Alheios à crise, burgueses venezuelanos mantêm vida de luxo

Minoria rica sustenta alto padrão com dólares vindos do exterior

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Buddha Bar, estabelecimento luxuoso em Caracas - Divulgação
Caracas

"Enquanto vocês bebem e dançam, tem gente morrendo", diz a pichação diante de uma luxuosa discoteca do bairro de Las Mercedes, de classe média alta, em Caracas. Chegando perto, vê-se que os donos já tentaram apagá-la várias vezes, mas sempre vem alguém e picha os mesmos dizeres por cima.
 
"Não sei por que tentar apagar, vai tapar a realidade? Todo mundo sabe que estamos na merda. Mas também estamos no Caribe e, só porque a situação está horrível, vamos deixar de nos divertir? Ao contrário, a vida é curta", diz o frequentador Franco Solbart, 32, que não explicou como faz para pagar os US$ 40 que custam a entrada --na Venezuela, uma fortuna. 

O lugar é cercado de seguranças, e os clientes descem na porta, com roupa de festa.

A carta do bar Mercedes, no "rooftop" do Tolón Mall, não deixa a desejar se comparada à de qualquer bar de ponta em qualquer cidade do mundo. Vodcas e gins importados, tequilas, uísque e os melhores runs nacionais para preparar os "tragos" (drinques). De onde vem tudo isso? O barman desconversa, consulta um superior, que só diz: "de fora".

"O único senão é que acabamos fechando mais cedo. As pessoas antes ficavam de festa até às 5h, até raiar o sol. Hoje a maioria volta antes da meia-noite e só os mais festeiros, no fim de semana, ficam até 2h ou 3h", conta Solbart.

O que torna a citação que abre esta reportagem tão incômoda é que ela é verdadeira. A crise humanitária da Venezuela aumentou índices de mortalidade infantil, a carestia de alimentos e remédios, e muitos que antes eram de classe média precisam hoje revirar o lixo para comer --sem contar os mais de 4 milhões que já deixaram o país.

A hiperinflação consome o bolívar a ponto de ele praticamente não valer mais o custo do papel que o imprime.

Isso faz com que as imagens que a mídia internacional divulga, verdadeiras, sejam apenas as de miséria, pobreza, refugiados, tragédias.

Mas há uma Caracas que vive bem, ou que mantém, a duras penas e à custa de dólares guardados no exterior, a fama da Caracas próspera de décadas passadas, do "boom petrolífero".

Há uma minoria de habitantes que ou vive de rendas ou imóveis no exterior, ou está relacionada ao governo e aos lucros da estatal petrolífera PDVSA --os "boliburgueses", que viraram burgueses com a chamada Revolução Bolivariana--, ou uma mistura disso tudo.

"Eu não tenho amigos no governo, mas tive uma formação boa, meus pais tinham dinheiro, alugávamos casa em Miami nas férias. Os venezuelanos ricos do passado empobreceram, é verdade, mas não todos.

Há muitos que ainda têm contas ou propriedades fora. E isso é investimento, dá uma renda que, quando trazemos para Caracas, nos permite um bom padrão de vida", diz um dos sócios do Mercedes, que preferiu não dar o nome.

Dona Ursula (não quis dar o sobrenome), 74, vive numa grande casa na subida do El Ávila, um dos lugares nobres de Caracas. A porta é atendida por uma empregada. O jardim, impecável, é cuidado por um jardineiro. 

Ela, que trabalhou a vida toda como médica, aparece vestida como se fosse a um baile. "Não, vou ao chá das amigas", sorri.

E acrescenta. "Nós, caraquenhos, sempre tivemos um bom padrão de vida. O petróleo nos fez ricos em dinheiro, em cultura e em estilo. E depois que esses malandros saírem do poder, tudo isso voltará", diz, com otimismo.

Viúva, dona Ursula é a única de sua família a não ter deixado o país. "Alguém precisa cuidar da casa. E como vou sair daqui? Já viajei o mundo todo, mas Caracas é minha vida, essa montanha [o Ávila] acompanhou minhas histórias, meus amores", diz, rindo.

Pergunto como faz para manter os funcionários e a qualidade de vida. Ela diz que os filhos estão fora, um na Espanha, outro nos EUA, e trazem tudo para ela. 

"É claro que têm sempre de pagar propina para que deixem entrar, mas não me faltam batom, perfume, meu xampu preferido, o que sempre usei. A diferença é que antes encontrávamos tudo na perfumaria da esquina. Hoje não há nem maçãs no mercado do bairro." 

Ela pede que um de seus funcionários compre pela internet as coisas que quer, de acessórios de beleza a temperos, e mande entregar na casa do filho, em Miami. "Demora uns meses, mas quando ele vem, traz tudo."

O gerente do bar Mercedes acrescenta: "É comum que a opinião internacional seja a de que todos estão ou passando fome ou tentando sair. Mas pense se fosse no país de vocês. Iam largar tudo? É triste que tanta gente esteja na penúria, é claro que me comove a situação do país e faço caridade e trabalho social, mas não me culpo de manter o meu padrão de vida."

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