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Ser mulher no México é viver com medo e conviver com a impunidade

No país, foram mais de 250 mil homicídios nos últimos 13 anos

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Cecilia Farfán Mendez
Latino América 21

As mulheres mexicanas convocaram uma greve nacional para o dia 9 de março. Diante da violência nos âmbitos públicos e privados, o apelo é que as mulheres não vão ao trabalho, à escola ou à universidade, e tampouco realizem atividades em espaços públicos. Esse protesto cidadão legítimo busca colocar em evidência a falta de uma resposta contundente por parte do Estado.

É fato que a violência contra as mulheres não começa e nem termina no feminicídio. As violências incluem uma longa cadeia de acontecimentos caracterizados pela falta de espaços institucionais que permitam às vítimas o acesso à justiça, da apresentação de uma denúncia ao castigo para os perpetradores.

Isso se traduz em um cotidiano no qual vivemos com medo e os criminosos, quer sejam nossos familiares, cônjuges ou desconhecidos, podem nos agredir sem qualquer consequência. Ou seja, convivemos com a impunidade.

Mas a solução não está em legislar sentenças de prisão mais longas e nem em criar novos tigres de papel. As soluções começam pela realização de um diagnóstico certeiro do problema, assim como pela avaliação das ações realizadas pelo Estado. Saber que medidas funcionaram e que medidas deram os resultados esperados. No México, não contamos com essas informações.

Mulheres protestam em estrada em Amatenango del Valle, no México - Isabel Mateos/Reuters

Diversas organizações da sociedade civil documentaram durante anos a subestimativa de delitos de alto impacto, como o homicídio. As provas apontam para dois grandes problemas: a falta de capacidade ou negligência em registrar devidamente as ocorrências, por exemplo homicídios dolosos ou culposos, e também ações deliberadas para ocultar e maquiar os números dos crimes.

O problema é ainda mais grave quando falamos de feminicídios. De acordo com o relatório mais recente do Observatorio Ciudadano Nacional del Feminicidio, a maioria dos estados mexicanos descumpre a obrigação de manter bancos de dados que permitam conhecer os números oficiais de assassinatos de mulheres e de feminicídios. Assim, os dados incompletos de que dispomos em nível nacional não oferecem um panorama sobre as dimensões reais dos assassinatos de mulheres e feminicídios.

A falta de dados precisos também afeta o conhecimento de outras formas de violência não letal. De acordo com a Encuesta Nacional de Victimización y Percepción sobre Seguridad Pública, realizada pelo Instituto Nacional de Estadística y Geografía (Inegi) do México, em 2018 apenas 10,6% dos delitos foram denunciados.

Ou seja, em 93,2% dos delitos cometidos, não existe denúncia ou não foi iniciada uma investigação ou aberto um inquérito formal. Em alguns estados, como Guerrero, essa proporção atinge os 98%. De acordo com a pesquisa, um terço das vítimas não denuncia porque considera que isso seja uma perda de tempo, e cerca de 20% delas desconfiam das autoridades.

Mesmo nos casos que vão a julgamento e nos quais sentenças são proferidas, não sabemos como os juízes realizam –ou não– seus trabalhos, já que, na maioria dos casos, as sentenças não são públicas e em consequência não é possível monitorá-las.

A organização EQUIS Justicia para las Mujeres iluminou esse ponto, e a urgência de saber como opera o poder judiciário. De acordo com o relatório “(In)Justicia Abierta”, mesmo em casos em que há sentenças continua a haver violações no direito de acesso à justiça, o que reforça a ideia de um Estado insensível às vítimas.

Por exemplo, há o caso de Ana María “N”, documentado pelo Observatorio Nacional Ciudadano. Ela foi apunhalada 13 vezes por seu ex-marido, a quem havia denunciado por violência familiar, durante uma audiência em um tribunal do estado de Tabasco.

Há também o caso de Brenda, submetida a prisão preventiva no estado de Zacatecas: ela foi encaminhada a uma prisão masculina, onde foi estuprada, espancada e torturada durante três semanas, antes de sua transferência a uma prisão de mulheres.

O problema da impunidade, portanto, não é só que os perpetradores de violências, letais ou não letais, escapem à justiça, mas que as vítimas não os denunciem por desconfiarem das autoridades, que as autoridades não cumpram suas obrigações de geração e sistematização de dados, e que violem o direito de acesso à justiça em processos que não reparam o dano e sim produzem mais violência, como o encarceramento de Brenda.

Em um país no qual aconteceram mais de 250 mil homicídios nos últimos 13 anos, onde se tornou normal encontrar covas clandestinas, a impunidade não é uma trivialidade e muito menos um problema exclusivo das mulheres.

A greve de 9 de março deve exigir que reflitamos como chegamos a esse ponto. O atual governo tem razão ao dizer que sem justiça não existe paz, mas não chegaremos à justiça enquanto vivermos no país da impunidade.

Cecilia Farfán Mendez é pós-doutoranda no Centro de Estudios México-Estados Unidos, na Universidade da Califórnia em San Diego. Doutora em ciência política pela Universidade da Califórnia em Santa Barbara. Especializada em narcotráfico e violência organizada não estatal, e diversificação de atividades criminosas na América Latina.

www.latinoamerca21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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