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Natalia Viana

Há 10 anos, negociações tensas permearam revelação explosiva do WikiLeaks

Jornalista que fez ponte entre site fundado por Julian Assange e Folha conta bastidores da publicação

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Natalia Viana

Jornalista, é diretora e co-fundadora da Agência Pública e Jornalismo Investigativo. É autora e co-autora de quatro livros sobre violações direitos humanos.

Em 29 de novembro de 2010, a Folha tornava-se o sexto veículo do mundo a publicar um dos maiores vazamentos da história do jornalismo. Na primeira página daquela segunda-feira, estampava: “Brasil disfarçou luta antiterror, dizem EUA”.

No mesmo dia, os jornais Der Spiegel, Le Monde, The New York Times, The Guardian e El País traziam manchetes sobre os 251.287 telegramas diplomáticos do Departamento de Estado americano que destrinchavam a política interna de mais de 170 países na primeira década do século 21.

A história de como a Folha virou parceira de primeira hora envolveu longas discussões que mantive com Julian Assange, fundador do WikiLeaks, na friorenta mansão de Ellingham Hall, no norte da Inglaterra, onde um grupo de jovens jornalistas, desenvolvedores e advogados acreditavam estar mudando o mundo.

Assange havia me contactado por eu ter trabalhado com o Center for Investigative Journalism (CIJ), então ligado à City University, de Londres.

Julian Assange, fundador do WikiLeaks, durante entrevista coletiva na parte externa do Ellingham Hall, em Norfolk
Julian Assange, fundador do WikiLeaks, durante entrevista coletiva na parte externa do Ellingham Hall, em Norfolk - Paul Hackett - 17.dez.10/Reuters

O cenário parecia transplantado da série “The Crown”. O casarão era rodeado de pastos, criações de faisões, pombos brancos e pôneis. Assim que cheguei, dez dias antes da publicação, impressionei-me com o contraste entre a atmosfera tradicional, de um luxo decadente, e as parafernálias espalhadas sobre o chão acarpetado e mesas de madeira: pequenos laptops, CPUs, baterias, celulares, cabos e mais cabos.

“Aqui é um bom lugar”, explicou Assange, “porque estamos numa propriedade rural, então não tem nada em volta. Nenhuma força de segurança pode entrar sem mandato. E fica mais difícil colocar escutas.”

Por ordem dele, todos os celulares foram desligados, e suas baterias, removidas; ninguém podia entrar em contato com familiares ou conhecidos. Todos os laptops foram “blindados” já na primeira madrugada. A internet era sempre lentíssima devido à navegação criptografada e usada apenas quando necessário.

Tamanha precaução trazia um grande problema: como propor à Folha uma parceria dessa magnitude sem ter nem um celular? A solução foi tentar contato com Fernando Rodrigues, na época repórter especial e diretor da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), que conhecia o trabalho do WikiLeaks. Mas levaria alguns dias até eu falar com ele, por meio de um chat no Facebook.

Havia um acordo de exclusividade com os cinco principais jornais do mundo, mas, para mim, aquilo trazia um problema: Lula estava deixando a Presidência e, embora o novo governo fosse de continuidade, àquela altura ninguém garantia que os ministros que apareciam nos telegramas seriam mantidos.

Assange comprou a briga. Articulou com o El País, que inicialmente aceitou trazer um parceiro brasileiro à mesa. Mas encontrou grande resistência dos demais jornais, em especial do Guardian. Depois de ir a Londres negociar com os editores da publicação britânica, voltou para o casarão abatido. Era difícil para ele engolir que os cinco veículos determinassem o que fazer ou não com os documentos.

Decidimos enviar apenas alguns deles por dia ao Fernando Rodrigues, selecionados por mim. Na semana seguinte, eu voltaria ao Brasil e poderia entregar todo o arquivo à Folha e ao jornal O Globo. Assange insistia que houvesse ao menos dois veículos em cada país. Isso faria com que ângulos diferentes da mesma história fossem contados.

Ao mesmo tempo, eu escreveria reportagens com base nos mesmos documentos para o site do WikiLeaks –meses depois, continuaria esse trabalho de análise dos documentos ao co-fundar a Agência Pública, primeira agência de jornalismo investigativo do país, com a jornalista Marina Amaral.

O cerco rapidamente foi se fechando. Na semana do lançamento, a Interpol emitiu um mandato internacional de busca para prender Assange, pois ele era procurado na Suécia para ser interrogado em um caso de crime sexual; a seguir, Hillary Clinton, secretária de Estado dos EUA à época, começou a ligar para governos aliados, pedindo desculpas antecipadamente.

Ao mesmo tempo, o governo americano já ventilava a principal acusação contra o WikiLeaks: que a publicação dos documentos colocaria em risco seus informantes. Assange então enviou um emissário de confiança à embaixada americana em Londres para pedir que fossem enviados os nomes de todas as pessoas que deveriam ser protegidas; não obteve resposta.

Notícias sobre o vazamento passaram a pipocar em diversos jornais. Fernando Rodrigues me escreveu um email seco: “Me liga”. Segundo informações seguras, o vazamento sairia no dia 26, e a Folha levaria um furo, jargão para indicar quando um outro veículo consegue publicar uma informação exclusiva antes.

Era mais uma das artimanhas do Departamento de Estado americano, na tentativa de criar rusgas entre os veículos que aceitaram colaborar desde o início. Convenci-o de que ele receberia os documentos e não haveria furos. Prometi. E torci para que fosse verdade.

Manter o embargo para a publicação ficava cada vez mais difícil. No domingo, dia 28 de novembro, três horas antes do previsto, não deu mais. Ouvia gritos na sala: “O Guardian vai furar”, “O El País quer publicar”. Finalmente o El País soltou a notícia, seguida pelos demais como uma enxurrada.

O primeiro “pacote” de documentos que enviei para a Folha mostrava que, por meio de dicas do FBI, a polícia brasileira prendia suspeitos de terrorismo e os acusava de outros crimes “para não chamar a atenção da imprensa”. Fernando Rodrigues respondeu: “Mas é só isso? Não tem nada mais forte?”.

A decepção tinha razão de ser. Os documentos trouxeram tantas revelações embaraçosas em tantos países –na Tunísia as informações sobre corrupção levaram à derrubada do governo; a Suécia traía sua pretensa neutralidade em conversas privadas; os Estados Unidos espionavam diversos líderes mundiais na ONU–, enquanto o que o que se tinha do Brasil era o retrato de um Itamaraty independente e altivo.

Mesmo assim, havia histórias saborosas, como a proximidade do então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, chamado de “atipicamente militante” em prol dos americanos. Outros temas importantes eram o interesse dos americanos na segurança da Copa do Mundo e das Olimpíadas e na descoberta do pré-sal.

Dez anos depois, ainda é difícil entender o impacto que a filosofia radical do WikiLeaks teve no mundo. Os protestos massivos liderados por jovens que ocorreram nos anos seguintes foram muito influenciados pela mensagem de que na era da internet a transformação da sociedade estava ao alcance de todos.

Também é inegável que grupos de ultradireita se aproveitaram dessa energia que exigia mudança para se eleger e corroer a democracia por dentro.

Assange, de Robin Hood da liberdade informação, que recebia documentos ultrassecretos dos poderosos para distribuir aos sem informação, passou a ser ignorado pela imprensa a quem distribuiu tantos furos.

O caso de crime sexual na Suécia ruiu; mesmo assim, ele passou sete anos exilado na embaixada do Equador. No ano passado, foi preso pelo Reino Unido por ter violado a sua liberdade condicional.

Os EUA hoje pedem sua extradição por 17 acusações segundo a Lei de Espionagem, 16 das quais referentes à publicação de documentos secretos. O caso será julgado nas cortes britânicas em janeiro. Se for extraditado, nenhum jornalista estará seguro se publicar segredos do governo americano.

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