A vitória arrasadora dos conservadores no Reino Unido revelou um avanço do partido de Boris Johnson sobre as classes com menor qualificação profissional e tradicionalmente simpáticas ao Partido Trabalhista, as pessoas mais velhas e os moradores de cidades menores e decadentes da Inglaterra.
Foi ainda a confirmação de um sentimento de exclusão vivido por cidadãos de muitos países, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, e identificado por especialistas com o aumento da desigualdade de renda e causa de uma onda conservadora que inclui o nacionalismo, o protecionismo e políticas anti-imigração.
A conquista do Parlamento pelos tories também se deu na esteira do baixo crescimento nos últimos trimestres e da ansiedade econômica criada pelo brexit, que vêm acentuando crises pessoais de milhões de britânicos das classes médias trabalhadoras.
Desde o referendo pela saída da União Europeia, em 2016, dezenas de companhias fecharam fábricas, como a Honda e a Ford, ou simplesmente tiraram operações ou bilhões de ativos do Reino Unido, como a Panasonic e o banco Barclays.
Embora a economia britânica tenha escapado de entrar em recessão no trimestre encerrado em setembro, o crescimento anualizado de 1% foi o menor desde 2010, quando a crise financeira global de uma década atrás chegou com força à Europa.
O resultado da eleição desta semana reforça o que David Soskice, do International Inequalities Institute, que estuda a desigualdade de renda no Reino Unido, identifica como uma espécie de revolta das classes mais populares.
Segundo Soskice, enquanto moradores de grandes centros têm se saído melhor no Reino Unido e nos demais países avançados por serem mais educados e globalizados, o que lhes confere cada vez mais ganhos, os do interior vêm perdendo renda e status de forma contínua.
Nesta semana, enquanto localidades menores votaram em peso nos conservadores, distritos de cidades grandes permaneceram com os trabalhistas, como em Londres, Manchester e Birmingham.
Embora não seja exatamente nova, essa divisão entre pessoas globalizadas e a classe trabalhadora tradicional acentuou-se nos últimos anos com o aprofundamento de novas tecnologias em benefício dos “cidadãos do mundo” e a migração da produção industrial para a Ásia, que eliminou vagas para operários no Ocidente.
O resultado tem sido um aprofundamento das disparidades de renda também nos países europeus, até há poucos anos considerados menos desiguais devido a políticas de bem-estar social adotadas no pós Segunda Guerra.
Seguindo a mesma tendência da Europa continental, o Reino Unido registrou nas últimas quatro décadas forte aumento da parcela da renda apropriada pelos 1% e 10% mais ricos e a diminuição da fatia recebida pelos 50% mais pobres e pela classe média —aqueles situados, em termos de rendimentos, entre a metade mais pobre e os 10% mais ricos.
Segundo a Joseph Rowntree Foundation, mais de 4 milhões de trabalhadores britânicos (1 em cada 8) vivem hoje com uma renda mensal inferior a 1.100 libras (R$ 6.000), o que os classifica como pobres, de acordo com um dos critérios da União Europeia.
O empobrecimento coincidiu com cortes de mais de 30 bilhões de libras (R$ 164 bilhões) em benefícios sociais no Reino Unido desde 2010, sobretudo para pagar a conta do ajuste pós crise de 2009/2010.
Apesar das esperanças renovadas dos britânicos com a eleição e o caminho desimpedido para o brexit, nenhum dos dois acontecimentos parece ter a capacidade de interromper o movimento de aprofundamento da desigualdade, que se tornou praticamente estrutural em quase todo o mundo.
No caso britânico, a depender do desfecho do brexit, as chances de piora nesse cenário não são desprezíveis.
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