Descrição de chapéu The Washington Post

Em Camarões, jornalistas são presos acusados de fake news

Antes pacífico, país está mergulhando numa espiral de guerra civil nas regiões de língua inglesa.

Homens presos por ter relação com o movimento anglófono são levados a julgamento em Iaundé - AFP
Siobhán O'Grady
The Washington Post

Em Camarões, onde separatistas de língua inglesa estão lutando contra o governo de tradição francesa para criar um novo país, jornalistas que cobrem a violência com frequência acabam presos por uma acusação surpreendente: fake news, ou notícias falsas.

O último caso se concentra no assassinato de um missionário americano de Indiana (EUA), que foi morto a tiros 12 dias depois que sua família se mudou para este país da África central, em outubro. Logo depois de sua morte, em uma das regiões mais instáveis do país, a jornalista camaronesa Mimi Mefo Takambou tentou descobrir quem o matou. 

Mas depois que ela citou nas redes sociais relatos que afirmavam que militares camaroneses tinham matado Charles Wesco, ela foi acusada de publicar notícias falsas e depois, presa.

Mefo, que trabalha para a Equinoxe TV, está entre os mais de 12 jornalistas que foram presos ou interrogados neste ano em Camarões, país antes pacífico que hoje está mergulhando numa espiral de guerra civil em suas regiões de língua inglesa.

No início deste mês, sete jornalistas estavam em custódia --quatro por relatar falsas notícias, três por acusações diversas, como enriquecimento ilícito e difamação, segundo o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ). Dois deles foram libertados depois, mas Camarões continua sendo o segundo país que mais prende jornalistas na África subsaariana depois da Eritreia, segundo o CPJ. 

A lei camaronesa proíbe uma pessoa de publicar "qualquer notícia sem poder provar que é verdade ou que teve bons motivos para acreditar que fosse verdade". 

Defensores da imprensa livre notam um repentino aumento nas acusações de fake news, enquanto o governo tenta calar os jornalistas que relatam a crescente crise interna.

No entanto, o governo afirma que a disseminação deliberada de informação inexata distorce e inflama o conflito. 

"É um problema terrível para nós —fake news, desinformação, envenenamento", disse Issa Tchiroma Bakary, ministro camaronês das Comunicações, em seu gabinete na capital, Iaundé. "Somos confrontados por esse problema, para o qual, infelizmente, não temos uma solução. (...) Os jornalistas precisam primeiro verificar a autenticidade da informação antes de publicá-la."

O caso de Mefo é especialmente delicado porque as autoridades camaronesas temeram que a morte de um americano perturbasse as relações com os EUA, um parceiro chave em sua segurança. Cerca de 300 soldados americanos estão na região norte do país, onde treinam e ajudam tropas camaronesas a combater os militantes do Boko Haram.

O conflito nas regiões anglófonas, distantes de onde essas tropas estão baseadas, deslocou centenas de milhares de pessoas, segundo estimativas da ONU. A Anistia Internacional relatou em setembro que pelo menos 400 civis foram mortos no último ano —número que o governo contesta.

Grupos de direitos humanos acusaram os dois lados de violência, culpando os separatistas por ataques às forças de segurança, escolas e outros alvos e acusando os militares de abusos que incluem incendiar aldeias e matar civis. 

As crescentes acusações contra forças camaronesas levaram alguns senadores americanos a pedir uma reavaliação da ajuda de segurança que os EUA dão ao país. 

O governo de Camarões negou as denúncias de abusos generalizados aos direitos humanos nas regiões de língua inglesa. O coronel Didier Badjeck, porta-voz do Ministério da Defesa, disse que "o Exército camaronês está fazendo um serviço que é só um serviço, seguindo as regras e respeitando os direitos humanos". 

Os jornalistas que reportam sobre o conflito muitas vezes se veem apanhados entre os dois lados. 

"Temos a impressão de que se você não tece elogios a um determinado indivíduo, seja o governo, os combatentes pró-independência ou mesmo a oposição [política], você é considerado um inimigo", disse Mefo em sua casa em Douala. Ela foi libertada em novembro depois de passar três noites na cadeia. 

Angela Quintal, coordenadora do programa África na CPJ, disse que em Camarões e outros lugares a expressão "fake news" está sendo usada para "tentar demonizar os jornalistas". Em todo o mundo, a organização de defensoria notou um aumento em denúncias de fake news pelos governos —uma frase favorita do presidente Donald Trump-- e um aumento nas prisões.

"A linguagem de Trump é do tipo que está sendo repetido em todo lugar", disse ela. "Não só a estão repetindo, como jornalistas estão sendo presos."

O francês e o inglês são os idiomas nacionais de Camarões, um subproduto do legado colonial europeu que moldou a identidade bilíngue atual do país. Mas os que falam inglês formam apenas 20% da população, e os francófonos controlam amplamente o governo. Os anglófonos dizem que foram assimilados à força aos sistemas jurídico e educacional em francês e que seus problemas não são tratados adequadamente pelo governo central em Iaundé.

Dois anos atrás, as frustrações ferveram em um movimento de protesto. Vários líderes anglófonos moderados foram presos, e vozes mais radicais ocuparam seus lugares. Em breve, um movimento separatista armado lutava para se separar de Camarões e criar um novo Estado chamado Ambazonia.

Em 7 de novembro, Mefo teve recusado o pedido de fiança, foi algemada e levada para o presídio New Bell em Douala, uma grande cidade portuária.

"Como advogado, quando essas coisas acontecem, você fica aterrorizado", disse Richard Tamfu, o principal advogado no caso de Mefo.

O presidente de Camarões, Paul Biya, ao votar na eleição de outubro de 2018 - Alexis Huguet - 7.out.2018/AFP

O presidente camaronês, Paul Biya, interveio e ordenou que as acusações contra ela fossem arquivadas.

Um francófono de 85 anos, no poder desde 1982, Biya recentemente ganhou a reeleição numa disputa que a oposição afirmou ter sido fraudada. Ele foi empossado para mais um mandato na véspera da prisão de Mefo.

Embora sua detenção tenha sido curta, o dano estava feito, disse Tamfu. "É realmente uma situação assustadora porque a maioria dos jornalistas não quer se manifestar agora. Eles não querem ir àquelas áreas fazer reportagem", afirmou. 

Tchiroma, o ministro das Comunicações, insiste que o governo não considera os jornalistas inimigos. "Mas essa senhora cometeu um erro", disse ele sobre Mefo ter relatado a morte de Wesco. Biya lhe deu "mais uma chance de reassumir seu emprego e fazê-lo desta vez com muito mais cuidado".

Mas nem a família de Wesco sabe exatamente o que aconteceu no dia em que ele foi morto. 

Charles e sua mulher, Stephanie, ambos de Indiana (centro-oeste dos EUA), se conheceram quando Charles, um afinador de pianos, esteve na casa de seu pai para cuidar do piano. Eles estavam casados havia 14 anos quando se mudaram com a família para Camarões para seguir a vocação de missionários.

Charles "não tinha a intenção de se envolver" no conflito, disse Stephanie em um telefonema de Indiana, para onde a família Wesco retornou.

Quando o casal e seus oito filhos se mudaram para Camarões, em 18 de outubro, "foi literalmente como se ele estivesse vivendo o grande sonho de sua vida", disse Stephanie. 

Mas em 30 de outubro o casal, seu filho de 11 anos e outro missionário americano pegaram um carro para visitar um mercado próximo de sua casa. Eles mapearam o caminho para evitar perigo e rezaram pela proteção de Deus antes de partir, disse ela. 

Do momento em que um atirador abriu fogo, o resto é um "borrão", disse Stephanie. Ela presenciou o assassinato do marido, mas não sabe quem puxou o gatilho. 

O Departamento de Estado dos EUA não identificou um suspeito, dizendo em um comunicado público que Charles foi "apanhado em fogo cruzado". As autoridades camaronesas dizem que a autópsia determinou que ele foi morto por munição comumente usada pelos separatistas. Eles insistem que todas as evidências apontam para os combatentes pró-independência.

Mas para Mefo, que fez extensas reportagens sobre a crise nas regiões anglófonas, a morte de Wesco faz parte de uma série de incidentes opacos em que é difícil alguém, mesmo jornalistas, discernir quem foi o responsável. Isso não significa que eles devam parar de reportar, disse ela. 

"O lugar do jornalista não é atrás das barras", afirmou Mefo. "Nós somos os vigilantes da sociedade." 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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