Descrição de chapéu The New York Times

Reportagens parciais e suspeitas de suborno prejudicam TVs e rádios do governo dos EUA

Incidentes prejudicam esforço do governo para combinar jornalismo e mensagens políticas

Elizabeth Williamson
The New York Times

Os serviços internacionais de rádio e TV do governo dos Estados Unidos têm um problema: estão se tornando notícia.

A TV Martí, que transmite programas de TV para Cuba, em maio veiculou um segmento no qual o bilionário financista George Soros, veterano oponente do autoritarismo e doador de verbas para causas associadas ao Partido Democrata, era descrito como "um judeu não praticante cuja moral é flexível".

A Voz da América, principal veículo do governo americano para promover os valores do país no exterior, sofreu um abalo em outubro, quando 15 de seus jornalistas foram demitidos ou sofreram medidas disciplinares depois de uma investigação que constatou que aceitaram "envelopes marrons", ou seja, propinas, de um representante do governo nigeriano.

O investidor americano George Soros, alvo de reportagem parcial da TV Martí - 19.nov.2018/AFP

E apenas algumas semanas mais tarde, a Voz da América demitiu a diretora de seu serviço em mandarim, depois que um bilionário chinês exilado que é defendido por figuras da direita americana e conhecido como divulgador de acusações não substanciadas contra o governo de Pequim foi entrevistado ao vivo durante três horas pela rádio.

Esses fiascos são os mais recentes problemas em uma série de incidentes que há anos prejudicam os esforços do governo para combinar jornalismo e mensagens políticas, em seu conjunto de canais de rádio e TV que atendem a todo o planeta.

O indicado de Trump para a presidência executiva da agência de mídia do governo é Michael Pack, que dirige uma produtora de programas de TV conservadores sediada em sua casa, no subúrbio de Washington. Ele recusou um pedido de entrevista.

Pack vai se unir a outros funcionários leais a Trump na organização, que alguns empregados dizem já ter demonstrado claras preferências políticas em seu conteúdo. Entre os empregados do departamento cubano, por exemplo, está Jeffrey Shapiro, antigo redator da Breitbart News que desempenhou papel proeminente em uma batalha política renhida pelo controle da agência este ano.

Shapiro, um acólito de Steve Bannon, ex-estrategista político de Trump, não respondeu a um pedido de entrevista para este artigo.

Pack, que está aguardando confirmação pelo Senado, colaborou com Bannon, antigo presidente da Breitbart News, na produção de vídeos, e afirmou que a correção política imposta pelos progressistas está sufocando o segmento de documentários.

Um projeto de lei adotado recentemente concentra os poderes da agência nas mãos do presidente-executivo. Caso Pack seja confirmado, ele disporia de poderes consideráveis e o conselho da organização, formado por integrantes de ambos os partidos, seria substituído por um comitê consultivo.

Os atuais dirigentes, indicados no governo Obama e em sua maioria oriundos da mídia tradicional, antecipam que perderão seus empregos quando Pack assumir. Entre eles estão John Lansing, atual presidente-executivo da agência, e Amanda Bennett, repórter investigativa premiada com o Pulitzer de jornalismo e atual diretora da Voz da América.

Por enquanto, porém, eles intensificaram seus esforços para encorajar o profissionalismo, reforçar os padrões éticos e lembrar a equipe das salvaguardas existentes contra interferência política.

O trabalho da agência, e os episódios que apontam para uma virada ideológica à direita da parte de alguns dos profissionais de sua equipe antes mesmo da posse da equipe indicada por Trump, atraíram atenção especial, depois que o presidente sinalizou que gostaria de ver o governo desempenhando um papel maior no desenvolvimento de uma mensagem distinta das veiculadas pela mídia noticiosa.

Em tuíte postado no mês passado, Trump criticou a maneira pela qual a rede de notícias CNN retrata os Estados Unidos, e mencionou a possibilidade que o governo crie "nossa própria Rede Mundial para mostrar ao Mundo que somos realmente GRANDES!"

O que está em risco, por conta de deslizes recentes e diante do potencial de que Trump imponha sua visão distorcida das notícias, dizem analistas, é a reputação da agência como uma fonte de informação objetiva e confiável, em países nos quais a liberdade de imprensa sofre ataques.

Reportagens dos 3.500 jornalistas da rede governamental atingem mais de 345 milhões de pessoas, em 100 países, a cada semana.

"O que está em jogo aqui é a reputação dos Estados Unidos como um paradigma da livre informação, da liberdade de expressão e da verdade", disse Frank Sesno, ex-jornalista de TV e diretor da escola de mídia e assuntos públicos na Universidade George Washington.

"Se seguirmos o caminho de transformar nossas transmissões internacionais em produto que parece sujeito a manipulações, ou se elas se tornarem uma rede para teorias de conspiração, ou se passarem a se dedicar à apologia de alguém, perderemos estatura e respeito, como país".

Os jornalistas da agência estão protegidos legalmente contra interferência política, mas não está claro como essa proteção seria aplicada na prática. Por décadas, uma combinação instável de política e jornalismo gerou problemas de gestão, disputas pelo controle e inércia.

Em depoimento ao Congresso em 2013, a então secretária de Estado Hillary Clinton definiu a agência como "praticamente moribunda em termos de sua capacidade de difundir mensagens em todo o mundo".

Lansing assumiu como presidente-executivo em 2015, depois de uma reestruturação da estrutura administrativa. Ele, Bennett e uma equipe de jornalistas experientes elevaram a audiência semanal das redes da agência em mais de 100 milhões de pessoas, em todo o mundo, e desenvolveram modelos para mensurar os efeitos de seu trabalho.

Expandiram seu uso de plataformas, com transmissões de rádio e TV ao vivo cifradas e uso de rádios de ondas curtas para divulgar conteúdo em países que proíbem ou tentam bloquear a programação originada nos Estados Unidos.

A Current Time, uma rede voltada à audiência russa que transmite notícias, programas especiais e documentários, foi criada em 2017. Os sites Polygraph e Faktograph foram criados para combater a torrente de desinformação veiculada pela mídia estatal russa. Um novo serviço em farsi, o VOA365, vai entrar no ar no começo do ano que vem.

Governos autocráticos estão prendendo, censurando e pressionando os jornalistas da agência, e por isso ela tem recorrido a freelancers trabalhando sob pseudônimos. e vem enviando repórteres a áreas remotas para cobrir manifestações, desastres nacionais e eleições, de forma a escapar à atenção imediata das autoridades.

Mas promover mudanças vêm sendo difícil, como demonstram os diversos problemas jornalísticos e éticos recentes, o que faz com que alguns empregados se preocupem com a possibilidade de que o governo Trump e seus aliados explorem essas vulnerabilidades como uma desculpa para reorientar a missão da agência.

"Isso servirá para alimentar as pessoas que querem nos levar em direção muito diferente?", disse Bennett sobre os escândalos recentes. "Quem pode saber?"

Lansing diz que não sofreu interferências vindas de cima, e rebateu as informações quanto a discórdia e nervosismo entre o pessoal de carreira na agência. Mas ele e sua equipe reconhecem que, em uma empreitada de alcance mundial e bancada por verbas federais, e cujos empregados representam ampla variedade de posições, existe claramente o potencial de que preferências políticas se tornem um problema.

Este ano, surgiram informações de que Shapiro, o assessor do governo Trump, se havia aliado com um veterano executivo da agência, Andre Mendes, em um esforço para se posicionarem como os líderes da organização na era Trump.

Mendes subsequentemente se transferiu para o Departamento do Comércio, mas Shapiro continua a trabalhar no departamento cubano, que ele teria supostamente acusado de simpatizar com o governo comunista de Havana.

Sasha Gong, a diretora do serviço em mandarim da Voz da América, foi colocada de licença depois de sua entrevista ao vivo com o bilionário chinês Guo Wengui, e apareceu em "Trump@War", um documentário dirigido por Bannon, enquanto ainda era empregada da rádio.

Ela foi demitida no mês passado, mas está recorrendo da decisão.

Steven Springer, o editor de padrões éticos da agência, antigo jornalista da CNN, disse que enfrentou dificuldades para instilar uma cultura de equilíbrio político no departamento cubano, de onde se originou a transmissão que criticava Soros.

Ele disse que há momentos em que "as pessoas não compreendem bem como certos aspectos do jornalismo deveriam funcionar", entre os quais questões básicas como seleção de fontes, atribuição de declarações e como evitar plágios.

Tomás Regalado, apontado pela Casa Branca para dirigir o departamento cubano da agência, foi repórter de um jornal em espanhol e prefeito de Miami, e diz ter sido recomendado para o posto pelo senador Marco Rubio, republicano da Flórida.

Regalado disse que quando começou na agência, em junho, "a primeira coisa que alguns apresentadores de programas me perguntaram era se podiam chamar Raúl Castro de ditador. E eu respondi que claro que sim. Vão em frente".

Regalado não esteve envolvido nas transmissões contra Soros, e as definiu como "um pesadelo". Mas declarou em entrevista que a Judicial Watch, uma organização conservadora que difunde teorias da conspiração e que serviu de fonte para algumas das afirmações falsas ou enganosas dos programas sobre o empresário, era "uma boa fonte".

As reportagens sobre Soros foram apresentadas por Isabel Cuervo, jornalista da TV Martí. Elas continham afirmações infundadas e antissemitas quanto a Soros, entre as quais a de que ele deflagrou a crise financeira de 2008, e a de que sua Open Society Foundation é "uma fachada para investir em países e pilhá-los".

O material ficou disponível por dias no site e foi reprisado na programação de rádio e TV da TV Martí, Mas só atraiu atenção em outubro, quando uma bomba caseira foi enviada à casa de Soros.

Lansing escreveu cartas pedindo desculpas a Soros e aos líderes da Open Society Foundation, e ordenou uma investigação do episódio e uma revisão de todo conteúdo veiculado na TV Martí por jornalistas terceirizados, nos últimos 12 meses. Um relatório sobre o acontecido deve ser divulgado em janeiro.

Regalado disse que dois colaboradores terceirizados tiveram seus contratos cancelados e quatro empregados da agência federal foram suspensos, entre os quais Wilfredo Cancio, ex-diretor de notícias da Martí, e Cuervo, que continua a veicular o conteúdo contra Soros em sua página de Facebook. Ainda há links para o conteúdo no site da TV Martí. Representantes de Soros apelaram por mais fiscalização na agência.

Bennett disse que era importante que os problemas chegassem ao conhecimento do público, mesmo que isso cause embaraços.

"Queremos usar esses incidentes para dizer 'eis os nossos padrões, e ter princípios como esses é realmente importante'", ela declarou. "É um combate que vale a pena".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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