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EUA têm série de suicídios de veteranos de guerra em estacionamento de hospitais

Tratamento dado aos militares com problemas psicológicos é questionado no país

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O estacionamento de hospital em Minneapolis onde o veterano Justin Miller, 33, se suicidou
O estacionamento de hospital em Minneapolis onde o veterano Justin Miller, 33, se suicidou - Jenn Ackerman/The Washington Post
Emily Wax Thibodeaux
St. Paul (EUA) | The Washington Post

Alissa Harrington respirou fundo ao abrir a porta do armário no escritório em sua casa. É ali que ela guarda algo que é doloroso demais para deixar à plena vista.

São fotos emolduradas de seu irmão menor, Justin Miller, 33, trompetista dos Marines e veterano do Iraque. Óculos de segurança ensanguentados recuperados da caminhonete Nissan Frontier recoberta de neve em que seu corpo foi encontrado. Um telefone contendo as últimas mensagens de texto de seu pai: “Amamos você. Estamos com saudades. Volte para casa.”

Miller estava sofrendo de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e tendo ideias suicidas quando se internou no hospital do Departamento de Assuntos de Veteranos (VA) em Minneapolis, em fevereiro de 2018. Depois de passar quatro dias na unidade de saúde mental, ele foi até sua caminhonete no estacionamento do VA e se matou com um tiro no próprio lugar para onde tinha ido em busca de ajuda.

“O fato de que meu irmão, Justin, nunca chegou a sair do estacionamento do VA é enfurecedor”, disse Harrington, 37. “Ele fez a coisa certa: procurou ajuda. Não consigo entender.”

Alissa Harrington, irmã de Justin Miller, segura os óculos sujos de sangue do irmão
Alissa Harrington, irmã de Justin Miller, segura os óculos sujos de sangue do irmão - Jenn Ackerman/The Washington Post

Uma investigação federal sobre a morte de Miller concluiu que o VA em Minneapolis cometeu vários erros: não marcou uma consulta de retorno, não comunicou o plano de tratamento do veterano à sua família e não avaliou seu acesso a armas de fogo. Alguns dias após sua morte, os pais de Miller receberam um pacote do Departamento de Assuntos de Veteranos –vidrinhos de antidepressivos e soníferos receitados para seu filho.

A morte de Miller é um dos 19 suicídios ocorridos em instalações do VA entre outubro de 2017 e novembro de 2018, sete dos quais ocorreram em estacionamentos. Embora estudos indiquem que cada suicídio é algo altamente complexo –influenciado por fatores genéticos, por insegurança financeira, perda de relacionamentos e outros fatores--, especialistas em saúde mental temem que o fato de veteranos se suicidarem em locais do VA tenha virado uma forma desesperada de protesto contra um sistema que alguns sentem que não os ajudou.

O caso mais recente de suicídio em um estacionamento ocorreu algumas semanas antes do Natal, em St. Petersburg, Flórida. Trajado em seu uniforme e ostentando suas medalhas militares, o coronel dos Marines Jim Turner, 55, sentou-se em cima de seus documentos militares e do VA e se matou com um fuzil diante do Departamento de Assuntos Veteranos em Bay Pine.

“Aposto que se vocês investigarem os 22 suicídios por dia, verão que o VA cometeu falhas em 90% dos casos”, escreveu Turner em um bilhete encontrado por investigadores perto de seu corpo.

Citando o desejo de proteger a privacidade dos envolvidos, o VA se negou a comentar os casos individuais. Mas parentes dizem que Turner lhes havia dito que estava furioso porque não conseguira uma consulta de saúde mental que queria.

Levando em conta idade e gênero, os veteranos de guerra têm probabilidade 50% maior que civis de morrer de suicídio. O índice de suicídio de veteranos foi de 26,1 por 100 mil em 2016, enquanto o de adultos não veteranos foi 17,4 por 100 mil, segundo relatório federal recente. Um porta-voz do VA, Curt Cashour, disse que antes de 2017 o departamento não contabilizava separadamente os suicídios cometidos em suas instalações.

A administração de Donald Trump diz que a prevenção do suicídio é sua prioridade clínica número um para veteranos. Em janeiro de 2018 o presidente assinou uma ordem executiva permitindo que todos os veteranos –incluindo os que de outro modo não têm direito a atendimento pelo VA— recebam atendimento de saúde mental no primeiro ano após a conclusão de seu serviço militar, um período marcado pelo alto risco de suicídio, segundo o próprio departamento.

E o VA destaca que impediu 233 tentativas de suicídio entre outubro de 2017 e novembro de 2018, quando seus funcionários intervieram para impedir que veteranos se ferissem no terreno de hospitais.

Sessenta e dois por cento dos veteranos, ou 9 milhões de pessoas, dependem do vasto sistema de hospitais do VA, mas acessar o sistema envolve passar por uma burocracia frustrante. Às vezes os veteranos precisam comprovar que seus problemas de saúde estão ligados a seu serviço militar, e isso pode exigir muitos trâmites e apelações.

Para Eric Caine, diretor do Centro de Prevenção de Suicídios e Controle de Lesões da Universidade de Rochester, os veteranos que se suicidam em instalações do VA muitas vezes visam transmitir uma mensagem.

“Esses suicídios são eventos de aviso”, disse Caine. “É muito importante que o VA reconheça que o local em que se comete um suicídio pode ter grande significado. Temos aqui um convite e um imperativo moral real de examinar mais de perto a qualidade dos serviços prestados aos veteranos ao nível de cada hospital.”

Keita Franklin, que em abril passado se tornou a diretora executiva do VA para a prevenção de suicídios, disse que o departamento hoje treina patrulhas e funcionários dos estacionamentos para prevenir suicídios. O departamento lançou um programa piloto que estende seus esforços de prevenção de suicídios, que inclui sistema de monitoramento por pares, para locais de trabalho civis e governos estaduais.

“De um modelo que diz ‘vamos ficar parados em nossos hospitais e esperar que as pessoas venham a nós’, estamos mudando para um modelo que leva o atendimento às pessoas”, ela disse em um briefing ao Congresso em janeiro.

Para alguns veteranos, o problema não está apenas nas intervenções, mas também no atendimento e nas condições presentes em alguns programas de saúde mental do VA.

O ex-sargento do Exército e veterano do Afeganistão John Toombs, 32, enforcou-se na manhã antes do Dia de Ação de Graças de 2016 no Centro Médico Alvin C. York do VA, em Murfreesboro, Tennessee.

Ele tinha se inscrito em um programa de tratamento com internação para TEPT, abuso de substâncias, depressão e ansiedade, contou seu pai, David Toombs.

“John entrou prometendo que ali ele ia transformar sua vida, que ele ia se curar”, contou David Toombs. Mas o veterano foi expulso do programa por não seguir as instruções, incluindo atrasar-se para buscar seus medicamentos, segundo documentos médicos.

Algumas horas antes de se suicidar, Toombs escreveu em um post no Facebook feito no hospital do VA em Murfreesboro que estava se “sentindo vazio”. Ele acrescentou um emoji indicando sofrimento.

“Ousei voltar a sonhar. Mas vocês me puseram porta afora como se eu fosse o lixo de ontem”, ele escreveu. “Me puseram na rua, sem teto, na véspera do feriado.”


Trompetista colegial, Justin Miller foi recrutado para tocar na prestigiosa banda dos Marines em Cherry Point, Carolina do Norte. No Iraque, foi despachado para o checkpoint final na entrada da zona segura da base aérea de Al Asad.

Hora após hora, dia após dia, seu fuzil era apontado para a cabeça de cada motorista que passava pelo checkpoint. Ele observava cuidadosamente os cães farejadores de bombas, atento para sinais de que tinham encontrado alguma coisa perigosa.

Quando ele voltou para casa, nos EUA, sua família percebeu imediatamente que ele estava diferente: incrivelmente tenso, ficava agitado facilmente e reagia exageradamente a qualquer crítica. Miller acabou contando à sua irmã que estava com TEPT grave desde que recebera a ordem de matar um homem que estava se aproximando da base e que se acreditava que levasse uma bomba.

Em fevereiro do ano passado Miller ligou para o disque-emergência dos veteranos para dizer que estava tendo pensamentos suicidas, segundo a investigação do inspetor geral do VA. A pessoa com quem ele falou ao telefone o orientou a procurar alguém a quem entregar suas armas e dirigir-se ao departamento de emergências do VA. Miller passou quatro dias no hospital.

Foto enquadrada de homem tocando clarinete
Foto de Justin Miller, 33, veterano que se suicidou em um estacionamento de um hospital - Jenn Ackerman/The Washington Post

No documento de sua alta hospitalar, uma enfermeira anotou que Miller pedira para ter alta e escreveu que “o paciente não se enquadra nos critérios de perigo para justificar sua internação por 72 horas”. Ele foi qualificado como apresentando risco “intermediário/moderado” de suicídio.

Embora Miller tivesse dito à telefonista do disque-emergência que tinha acesso a armas de fogo, vários profissionais do hospital anotaram que ele não tinha armas ou que não era sabido se ele possuía armas. Segundo o relatório do inspetor geral, não há nenhum documento indicando que os profissionais tenham discutido com Miller ou seus familiares como guardar as armas em local fora de seu alcance. Esse fato deixa seu pai perplexo.

“Meu filho serviu bem a seu país”, disse Greg Miller em voz entrecortada. “Mas o país não o serviu bem. Ele tinha uma arma na caminhonete o tempo todo.”

Franklin, a diretora do programa de prevenção de suicídios do VA, descreveu o índice de suicídios como “mais que frustrante e dilacerante”. Disse que é essencial que “os hospitais locais formem um bom relacionamento com os veteranos, que os convidem a incluir suas famílias no processo de atendimento e na alta e que não deixem de descobrir se os veteranos têm acesso a armas de fogo”.

Ela disse que o VA estuda a possibilidade de criar um “sistema de amigos” no processo de alta hospitalar, colocando juntos duplas de veteranos para que cada um possa apoiar o outro em seu processo de recuperação.

Na semana do aniversário de Miller, em dezembro, sua família se posicionou ao lado do líder da banda em que ele tocara no colégio, doando o trompete de Miller a uma escola secundária local com alunos de baixa renda.

“Ele era um garoto sólido, uma pessoa de primeira”, disse Richard Hahn, líder da banda do colegial. “Ele fez a coisa honrosa e entrou para os Marines. E aí temos este final trágico.”

Hahn sentou-se ao lado da mãe de Miller, Drinda, que fechou os olhos, sofrendo. Hahn e Harrington recordaram momentos passados com Justin, tocando trompete no casamento de sua irmã e tocando no funeral de seu avô.

Após a investigação sobre o suicídio de Miller, os erros cometidos pelo VA foram alvos de uma audiência no Comitê da Câmara para Assuntos dos Veteranos, em setembro. Mas a audiência perdeu espaço na mídia para o depoimento de Brett Kavanaugh em sua audiência de confirmação para a Suprema Corte.

Ouvindo a discussão sobre seu filho, Drinda começou a chorar e saiu da sala. Ficou sentada no saguão, tremendo e chorando. Sua filha se ajoelhou e segurou sua mão.


Um estudo da Rand Corporation publicado em abril mostrou que, embora o atendimento de saúde mental prestado pelo VA geralmente seja tão bom quanto ou melhor que o dos planos de saúde particulares, há variações grandes de hospital para hospital.

“Alguns hospitais do VA estão desatualizados. São deprimentes”, comentou Craig Bryan, ex-psicólogo da Força Aérea e atual professor da Universidade do Utah que estuda suicídios de veteranos. Ele aludiu a problemas de escassez de profissionais e recursos. “Outros são novos e excelentes. Quando você entra em um desses, é fantástico, é algo que inspira esperança.”

O hospital do VA em Murfreesboro, onde Toombs se suicidou, foi qualificado como um dos piores do país em matéria de saúde mental, segundo a classificação interna do departamento em 2016. Desde então, o hospital melhorou um pouco e hoje recebe duas estrelas de um total possível de cinco.

Rosalinde Burch, enfermeira que trabalhou com Toombs no programa do VA, disse que, “embora dê apoio aos pacientes de algumas maneiras, o programa impõe regras rígidas quanto a buscar os medicamentos no horário previsto e quanto ao comparecimento às sessões de terapia de grupo”. Burch acha que foi transferida e posteriormente demitida do programa por ter dito abertamente que “a morte dele [Toombs] teria sido totalmente evitável”.

Ela contou que, no dia que foi expulso do programa, Toombs se atrasou 20 minutos para buscar seus medicamentos. Ele já tinha se atrasado várias outras vezes e em algumas ocasiões saíra das sessões de grupo antes do final, porque sofria de ansiedade.

“Mas esses não deveriam ter sido motivos para expulsá-lo do programa”, disse a enfermeira. “Ele estava fazendo progresso real.”

Os exames de Toombs mostravam que ele havia deixado de usar drogas, e ele estava começando a aconselhar outros veteranos, disse Burch. Ela escreveu um email ao diretor do programa no hospital, dizendo “nós todos temos o sangue deste veterano nas mãos”.

Desde a morte de Toombs, o programa ganhou uma nova equipe de líderes, segundo uma porta-voz do hospital. Burch registrou queixa junto ao Escritório da Promotoria Especial, uma agência federal independente que investiga queixas de denunciantes, pedindo para ter seu emprego de volta.

Para a família de Miller, a morte de seu filho os motivou a falar publicamente sobre como o VA poderia melhor.

“O VA não causou o suicídio dele”, disse Harrington. “Mas poderia ter feito mais para impedir que ele se matasse. Isso é revoltante.”

Ela e seus pais se posicionaram em volta do túmulo de Miller no cemitério coberto de neve da Igreja Católica St. Joseph of the Lakes, um subúrbio tranquilo de Minneapolis.

Tomaram goles de uma garrafinha pequena de Grand Marnier, bebida da qual Miller gostava. A mãe de Miller sacudiu a cabeça em desespero, recordando o som da música de seu filho.

“Justin tocava trompete em todos os enterros”, comentou seu pai. “Mas não estava aqui para tocar no seu próprio funeral.”

Alissa Harrington visita o túmulo de seu irmão, o veterano Justin Miller
Alissa Harrington visita o túmulo de seu irmão, o veterano Justin Miller - Jenn Ackerman/The Washington Post

Tradução de Clara Allain

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