Vítimas de casamentos forçados rompem silêncio no Camboja depois de 40 anos

Sobreviventes narram como foram obrigados pelo Khmer Vermelho a se unir com desconhecidos

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Claudia Jardim
Siem Reap (Camboja)

​​​Não houve festa, música, vestido especial ou rituais religiosos. Aos 22 anos, ​Lerm​ Yesm foi levada às pressas de seu local de trabalho para um galpão em um vilarejo no interior do Camboja e forçada a se casar com um desconhecido. 

“Não me disseram nada antes. Cheguei toda suja e me apresentaram a um homem dizendo que ele seria meu marido, que eu tinha que me casar ali, naquele momento”, relata a camponesa cambojana, agora com 62 anos. 

Lerm Yesm e Airm Ty, casal forçado a se casar durante o regime Khmer Vermelho
Lerm Yesm e Airm Ty, casal forçado a se casar durante o regime Khmer Vermelho - Claudia Jardim/Folhapress

Yesm é uma das sobreviventes da brutal ditadura do Khmer Vermelho que obrigou mais de 200 mil casais desconhecidos a se unirem para aumentar a natalidade do país. 

“Fiquei chocada, não parava de chorar. Não queria fazer nada sem ter o consentimento de meus pais, mas sabia que podia morrer se não respeitasse a ordem do Angkar [a cúpula do regime]”, conta. 

Após uma breve cerimônia da qual participaram 60 casais, Yesm e seu parceiro, Airm Ty, foram levados a um quarto e obrigados a manter relações sexuais. 

Guardas armados vigiavam e eram autorizados a punir quem se rebelasse. “Foi muito difícil. Os milicianos chegaram a disparar em alguns. Nós decidimos ficar juntos para sobreviver”, afirma Ty. 

Aqueles que rejeitavam a ordem do Angkar —mulheres, em sua maioria— eram estuprados e levados a “centros de reeducação”, como eram chamados os campos de concentração do regime, onde geralmente eram torturados e/ou executados.  

Depois de concretizado o matrimônio, os casais eram separados e levados para diferentes centros de trabalho.

Yesm, cuja função era cantar para animar as reuniões da cúpula do regime, foi levada para trabalhar na lavoura. 

Já seu marido, que sonhava em ser professor, foi convertido em cabeleireiro. O casal se reencontrava uma vez por mês e tinha a obrigação de passar uma noite juntos.

“Viajava de um lado a outro cortando cabelo e não ganhava nada por isso. A comunidade me dava um pouco de arroz, uma vez por dia. Sempre estávamos com fome”, relata.

Liderado pelo ditador Pol Pot, o Khmer Vermelho foi responsável pela morte de cerca de 2 milhões de pessoas de uma população de 7 milhões à época. Estima-se que mais de 1,3 milhão foi executado e o restante morreu de fome, esgotamento ou doença. 

As sequelas geradas pela violência sexual e o estigma em torno aos casamentos forçados ainda são uma barreira para os sobreviventes, em especial para as mulheres, que foram as principais vítimas de estupros e violência sexual.

Um estudo feito pela ONU (Organizações da Nações Unidas) em 2014 apontou que 70% das vítimas entrevistadas sofriam de algum distúrbio mental, incluindo estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e o chamado Bak Sbat (falta de coragem, na tradução literal). 

“Os sobreviventes sofrem em silêncio e a falta de apoio do Estado e da família dificultam a cura do trauma”, afirma a psicóloga Hoy Vathana, da Organização Transcultural e Psicosocial (TPO), que trabalha com as vítimas de violência sexual do regime. 

Entre os traumas, explica ela, está o fato de o Khmer Vermelho ter interferido na estrutura das famílias ao definir como e com quem os filhos se casariam, algo que antes era definido principalmente através da tradição budista. 

“Muitas famílias ainda seguem a cultura de casamento arranjado, e os parceiros de seus filhos são selecionados com base na história familiar e religiosa [budista]", afirma Vathana. “O matrimônio forçado é um rótulo negativo”, acrescenta.

Apesar dos estigmas, 3.867 vítimas decidiram romper o silêncio e denunciar as atrocidades a que foram submetidas durante as investigações da Câmara Extraordinárias do Tribunal do Camboja (ECCC), o chamado tribunal do Khmer Vermelho.

Criada em 2003, após um acordo entre o governo do Camboja e a ONU, a corte investiga os crimes cometidos pelos líderes do regime

O chefe da Sessão de Apoio às Vítimas do ECCC, Hang Vannak, afirma que a decisão das que sofreram com casamentos forçados de participar do tribunal é um passo importante para prevenir que as atrocidades não voltem a ocorrer. 

“Os sobreviventes estão ficando velhos e começaram a entender o impacto negativo de esconder essas histórias das novas gerações”, diz. “Muitos se sentem aliviados ao contar o que aconteceu”. 

Em novembro, os dois últimos líderes ainda vivos do regime, Nuon Chea, 92 e Khieu Samphan, 87, foram condenados a prisão perpétua por genocídio e por crimes contra a humanidade, entre os quais aparecem os casamentos forçados e estupros.

Quando o regime de Pol Pot foi derrotado pelos vietnamitas, em 1979, Lerm Yesm e seu marido Airm Ty comemoraram, mas preferiram continuar juntos a enfrentar outro estigma: o divórcio. 

“Não sabíamos o que viria com os vietnamitas, mas ao menos estávamos vivos”, diz Yesm. O casal se mudou para a casa dos familiares de Aim Ty e se dedicou à produção de arroz. Eles tiveram três filhos. “A gente decidiu gostar um do outro quando veio o primeiro”, conta Yesm. 

Sua filha mais nova, a única entre seus irmãos que escolheu o marido sem a interferência dos pais, mostra incômodo ao ouvir o relato.

Yesm, por sua vez, não esconde o trauma. “Medo e muita dor é o que significa Pol Pot para toda a nossa geração.”

Regime comandou o país por cinco anos 

A ditadura comunista do Khmer Vermelho chegou ao poder no Camboja em abril de 1975, após cinco anos de guerra civil e de bombardeios americanos no país, em meio ao conflito no vizinho no Vietnã.

Liderado por Pol Pot e inspirado no maoísmo da China, o regime buscava construir uma sociedade agrária, sem diferenças de classes.

Mas em meio a execuções, torturas, deslocamentos forçados e fome generalizada, quase um terço da população morreu.

A situação fez o vizinho Vietnã, também comunista, lançar uma ofensiva militar contra o Khmer Vermelho, que acabou sendo derrubado em definitivo em 7 de janeiro de 1979.

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