Ex-combatentes das Farc tentam reconstruir suas vidas pós-guerrilha

Desde o acordo de paz, em novembro de 2016, mais de 70 ex-guerrilheiros foram assassinados

Uma das ruas do vilarejo de Heiler Mosquera, na Colômbia, onde vivem ex-combatentes das Farc - Gerald Bermúdez/Folhapress
Gerald Bermúdez
Puerto Asís (Colômbia)

Apesar dos avanços na implementação do acordo de paz com as Farc que pôs fim a cinco décadas de guerra civil na Colômbia, ex-guerrilheiros no país vivem sob ameaça constante.

De novembro de 2016 até hoje, mais de 70 ex-combatentes das Farc foram assassinados. Só 8% das medidas previstas no acordo que dizem respeito às garantias de segurança para ex-combatentes foram implementadas, segundo o Instituto Kroc (centro de estudos internacionais vinculado à Universidade de Notre Dame, em Indiana, EUA), que desde 1989 monitora acordos de paz em 34 países.

Soma-se a essa situação o fato de que o novo presidente da Colômbia, Iván Duque, herdeiro político de Álvaro Uribe, foi contra o pacto firmado entre o ex-presidente Juan Manuel Santos e as Farc.

Duque deixou claro que pretende modificar o que foi acordado, dizendo que faltam recursos econômicos para a implementação.

Alex Rodríguez, ou "Patamala", era um comandante de médio escalão das Farc e hoje tenta se adaptar à vida depois da guerrilha —ele sobreviveu a um atentado a tiros em agosto na vila onde se instalou com outros ex-combatentes, na Zona Veredal Heiler Mosquera, em La Carmelita, município de Puerto Asís, no departamento de Putumayo.

Um, dois, três, cinco, nove disparos —Alex não conseguia contá-los enquanto pulava de um lado para o outro, esquivando-se das balas. Tudo era confusão na noite amazônica. 

Sua família, sua própria vida passavam diante de seus olhos, enquanto pensava que tudo fosse acabar para ele naquele instante, naquele lugar.

Não era possível, pensava, que ele, um dos ex-comandantes responsáveis por estruturar a estratégia de reinserção dos ex-combatentes no departamento de Putumayo, alguém que sobrevivera a incontáveis combates e bombardeios, fosse morrer assassinado em sua nova casa.

Alex militou mais de três décadas nas Farc, desde que começou a fazer um trabalho político no departamento de Huila na década de 1980.
 
Como guerrilheiro das Farc, ascendeu ao médio escalão do Bloco Sul desse agrupamento guerrilheiro, que operou na região sul do país, nos departamentos que correspondem à Amazônia colombiana.

Essa região é especialmente complexa pelo fato de reunir três fronteiras (com o Equador, o Peru e o Brasil), nas quais a passagem de contrabando de mercadorias de todo tipo, incluindo cocaína, é o pão de cada dia.

As Farc estiveram presentes nessa região por mais de 40 anos e controlaram a vida dos que ali chegavam como colonos ou que já habitavam esses territórios.

Aqueles que faziam parte das Farc viviam segundo a lógica dos guerreiros, sem saber quando poderia ser o último minuto de suas vidas. Por essa razão, muitos decidiram não ter família nem criar laços de casal com outros membros do grupo guerrilheiro.

Quando conheci Alex, em 2014, ele pensava que, quando a guerra terminasse, ele próprio acabaria seus dias sozinho, ou, ainda pior, sendo assassinado por alguém que nem sequer conhecesse.

Quatro anos depois, com a guerra entre o governo colombiano e as Farc encerrada, apenas uma das previsões chegou perto de se realizar. Mas é preciso explicar como e por que a guerra terminou para compreender a dimensão trágica dos sonhos de um ex-combatente.

Em 2010 o governo de Álvaro Uribe, em final de mandato, deixou uma fase de aproximação com o grupo insurgente bastante avançada. Foi durante o mandato de Juan Manuel Santos que foram realizadas as negociações de paz com os comandantes da guerrilha, em Havana, Cuba.

A partir desse momento, Alex decidiu apostar na consolidação da paz. Ele se inscreveu para fazer parte do Mecanismo de Monitoramento e Verificação do acordo, composto pela ONU, pelas Farc e por sua contraparte estatal.

Depois de assinado o acordo de paz, em 2016, começou para 7.000 pessoas armadas o longo processo de saída da guerra. Alex e sua companheira, "Policarpa Salavarrieta" (nome de uma heroína da independência colombiana, adotado por ela), junto com 500 guerrilheiros do Bloco Sul, viajaram quatro dias de barco e ônibus da selva até a Zona Veredal Heiler Mosquera.

Na noite de 28 de agosto deste ano, Alex estava vendo televisão em sua nova casa em La Carmelita. Sua companheira e a filha do casal, de 1 ano e 5 meses, estavam em outra cidade. Às 20h30, Alex ouviu alguém que o chamava nos fundos da casa.

Ele saiu no escuro e viu uma silhueta que o chamou. Cauteloso por natureza e com os instintos aguçados por anos de guerra, ele decidiu não se aproximar da figura, e, ao ver que ela levava a mão à cintura, correu para dentro da casa.

Foi quando ouviu três disparos e sentiu dois golpes, um em seu braço direito e o outro no abdome. Ele os ignorou e continuou correndo, saindo pela porta de frente, onde encontrou outro homem que começou a atirar nele. 

Novamente seus reflexos o salvaram, e ele conseguiu se esquivar dos disparos, que dessa vez foram seis. Os buracos de bala ainda estão visíveis nas paredes de "superboard" (papelão comprimido) das quais é feita sua casa e as de todos os que vivem na vila.

Alex fugiu por uma lateral da casa, enquanto os pistoleiros escapavam de motocicleta. Ele pediu ajuda a vizinhos, que vieram cuidar de seus ferimentos, que fizeram jorrar sangue como não acontecia desde os tempos da guerra.

Devido à falta de um anel de segurança em volta da zona onde vivem os ex-combatentes, além da proximidade com o corredor Puerto Vega-Teteyé, enclave do tráfico de petróleo e de drogas, sete ex-combatentes foram assassinados na zona desde janeiro de 2017. Alex escapou por pouco de ser o oitavo.

Assim, começou a questionar sua permanência no local, necessária por ele ser o responsável em Putumayo pelo partido político das Farc.

Para ele, a prioridade é sua sobrevivência e a de sua família. Alex é um homem de trato forte e palavras certeiras, que, ao ser perguntado sobre quem poderia ser responsável pelo atentado, diz que recebeu ameaças de pessoas próximas a um ex-combatente que nutre rancor por ele desde a guerra.

Além disso, Alex não descarta a possibilidade de estarem por trás do atentado grupos armados próximos da direita e de uma corrente de pensamento que se dedicou a atacar o acordo desde 2014.

Esses setores identificados com a direita radical, o conservadorismo e o Centro Democrático, partido político do ex-presidente e hoje senador Álvaro Uribe, fizeram oposição ferrenha às negociações.
 
Em outubro de 2016, depois de assinado o acordo de paz com as Farc, Santos submeteu a implementação do acordo a um plebiscito. A campanha desses setores levou o "não" à paz a vencer nas urnas.
 
Essa situação levou à reformulação de alguns dos pontos do pacto. Desse modo, a paz com as Farc foi assinada duas vezes em menos de seis meses: em junho e em novembro, após a vitória do "não".

Para Alex, a única coisa que falta na Colômbia com relação ao que foi acordado com as Farc e à implementação dos acordos de paz é o compromisso assumido por aqueles que ele chama de "inimigos da paz" de que os colombianos poderão se reconciliar para deixar para trás uma guerra de mais de 50 anos.

Tradução de Clara Allain

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.