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Yascha Mounk

EUA impediram um populista autoritário de destruir instituições democráticas do país

Biden rejeitou os termos de tudo ou nada da guerra cultural que vem consumindo classe política

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Yascha Mounk

Doutor em ciência política pela Universidade Harvard (EUA) e estudioso de crises nas democracias liberais; autor de "The People vs Democracy" (O Povo versus a Democracia)

Como presidente, Donald Trump causou sofrimento desnecessário em escala espantosa e sujeitou as instituições democráticas do país à prova mais séria em mais de um século. Elas sobreviveram à prova. Joe Biden derrotou Trump por pouco, pondo fim ao pesadelo dos últimos quatro anos.

Uma administração competente e civilizada agora se prepara para entrar na Casa Branca. Embora muitos dos problemas que confrontam a nação continuarão a se mostrar refratários, o 46º presidente dos Estados Unidos vai sem dúvida trabalhar para combater, em lugar de minimizar, o perigo ainda representado pela pandemia global; para melhorar a vida de imigrantes e membros de minorias, em vez de colocá-las em risco; e para unir os americanos, em lugar de dividi-los.

O que significa a vitória de Biden?

O democrata Joe Biden faz campanha em Monaca, na Pensilvânia - Kevin Lamarque - 2.nov.20/Reuters

Nas etapas iniciais da campanha, analistas descartaram Biden como um anacronismo que perdera seu momento. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, Biden tomou posse como senador dos EUA na mesma semana em que George Foreman se tornou o campeão mundial dos pesos-pesados no boxe.

Ele tentou se tornar presidente pela primeira vez, sem sucesso, quando o Muro de Berlim ainda estava de pé e quase metade dos americanos hoje vivos ainda não haviam nascido.

Enquanto seus predecessores, Bill Clinton e Barack Obama, foram eleitos para o cargo mais alto do país quando eram jovens impacientes para conquistar o futuro, Biden assumirá a Presidência como um avô gentil que parece sentir saudades de um passado mais calmo.

Mas o que se sabe agora é que Biden é um homem altamente sintonizado com este momento histórico —a despeito de sua idade e experiência ou, quem sabe, devido a ela.

Seus concorrentes nas primárias pensaram que poderiam conquistar a indicação democrata, papagueando um discurso online marcado pelo pessimismo extremo em relação a este país e suas perspectivas. Seu rival na eleição geral achou que poderia aferrar-se ao poder, apelando para os instintos mais baixos da América.

Biden foi o único que se mostrou capaz de rejeitar os termos de tudo ou nada da guerra cultural que vem consumindo nossa classe política. Nem antenado nem alienado, ele conquistou uma rara vitória contra um presidente no cargo por ser, simplesmente, decente.

Se em 2016 os americanos premiaram a raiva e o extremismo, em 2020 eles deram a vitória a um homem que prega a moderação, alguém que defende ideais progressistas sem fazer pouco caso de conservadores e que acredita que é possível ser transparente em relação às falhas do país e ao mesmo tempo orgulhar-se de seus pontos fortes.

Biden venceu porque reconheceu que a maioria dos americanos tem muito menos sede de extremismo político do que os apresentadores dos canais de TV a cabo e as celebridades das redes sociais do país parecem pensar.

Ainda é cedo para redigir o relato final de um dos capítulos mais tenebrosos da América. Mas a derrota decisiva de Trump sugere que o primeiro rascunho —escrito por analistas, políticos, cientistas políticos e o próprio presidente ao longo dos últimos quatro anos— foi exageradamente pessimista.

Quando Trump venceu uma primária após outra e derrotou Hillary Clinton em uma vitória inesperada, analistas e cientistas políticos atribuíram sua ascensão ao racismo.

Alguns postularam que grande número de americanos tinha sede das mensagens racistas subliminares que foram indiscutivelmente uma parte central de sua primeira campanha.

Mas quando foi pedido aos eleitores americanos que opinassem sobre a atuação de Trump na Presidência em seu último ano no cargo, eles lhe deram uma nota relativamente boa no quesito da economia e foram surpreendentemente generosos na avaliação que fizeram de sua gestão do coronavírus.

A questão sobre a qual ele se saiu menos bem é de longe o problema racial.

Essa indignação em torno das posições raciais de Trump se evidenciou ao longo do verão no hemisfério norte, quando participei como observador de um grupo de discussão de mulheres da classe trabalhadora que haviam apoiado o presidente no passado.

Questionadas sobre a economia ou a pandemia, inventaram uma série de desculpas. Mas indagadas sobre as opiniões de Trump em relação ao assassinato de George Floyd, enfureceram-se. O desejo evidente do presidente de inflamar as tensões raciais as deixou revoltadas —e não hesitaram em dizê-lo.

Pesquisas de boca de urna sugerem que muitos deles realmente abandonaram Trump. O presidente obteve ganhos significativos entre afro-americanos e, especialmente, latinos. Se perdeu de todo jeito, é porque foi abandonado por um número significativo de eleitores brancos que o haviam apoiado em 2016.

Expulso do poder, Trump fará o que puder para trazer à tona o que há de pior na América. O país continua profundamente dividido. Mas, depois de quatro anos de medo e vergonha, este é um momento de esperança e orgulho.

A América impediu um populista autoritário de destruir suas instituições democráticas. Os americanos compareceram em número sem precedentes para mostrar que Trump não é a verdadeira face deste país.

Assim, devemos mais uma vez ousar encarar com otimismo a possibilidade de construir uma democracia forte e inclusiva que, ano a ano, esteja plenamente à altura de seus ideais elevados.

Dezoito meses atrás, ao lançar sua campanha presidencial, na cidade de Filadélfia, em um gesto de reconhecimento dos ideais consagrados na Constituição dos Estados Unidos, Biden disse: “Todos sabem quem é Donald Trump. Precisamos deixar as pessoas saber quem nós somos”.

Elas souberam.

Tradução de Clara Allain 

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