Turco ameaçado de extradição é solto: 'Confio na Justiça brasileira', diz

Acusado pelo governo Erdogan de ser terrorista, comerciante diz sofrer perseguição política

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São Paulo

Solto nesta quarta-feira (8) após 33 dias na prisão, o turco naturalizado brasileiro Ali Sipahi, 31, afirmou que quer seguir sua vida normalmente. “Eu sou uma pessoa normal, não mexo com nada de política. Sou um empresário que tem restaurantes, quero seguir a vida”, disse. "Confio na Justiça brasileira", acrescentou.

Detido preventivamente devido a um pedido de extradição contra ele protocolado pelo governo turco, Sipahi poderá agora aguardar o julgamento em liberdade, após uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin da noite de terça-feira (7).

Ele teve que entregar o passaporte, colocar tornozeleira eletrônica e não poderá se ausentar de São Paulo até o julgamento —ainda sem data prevista.

Ali Sipahi ao deixar o prédio da Justiça Federal em São Paulo após mais de 30 dias preso na Polícia Federal
Ali Sipahi ao deixar o prédio da Justiça Federal em São Paulo após mais de 30 dias preso na Polícia Federal - Danilo Verpa/Folhapress

Sipahi foi orientado por seus advogados a não dar entrevistas enquanto não houver decisão final sobre seu caso, mas deu uma breve declaração a jornalistas ao deixar o prédio da Justiça Federal em São Paulo, por volta das 12h30. “Foi uma decisão boa para mim, para pelo menos aliviar um pouquinho, ver minha família. Vamos ver o que vai acontecer. Continuo confiando na Justiça brasileira." 

O governo turco o acusa de ser membro do Hizmet —organização do clérigo muçulmano Fethullah Gülen, desafeto do presidente Recep Tayyip Erdogan e considerado terrorista por seu governo.

Como evidências contra Sipahi, a procuradoria de Ancara cita suas atividades no Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT) e na Câmara de Comércio e Indústria Turco-Brasileira (CCITB). Ambas são, de fato, ligadas ao Hizmet, que se apresenta como um movimento pacífico, focado em educação, tolerância religiosa e projetos assistenciais e atua em mais de 160 países.

Não há registros de atos terroristas praticados pela organização, mas o presidente turco responsabiliza Gülen por uma tentativa de golpe contra ele ocorrida em 2016 e que deixou mais de 200 mortos. O clérigo negou estar por trás do levante, disse que condena o episódio e declarou que sua filosofia é oposta a qualquer luta armada.

Pedidos de extradição de Güllen por parte do governo turco têm sido negados pelos EUA, com a justificativa de que não há provas contra ele. Países como a Inglaterra também têm negado solicitações de extradição contra cidadãos turcos ligados ao Hizmet.

Segundo a defesa de Sipahi, seu caso é o primeiro do tipo no Brasil. ​Ao ser libertado, ele era aguardado por quatro amigos, também nascidos na Turquia, e iria encontrar a mulher e o filho de quatro anos em outro local. “Queríamos que ele saísse e nos visse para saber que tem nosso apoio, que estamos torcendo por ele”, disse seu sócio no restaurante, Ilyas Kar, 29.

Kar relatou que teve dificuldade para administrar o negócio sem Ali e seu outro sócio, que está fora do Brasil, temeroso de que um processo de extradição semelhante o leve à prisão. “O ramo de comida é complicado. Em três sócios a gente mal dava conta. Mas a equipe ajudou bastante, amigos brasileiros também. Ficamos firmes, deu tudo certo e estamos felizes com a liberdade dele.”

Segundo outro conterrâneo que aguardava a libertação e pediu para não ser identificado, a detenção de Sipahi foi inesperada para a comunidade. “Não esperávamos que isso fosse acontecer no Brasil. Nos sentíamos muito seguros aqui”, afirmou ele, que descreve o comerciante como uma pessoa extrovertida, trabalhadora e com bom coração. “A gente brincava: você é o mais brasileiro entre nós.”

Os amigos trocaram cartas com Sipahi enquanto ele estava na prisão. Um deles leu para a reportagem uma dessas cartas, em que ele relatava sentir falta da família e de “ver luz, ver o céu”. “Estou entendendo melhor a situação dos amigos que estão presos na Turquia. Sempre falávamos disso, mas agora eu estou sentindo na pele”, escreveu.

Advogado de Sipahi, Theo Dias considerou a decisão “um avanço”. “É um passo à frente, uma decisão que deve ser celebrada. Mas Ali ainda é um cidadão inocente que está com sua liberdade restringida. Nossa expectativa é seguir trabalhando para que este caso tenha um desfecho breve e bem-sucedido o quanto antes.”

Ele reiterou que o pedido do governo turco é “de natureza política” e que “não há nenhuma acusação coerente e fundamentada” contra seu cliente. “Tem um mês que a vida dele foi virada do avesso por uma perseguição política de uma ditadura”, afirmou.

Desde 2016, Erdogan empreende um expurgo contra simpatizantes do Hizmet, que inclui, segundo a ONU e ONGs internacionais, a demissão ou prisão de centenas de milhares de juízes, professores e outros funcionários públicos, sob acusações de terrorismo. 

Outro lado

Em contatos anteriores com a reportagem, a Embaixada da Turquia no Brasil afirmou que não comenta o caso de Sipahi por ser um processo em andamento, mas enviou uma nota reafirmando que as evidências reunidas até agora apontam Güllen como mentor da tentativa de golpe de 2016. 

"O chamado movimento 'Hizmet' é, na verdade, um nome utilizado para disfarçar as atividades da organização criminosa e terrorista FETÖ. A FETÖ, cujo líder é Fetullah Gülen, é uma organização clandestina sem precedentes em termos de alcance global, ambições e métodos. A FETÖ é uma séria ameaça para a Turquia, assim como para outros países", diz o texto.

Segundo o comunicado, o Hizmet “se disfarçou como um movimento de educação” para se infiltrar no governo e “gradualmente se transformou em uma estrutura operacional sigilosa com o objetivo de transformar a sociedade, assumindo o controle do Estado turco”.

“Fetullah Gülen é o líder de uma organização secreta, altamente hierárquica e antidemocrática (o chamado movimento Hizmet) que tentou o mais violento ataque terrorista da história turca na noite de 15 de julho de 2016”, diz o texto.

A nota afirma que a Justiça turca condenou vários membros da organização por crimes como lavagem de dinheiro, escutas telefônicas ilegais, fabricação de provas, intimidação e chantagem e "milhares de investigações e processos relativos às atividades ilegais de membros da FETÖ ainda estão pendentes".​


O EXPURGO DE ERDOGAN

150 mil
funcionários públicos demitidos

96 mil
pessoas presas

319
jornalistas detidos

190
veículos de mídia fechados

Fontes: ACNUR, Anistia Internacional, Pen International, Stokholm Center for Freedom, Turkey Purge

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