Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Início do governo Bolsonaro preocupa, afirma chefe da Anistia Internacional

Uma das estrelas em Davos, Kumi Naidoo critica decreto sobre armas e cerceamento à imprensa

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Davos

Kumi Naidoo está pessimista com o Brasil. Para o ativista sul-africano de 54 anos que dirige a Anistia Internacional, uma das organizações de defesa dos direitos humanos mais presentes e atuantes no mundo, os primeiros passos do governo de Jair Bolsonaro foram pouco animadores, sobretudo no que diz respeito à liberdade de imprensa, sob risco em várias partes do mundo.

“Liberdade de associação, liberdade de reunião e liberdade de expressão são os três direitos mais fundamentais para que as pessoas possam exercer seus direitos democráticos”, afirma. “Estamos bem preocupados.”

Kumi Naidoo, secretário-geral da Anistia Internacional, durante painel em Davos, na Suíça - Manuel Lo -22.jan.19/World Economic Forum

Ainda assim, Naidoo, que começou seu ativismo combatendo o Apartheid e esteve à frente do Greenpeace por seis anos, diz que apreciaria uma chance de conversar com Bolsonaro e mostrar o porquê de suas preocupações. 

Diz torcer para que ele não cumpra todas as promessas de campanha, “como 99% dos políticos no mundo fazem”, mas as semelhanças entre o brasileiro e o americano Donald Trump o levam a crer que esse cenário é menos provável.

Naidoo esteve em Davos nesta semana para participar do Fórum Econômico Mundial, onde tem sido uma das estrelas. É virtualmente impossível andar com ele pelos corredores do centro de convenções que abriga o evento sem parar a cada metro para que alguém o cumprimente, de ativistas a premiês.

 

Li seu comentário crítico sobre o discurso do presidente Jair Bolsonaro [Naidoo chamou de contraditório o compromisso que o brasileiro afirmou ter com o multilateralismo] e quero fazer a pergunta oposta: não há algo bom no discurso? 

Para responder essa pergunta você precisa olhar para Donald Trump. Eu e outras pessoas vemos grande semelhança entre os dois.

Trump disse que iria “drenar o pântano” e acabar com a corrupção [em Washington]. Bolsonaro também diz isso. Vamos ver o que ele faz com a corrupção, ainda é cedo para falar qualquer coisa positiva. Trump deixou o pântano pior. 

O filho mais velho de Bolsonaro, Flávio, que é senador, está sendo investigado por movimentações atípicas em suas contas.

Essa, aliás, é mais uma semelhança. Trump trata a Casa Branca como um negócio de família, e eu espero que Bolsonaro não faça a mesma coisa. Esse tipo de coisa —dinastia, interesses familiares— é o que destrói a democracia. 

Vou te dizer por que é difícil ser otimista: a maior parte dos líderes políticos não pode ser julgada pelo que diz, e sim pelo que faz. Quando Trump estava em campanha, muita gente dizia que ele não ia ser eleito. Quando foi eleito, muita gente dizia que não ia fazer o que prometeu. 

Agora as pessoas estão esperando para ver se Bolsonaro vai se moderar ou manter as posições antidireitos civis. Mas se você olhar para alguns de seus primeiros passos, eles já dizem alguma coisa. 

Por exemplo, afrouxar o controle de armas em um país que tem 68 mil mortes por armas de fogo por ano, e nem 10% desses assassinatos são investigados. Há algo interessante no Brasil: enquanto as mortes de pessoas brancas por armas de fogo tem decrescido, as de pessoas negras estão continuamente subindo. Isso nos preocupa, até porque negros são maioria.

Outra coisa triste diz respeito ao Pacto de Migrações da ONU. As negociações em Marrakech foram superdifíceis, mas o acordo saiu. Uma das primeiras medidas de Bolsonaro, no entanto, foi retirar o Brasil da acordo. 

Vai ser interessante ver quanta ênfase Bolsonaro dá aos Brics [grupo de emergentes que reúne Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul], e como os Brics respondem a ele. A maioria dos Brics está muito comprometida com o Acordo de Paris, e Bolsonaro ameaçou sair dele...

Bolsonaro disse aqui em Davos que ficará no Acordo do Clima. 

Pois a saída do Brasil poderia fazer os Brics colapsarem. E tem uma terceira coisa muito preocupante, que é a Funai estar sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura. A questão com o Ministério do Meio Ambiente [ficar sob Agricultura] também preocupou. Hoje pouca gente diz não acreditar no aquecimento global, mas o que algumas empresas e governos têm feito é se dizer preocupados e dilatar o cronograma de ação o máximo possível. 

Enfim, as primeiras ações dele são preocupantes, mas, como eu disse após o discurso em Davos, embora ele tenha dito algumas coisas muito ruins, esperamos que as instituições no Brasil estejam sólidas, como estão há muito tempo.

Como avalia as instituições públicas no Brasil? 

É difícil dizer, pois o momento está muito fluido. Por isso estamos fazendo um chamamento a todas as entidades no Brasil para que fortaleçam suas missões. Trump tentou solapar muitas das instituições americanas —ele atacou do FBI à Suprema Corte. 

Nós estamos completamente abertos ao diálogo, a Anistia conversa com qualquer líder político, empresarial ou social, apesar das divergências. Ficaríamos felizes em explorar a possibilidade de uma reunião para apresentar nossas preocupações.

O governo anunciou que colocaria as ONGs sob uma moratória para recebimento de fundos e que pretende monitorá-las.

Liberdade de associação, liberdade de reunião e liberdade de expressão são os três direitos mais fundamentais para que as pessoas possam exercer seus direitos democráticos.

Estamos bem preocupados. E o que temos visto com líderes que usam o discurso de ódio para mobilizar  simpatizantes é que, mesmo que o governo em si não faça nada, isso fortalece seguidores mais fanáticos para que façam. Crimes raciais aumentaram nos EUA e no Reino Unido pós ‘brexit’. Temos que ficar atentos. 

Pode haver problemas com Trump, Bolsonaro e com os nacionalistas na Europa, mas essas pessoas estão sendo eleitas legitimamente. 

Bom, a eleição americana parece ter sofrido interferência em altos níveis, e, quanto à eleição brasileira, ainda temos que verificar, pois parece que há muitas caixas fechadas.

Não dá ainda para concluir que esses resultados sejam genuinamente a vontade popular, sem manipulação. 

Ainda assim, você tem razão: se você for constitucionalista, os requisitos foram cumpridos. A sociedade civil tem que dar um passo para trás e perguntar por que as pessoas estão votando contra seu próprio interesse, menos salário mínimo, menos segurança. 

De qualquer modo, não dá para enganar todo mundo o tempo todo. Em algum momento, essas pessoas perceberão que caíram numa promessa falsa. Por ora vamos ter esperança. Vamos torcer para que Bolsonaro seja como 99% dos políticos no mundo e não cumpra a suas promessas, mas por enquanto ele está muito parecido com o Trump.

O que não significa que não tenhamos que repensar nossas ações, usar a linguagem das pessoas comuns e menos jargão. Líderes de organizações civis têm que estar mais sintonizados com a vida das pessoas.

Veja o caso Marielle —ela estava embrenhada na vida da comunidade. Precisamos de mais Marielles. Se os governos mudaram, os ativistas têm mudar. 

Você participou aqui de um painel sobre a crise da mídia. No Brasil,  Bolsonaro tem atacado a imprensa da mesma forma que Trump, e aqui ele cancelou uma entrevista coletiva… 

Isso é tão Trump! 

Ele também diz que vai cortar verba publicitária para veículos de mídia, embora os veículos não dependam dessas verbas.

E ele cita veículos específicos?

Sim. 

OK, vou dizer isso com cuidado. É um momento delicado quando você vê dois líderes nas Américas e outros no resto do mundo... vou pedir para que os leitores pesquisem qual sistema político na história tinha essas características: a verdade ser constantemente minada; a mídia ser denominada; a política identitária ser usada para insuflar a base de apoiadores e criar uma atmosfera de nós x eles…

Preciso dizer mais? Há ainda o solapamento das instituições públicas, especialmente o Judiciário. Você sabe do que eu estou falando, é um sistema que existiu não faz nem cem anos.
 

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