minuto em que ele começou a ficar histérico”, disse Marie, referindo-se ao depoimento irado, desafiador e às vezes emocionado de Kavanaugh. “Tive lembranças do modo como meu ex-namorado gritou comigo. Mesmo através da TV, aquilo me aterrorizou.”

De sua casa em New Bern, na Carolina do Norte, Marie —que pediu para seu sobrenome não ser usado para poder falar abertamente sobre o ataque sexual que sofreu— assistiu à audiência na sala de estar com seus dois filhos. Enquanto Ford narrava sua história, Marie ficou tão nervosa que pediu para os filhos saírem da sala. 

A comissão votou na sexta-feira (28) de acordo com a linha do partido, para enviar a nomeação de Kavanaugh para votação no plenário do Senado. 

As duas sobreviventes de agressão sexual ainda se debatiam com as consequências emocionais da audiência de quinta, desencadeadas pela memória de outra suposta vítima que as obrigou a enfrentar suas próprias lembranças dolorosas.

Pouco depois de se sentar diante da comissão, Kavanaugh ficou visivelmente irritado. Quando isso aconteceu, disse Marie a The Washington Post, ela congelou, inundada por memórias de um ex-namorado que a estuprou, segundo ela, quando tinha 20 anos.

“Sempre que [Kavanaugh] interrompia as senadoras mulheres quando lhe faziam perguntas, era exatamente a mesma coisa que meu ex fazia quando eu tentava lhe perguntar alguma coisa e ele não gostava que eu me manifestasse pessoalmente”, explicou Marie.

Mulheres de todo o espectro político telefonaram para a rede C-SPAN durante os intervalos da audiência para falar sobre suas experiências como vítimas de agressão sexual. A Rede Nacional contra Estupro, Abuso e Incesto relatou um pico de 201% em ligações na quinta-feira, assim como tempo de espera sem precedentes em seu bate-papo online. 

A Linha de Texto de Crise, que oferece intervenção em crises, viu o número de pessoas que a procuravam com histórias de abuso sexual duplicar em outubro de 2017, quando o movimento #MeToo começou. A organização disse que é o maior número de relatos de abuso sexual que já recebeu desde a eleição em 2016.

Tais reações são comuns quando a agressão sexual está no noticiário, disse Nancy Glass, diretora-associada do Centro para Saúde Global Johns Hopkins. 

“Quando as pessoas ouvem outras contarem suas histórias, isso pode instigá-las, trazendo memórias de suas próprias experiências, mesmo que seja de muito tempo atrás”, disse Glass.

O resultado pode ser surpreendentemente físico. As substâncias químicas e os hormônios liberados pelo corpo durante uma experiência traumática também podem ser liberados quando a experiência é relembrada, disse Glass. São como sintomas. 

“Sua adrenalina dispara. Seu corpo produz uma reação inflamatória. Pode fazê-la se sentir ansiosa, com enjoo de estômago, dor de cabeça”, explicou Glass. “Tem reações diferentes em pessoas diferentes.”

Glass disse que trabalhou com sobreviventes de ataque sexual durante 25 anos e que as audiências lhe trouxeram à memória as muitas histórias horríveis que ouviu durante sua carreira profissional em saúde pública.

Como os veteranos de combate, as vítimas de agressão sexual podem sofrer transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). O gatilho para o TEPT em uma vítima ocorre quando ela é levada a lembrar ou reviver o trauma, seja um acidente de carro ou um ataque sexual no Capitólio.

O depoimento de Ford —e seu nervosismo visível— também lembrou a algumas vítimas a vergonha que sentiram de sua experiência e a decisão comum de não contá-la a ninguém. 

“As audiências me lembraram de ser uma vítima de um tipo semelhante de agressão —da confusão que se seguiu, e de não querer fazer disso uma longa história”, disse Chelsea Rider, de Portland, no Oregon.

“Parece tão sensato na época simplesmente varrer a coisa para baixo do tapete e tentar seguir em frente”, acrescentou ela. “Mas você simplesmente não sabe onde seu agressor vai acabar.”

Lisa Barnhill assistiu à audiência de sua casa perto de Missoula, em Montana. Ela diz que foi estuprada em 2012 em uma festa, por um homem em quem confiava. Conta que sintonizou no depoimento de Ford, mas cinco minutos após o início da acareação teve de desligar.

“Você podia ouvir a voz [de Ford] tremendo”, disse ela. “Quando eles começaram a trazer nossos gráficos e perguntar onde fica sua casa em relação à festa —foi demais.” 

Barnhill diz que tentou seguir seu dia, e então começou a sentir a memória de seu ataque voltar. “Era uma sensação na boca do estômago”, explicou. “Comecei a reviver minha experiência. Minhas mãos tremiam. Meu corpo inteiro tremia às vezes. Meu coração batia.”

Kristie, que também não quis que seu sobrenome fosse publicado, disse que a audiência continua a devastá-la.

“Há algumas semelhanças entre a história de Ford e a minha”, disse Kristie. Ela contou ao “Post” que seu estupro também aconteceu em uma festa de colégio onde os garotos beberam. Ela acordou com um colega tentando tirar suas roupas.

“Eu disse a ele várias vezes ‘não’”, narrou Kristie. “Diversas vezes. Tentei empurrá-lo e resistir. Ele era mais forte, mais alto e maior que eu. Eu era virgem, e isso foi tirado à força de mim.”

Kristie diz que ela e Ford têm mais uma coisa triste em comum: ela não consegue lembrar os detalhes que muitos acham que deveria lembrar daquela noite.

“Não consigo lembrar a data exata ou o mês, mas sei a estação”, disse Kristie. “Quando as pessoas afirmam que ela não deve estar dizendo a verdade porque não lembra a data, eu pensei: ‘É o que as pessoas diriam a mim’.” 

Assistindo à audiência em sua casa em Ocean View, em Delaware, Kristie disse que sentiu o peito apertado. Contou que perdeu o apetite desde que a audiência terminou, na quinta à noite. 

“Senti uma dor no meu íntimo. Pensei em quando isso aconteceu comigo, como fiquei com medo”, disse Kristie. “Ainda tenho medo todos os dias.”

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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