Estrategista e estável, novo premiê do Japão segue trilha de Shinzo Abe

Eleito com promessas de continuidade, Yoshihide Suga só deve seguir no poder se conseguir manter apoio dentro de seu partido

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Penápolis (SP)

O ponto fraco do novo primeiro-ministro do Japão, Yoshihide Suga, nada tem a ver com as decisões políticas à frente do país com a terceira maior economia do mundo: são as hotcakes, uma espécie de panqueca de massa fofinha geralmente acompanhada por uma calda bem doce.

“Eu não bebo álcool. Em vez disso, tenho uma queda por doces”, disse Suga, 71, ao jornal Nikkei Asian Review, em 2019, durante uma das raras entrevistas em que abordou sua vida pessoal. “Eu como doces uns três ou quatro dias por semana. Às vezes acabo de comer e digo: ‘droga, fiz de novo!’”

Yoshihide Suga faz reverência após ser eleito novo primeiro-ministro do Japão
Yoshihide Suga faz reverência após ser eleito novo primeiro-ministro do Japão - Du Xiaoyi - 16.set.20/Xinhua

O paladar talvez seja o único aspecto em que Suga demonstra ser condescendente consigo mesmo. Nas outras áreas e, especialmente no período em que serviu como secretário-chefe do gabinete e porta-voz do governo do agora ex-premiê Shinzo Abe, a seriedade e o pragmatismo tornaram-se as marcas públicas de sua atuação.

Suga diz ser bom em "estabelecer metas e adquirir hábitos". A qualidade, útil para sua função de coordenador e articulador de políticas entre os ministérios de Abe, rendeu-lhe a reputação de um bom estrategista. E também o ajudou a perder peso.

Quando um médico disse que os seus 77 kg poderiam prejudicar sua saúde, ele adotou uma rotina de exercícios com a qual começa e termina cada um de seus dias. De manhã, depois de ler as principais notícias dos jornais, faz cem abdominais e uma caminhada de 40 minutos. Antes de dormir, mais cem abdominais.

A dedicação, que levou Suga a perder 14 kg em quatro meses, é, segundo ele, uma herança da infância vivida em Ogachi, área rural localizada na província de Akita, no norte do Japão.

Durante o inverno, a família o mantinha em uma pensão perto do colégio para que ele não corresse risco de perder as aulas. Para Suga, a experiência de esperar a primavera após o rigoroso período de nevascas o ensinou a ter paciência.

Filho de uma professora e de um agricultor que cultivava morangos, o novo primeiro-ministro é considerado um "outsider" quando se fala em famílias tradicionais na política japonesa, diz Paulo Watanabe, doutor em relações internacionais pela Unesp e professor da Universidade São Judas Tadeu.

"É uma tradição muito forte na cultura japonesa, desde a época do Xogunato, que as famílias influentes indiquem seus herdeiros para cargos políticos ou militares como algo natural", diz. O costume, segundo o especialista, continuou durante o Império Japonês e, desde a Segunda Guerra Mundial, o cenário político no país é "majoritariamente elitizado e controlado por grandes nomes tradicionais".

"Atualmente, por conta dos efeitos da democracia, a situação se altera, e é onde Suga se insere", explica Watanabe.

Abe, por sua vez, era um símbolo da tradição. Seu avô, Nobosuke Kishi, foi premiê de 1957 a 1960, e seu tio-avô, Eisaku Sato, governou o país de 1964 a 1972. Sua renúncia, no final de agosto, para tratar de uma doença intestinal crônica, deu-se quatro dias depois que ele bateu o recorde de mais longo mandato ininterrupto de um primeiro-ministro no Japão.

Suga preencheu a primeira lacuna deixada por Abe —a liderança do Partido Liberal Democrático (PLD). Na votação, derrotou o ex-ministro da Defesa Shigeru Ishiba e o ex-chanceler Fumio Kishida e conquistou 377 dos 534 votos possíveis.

"Sem nenhum conhecimento ou laços de sangue, lancei-me no mundo da política, começando do zero, e consegui me tornar líder do PLD", disse Suga, após o anúncio dos resultados.

Dois dias depois, foi eleito pelo Parlamento japonês, com folga e sem surpresas, para ocupar o cargo de primeiro-ministro. Como o PLD ocupa a maioria das cadeiras do Legislativo, a nomeação de Suga como novo premiê já era esperada. Ele deve permanecer no posto por pelo menos um ano, até o fim previsto do mandato de Abe, em setembro de 2021.

“Uma pessoa normal como eu pode tentar se tornar um primeiro-ministro. Isso é exatamente a democracia do Japão, não é?”, disse Suga, ao anunciar a candidatura ao cargo, para o qual ele era considerado o favorito.

É bastante comum que o chefe de gabinete de um premiê seja seu sucessor, e Suga também tem seu próprio recorde como membro do governo. Do dia em que foi escolhido por Abe como secretário-chefe até sua eleição como primeiro-ministro, foram 2.823 dias ocupando o segundo cargo político mais conhecido pelo público japonês —bem mais que o dobro dos 1.289 dias de Yasuo Fukuda, o segundo colocado no ranking.

A longevidade política parece ser um dos elementos em comum entre Suga e seu antecessor. De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, o longo mandato de Abe se contrapôs à sensação de instabilidade provocada pelos curtos mandatos dos premiês que o precederam.

Suga preza pela mesma estabilidade, e a indicação dos nomes que ocuparão os ministérios em seu governo dão sinais de lealdade às escolhas políticas de seu ex-líder. O novo gabinete foi formado por rostos já conhecidos do PLD e o posto estratégico de ministro da Defesa foi ocupado por Nobuo Kishi, irmão mais novo de Abe.

"Durante essa crise nacional, um vácuo político deve ser evitado a todo custo", disse Suga em sua primeira entrevista coletiva como primeiro-ministro. "Para que todas as pessoas restaurem a paz em suas vidas, vou continuar e levar adiante as políticas do governo Abe. Reconheço que é uma missão que me foi dada."

A crise a que Suga se refere é, em grande parte, resultado da pandemia de coronavírus, que colocou o Japão em recessão econômica. Mais de 1.500 mortes e 78 mil casos foram confirmados até a última sexta-feira (18), de acordo com a Universidade Johns Hopkins.

O novo premiê parece estar confortável com a resposta japonesa à Covid-19, já que nomeou o ex-ministro da Saúde Katsunobu Kato como chefe de gabinete, o mesmo cargo que ele próprio ocupava e que, na prática, representa o braço direito do primeiro-ministro.

Suga pode, entretanto, enfrentar uma crise de liderança dentro do próprio partido. Embora tradicionalíssimo e hegemônico no Japão, o PLD tem várias facções internas que, muitas vezes, agem em oposição a seu líder. Para continuar no poder, Suga precisará criar formas de manter apoio político.

Para o professor Watanabe, o grande desafio da liderança de Suga é "conquistar a política japonesa e internacional como Abe fazia".

"Abe era um político nato, pensava a política e sabia transmiti-la e executá-la. Suga tem experiência em fazer a política, mas nunca a executou", avalia o especialista.

Segundo o professor, o século 21 trouxe uma nova forma de fazer política ao Japão, substituindo a política do karaokê pela política do kabuki, modalidade de teatro com mais de 300 anos de tradição, marcada pela maquiagem pesada dos atores e pela estilização do drama.

"Quando se relaciona ao cargo de primeiro-ministro, [o kabuki] destaca a emoção, os sentimentos e o relacionamento com o público. Abe fazia muito bem a política kabuki, incluindo a sua política externa. Na antiga política karaokê, o primeiro-ministro apenas 'cantava' a música pré-estabelecida, sem fugir do padrão esperado."

Nos termos da metáfora, se quiser entrar na história do Japão como algo além de um líder interino, Suga precisará mostrar mais de sua política kabuki.


Isto é o Japão

É uma monarquia constitucional parlamentar, com chefe de governo (primeiro-ministro) e de Estado —ocupado pelo imperador Naruhito, que assumiu em maio de 2019 e possui função cerimonial. A Constituição atual do Japão é de 1947 e foi elaborada após a rendição do país na Segunda Guerra Mundial.

O envelhecimento da população preocupa: 28% dos japoneses têm mais de 65 anos, a expectativa de vida é alta (84 anos) e a taxa de natalidade, baixa, de 1,42 filho por mulher.

Há cerca de 200 mil brasileiros vivendo legalmente no Japão, segundo dados de 2018.

ECONOMIA

O setor de serviços responde pela maior fatia do PIB (69,3%), seguido por indústria (29,1%) e agricultura (1,2%). Mais de 72% da população trabalha no setor de serviços, enquanto 25% está na indústria e uma pequena parcela na agricultura.

A economia japonesa teve um rápido crescimento após a Segunda Guerra, com valorização do PIB em torno de 10% ao ano entre as décadas de 1950 e 1970. A produção industrial é diversificada e de alta tecnologia, e o país é reconhecido no setor automobilístico e robótico.

O fornecimento de energia do Japão depende largamente de importações. Cerca de 80% vem de fontes de estrangeiras —é o maior importador de carvão e GNL (gás natural liquefeito) do mundo.

É destino turístico popular, tendo recebido 31,9 milhões de estrangeiros em 2019. Em 2020, porém, a chegada de turistas será fortemente afetada pela pandemia de Covid-19.

GRUPOS RELIGIOSOS*

Xintoístas 70,4%
Budistas 69,8%**
Cristãos 1,5%
Outros 6,9%

*Em 2015
**Total ultrapassa 100% porque parte da população pratica o xintoísmo e o budismo simultaneamente

BOMBAS ATÔMICAS

Foi alvo das duas únicas bombas atômicas usadas em guerras, em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945

PERSONALIDADES

Akira Kurosawa (1910-1998)
Um dos principais cineastas do mundo, despontou internacionalmente no início dos anos 1950, com o premiado “Rashômon”, e ganhou um Oscar honorário em 1990

Hayao Miyazaki (1941- )
Cofundador do estúdio Ghibli, de animação e cinema, é conhecido por “A Viagem de Chihiro”, de 2001, vencedor do Oscar de animação em 2003

Kazuo Ishiguro (1954- )
Vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2017, é autor de oito livros, entre eles “Os Vestígios do Dia”

Keisuke Honda (1986- )
Atualmente defendendo o Botafogo, o jogador de futebol já atuou pelo Milan e por times do Japão, Rússia, Holanda, México e Austrália

Naomi Osaka (1997- )
Tenista que ocupa o terceiro lugar no ranking da categoria, venceu o US Open em 2018 e 2020

ESPORTES

As modalidades mais populares são beisebol e futebol.
Também tem tradição nas artes marciais, como judô, caratê e o sumô, que surgiu por volta do século 8.
É a sede dos Jogos Olímpicos de 2020, adiados para 2021.

Fontes: Banco Mundial, Japan Tourism Agency, Enciclopédia Britannica, OCDE, Embaixada do Japão no Brasil, Estúdio Ghibli e World Factbook

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