Principais vítimas da violência, negros criam lobby pró-arma de fogo nos EUA

Estudo aponta que afro-americanos têm 14 vezes mais chance de morrerem baleados do que brancos

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Nova York

Nos Estados Unidos, três em cada quatro pessoas são brancas. Ainda assim, homens negros têm 14 vezes mais probabilidade de serem mortos por arma de fogo do que os brancos.

Em números absolutos, é uma média de 27 homicídios a mais por 100 mil habitantes entre os homens negros em relação aos brancos anualmente.

O resultado foi compilado em estudo publicado na Annals of Internal Medicine por Corinne Riddell, Sam Harper, Magdalena Cerdá e Jay Kaufman. Eles analisaram dados de 2008 a 2016 dos 50 estados americanos e do Distrito de Columbia.

Os responsáveis identificaram uma variação de 9 a 57 mortes por armas a mais a cada 100 mil habitantes para homens negros em relação aos brancos. A menor foi observada em Rhode Island, e a maior, em Missouri.

Manifestante protesta contra morte do jovem negro Stephon Clark pela polícia de Sacramento, na Califórnia - Justin Sullivan - 28.mar.18/Getty Images/AFP

Nada que surpreenda Philip Smith. Ele é o presidente da NAAGA (National African American Gun Association), associação de armas criada em 2015 com o objetivo de representar a comunidade afro-americana.

Lá, são oferecidos treinamentos para ajudar negros a usar armas para proteção, em defesa do que a associação descreve como “direito alienável à autodefesa para afro-americanos.”

“Historicamente, não temos voz na sociedade. Então tivemos de sair e desenvolver nossa própria organização e falar sobre nossos valores”, afirma.

Os membros também se reúnem para discutir temas que afetam a comunidade. Um dos mais recorrentes são as mortes de afro-americanos por policiais.

Nos EUA, grupos a favor do porte de armas dizem que a segunda emenda da Constituição dá ao indivíduo direito de manter e de portar uma arma de fogo.

No país, o lobby da bala, representado pela NRA (National Rifle Association, o lobby pró-armas americano), historicamente faz doações a congressistas –particularmente republicanos— para evitar regulações mais rígidas envolvendo a posse de armas.

O número estimado de armas (registradas e ilegais) entre os cidadãos varia de 265 milhões a quase 400 milhões –a população americana soma cerca de 328 milhões de habitantes.

Em 2016, houve 14.415 homicídios com uso de armas nos EUA, aumento de 31,7% em relação a dois anos antes.

Ao longo de 2018, alguns casos chamaram a atenção. Em setembro, Botham Jean, que trabalhava na consultoria PwC, estava em seu próprio apartamento quando a policial Amber Guyger abriu a porta, entrou no local e atirou duas vezes nele.

Guyger, branca, diz ter achado que estava entrando em sua casa e que pensou que o vizinho era um ladrão. Jean, negro, morreu. Ela foi demitida do departamento de Dallas e indiciada por homicídio.

Cartaz diz "não atire" durante protesto contra morte de negros pela polícia, em San Francisco, Califórnia - Josh Edelson - 8.jul.16/AFP

“É uma tendência que não acabou. Eles [os policiais] têm um estereótipo de que os negros agem de uma forma. Os policiais fazem o seu trabalho, mas há um nível de responsabilidade na profissão. Você não pode se esconder atrás de um distintivo. Ela pensou que estava no apartamento dela, matou alguém, tem de pagar por isso”, afirma Smith.

Em novembro, na noite de Ação de Graças, outro exemplo. Desta vez, em Alabama. Emantic "EJ" Fitzgerald Bradford Jr., 21, estava fazendo compras em um shopping quando tiros foram ouvidos. Ele tentou ajudar as pessoas que estavam no local, mas um policial à paisana o confundiu com o atirador. EJ, negro, foi baleado três vezes nas costas e morreu.

Ele portava uma arma, para a qual tinha licença. Era um caso raro. Historicamente, a taxa de posse de arma por negros é inferior à de brancos. Estudo do Pew Research Center publicado em 2017 mostra que 36% dos brancos tinham uma arma, contra 24% dos negros.

Isso acontece porque, para os negros, ter uma licença para arma é mais difícil do que para os brancos. Em sua maioria, eles vivem em cidades grandes, que costumam ter regras mais rígidas para porte de armas –nas zonas rurais, as leis são mais flexíveis.

Mas não é o único motivo, diz David Hemenway, diretor do centro de pesquisa para o controle de ferimentos de Harvard.

“Tem a ver com racismo implícito. Os negros são discriminados de muitas formas. Eles têm uma qualidade de educação ruim quando jovens, vivem em áreas não tão boas, têm menos oportunidade de emprego. São mais propensos a virarem vítimas de violência.”

No passado, os negros eram proibidos de portar armas, explica Clayton Cramer, professor adjunto de história do College of Western Idaho. Ele é autor de um artigo sobre o tema, “The racist roots of gun control” (As raízes racistas do controle de armas).

Em 1751, por exemplo, um código na Louisiana exigia que colonos impedissem negros, à força, se necessário, de portar qualquer objeto que pudesse ser usado como arma, como pedaços de pau.

Depois de o presidente Abraham Lincoln emancipar os negros, em 1863, e após a 13ª emenda abolir a escravidão, estados americanos continuaram proibindo ex-escravos de terem armas.

A alegação era de que eles não eram cidadãos, e, por isso, não tinham os mesmos direitos que os brancos de portar armas contidos na 2ª emenda da Constituição.

Em 1968, mesmo ano em que o pastor Martin Luther King Jr. foi assassinado, o presidente Lyndon Johnson assinou uma lei de controle de armas que tinha como intenção implícita desarmar o grupo político Panteras Negras e outras organizações ativistas negras semelhantes.

Os Panteras Negras costumavam ser fotografados na Califórnia, onde estavam baseados, carregando armas em locais públicos.

Luther King tentou, ele mesmo, conseguir uma arma, depois de um ataque a bomba contra sua casa, em 1956.

Ele pediu permissão ao estado de Alabama, mas a polícia negou a solicitação, mesmo com as ameaças contra a vida do ativista.

O grande número de mortes de negros por armas de fogo também tem gerado outro tipo de discussão no país. No ano passado, um ataque a tiros em uma escola de Parkland, Flórida, deixou 17 mortos, entre estudantes e funcionários, e vários feridos.

Em meio à comoção gerada, um grupo de estudantes negros protestou contra o que consideram pouca atenção às mortes de afro-americanos, mesmo após o alerta feito pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Contam).

“Há esse tipo de hipocrisia. Quando uma mulher negra morre, um filho negro morre, não temos essa reação do outro lado. Mas quando algo acontece em Parkland, ah meu Deus!”, critica Philip Smith, da NAAGA. “Onde está a raiva, onde está a preocupação? Eles não se importam. Nós sofremos com isso todos os dias.”

Para Cramer, há uma reação maior dependendo da raça da vítima da morte violenta por arma.

“Em Parkland, as vítimas foram estudantes brancos de classe média. Os negros morrem em Chicago, Nova York e Los Angeles. São como os outros, mas sem essa comoção.”

A solução para eliminar o problema está no diálogo, defende Smith. “Estamos falando de desigualdade nos EUA, de estereótipos. A gente é visto como uma cor de pele”, diz.

“A América tem que sentar e resolver o problema racial. Tem de ser justo para todos e respeitoso.”

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