É tentador atribuir a algum vodu, de grande penetração no Haiti, a impressionante sequência de desgraças e turbulências que assolam historicamente o país, como está acontecendo agora.
Mas algumas das desgraças são culpa da natureza: localizado em uma linha de falha geológica, o Haiti sofre mais desastres naturais do que a maioria das nações caribenhas.
Ainda assim, a nociva ação humana espetou mais alfinetes no corpo do país do que seria capaz o mais terrível feiticeiro: a crônica instabilidade política em seus 200 anos de independência foi o fator que mais contribuiu --ao lado dos desastres naturais-- para transformar o que uma vez foi a mais rica colônia nas Américas no mais pobre país do hemisfério ocidental.
Tão pobre que depende crucialmente de ajuda externa, que hoje representa mais de 20% do orçamento. Remessas da enorme diáspora haitiana correspondem a mais de um quarto do Produto Interno Bruto.
O paradoxal é que, no processo de tentar ajudar, a comunidade internacional "cria problemas", como diz Caroline Bettinger-López, diretora da Clínica de Direitos Humanos da Escola de Direito da Universidade de Miami.
Caroline cita especificamente o Brasil, que foi o maior contribuinte para a Minustah, a missão da ONU criada em 2004 para tentar estabilizar o país depois de turbulência similar à atual: "Muitos argumentam que a presença da Minustah no Haiti teve um legado devastador, envolvendo atos de violência contra mulheres, estudantes e outros, e a introdução do cólera no país".
Mesmo se a assistência internacional fosse eficaz no envio de ajuda --o que não é exatamente o caso--, ainda assim não bastaria para endireitar o país.
A corrupção desvia para aproveitadores e para a elite política e econômica parte importante dos recursos que chegam de fora. É eloquente, a respeito, que o Haiti figure habitualmente entre os 15 países considerados mais corruptos do mundo.
Situação que ajuda a estimular os protestos que eclodiram a partir do dia 7 deste mês: manifesto divulgado no fim de semana por meia dúzia de entidades de direitos humanos aponta os motivos pelos quais estourou a nova revolta.
Além de fatores conjunturais (o aumento sistemático dos preços de primeira necessidade e a desvalorização acentuada da moeda local), cita elementos estruturais, a saber: "a pobreza abjeta, o desperdício dos parcos recursos nacionais e a má gestão do dinheiro público".
A pobreza de fato é obscena: quase 60% da população vivem abaixo da linha de pobreza (US$ 2,41 ao dia ou R$ 8,91) e mais de 24% caem na pobreza extrema (US$ 1,23 ao dia ou R$ 4,55), informa o Banco Mundial.
Tudo somado, entende-se que os manifestantes cobrem a saída do presidente Jovenel Moise, há dois anos no poder.
Não só não cumpriu as promessas de recuperar o Haiti como está sendo investigado por possível envolvimento no desvio de fundos da Petrocaribe, a aliança da Venezuela chavista com países caribenhos para o fornecimento de combustível subsidiado.
É o mais recente exemplo de como a corrupção é o verdadeiro vodu que desgraça o Haiti.
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