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O que 2020 ensinou sobre racismo ao Brasil?

A precariedade no acesso à saúde e saneamento vulnerabilizou a população negra

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Andréa Lopes da Costa

É socióloga, professora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas e Desigualdades Sociais, coordenadora do CP Sociologia das Relações Étnico-Raciais na Sociedade Brasileira de Sociologia.

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Para todo o mundo, 2020 será um ano para não se esquecer: o receio do coronavírus, o imperativo da quarentena e a necessidade de quase um ano de isolamento social. Diante do inesperado, do extraordinário, muitos têm se perguntado: O que o ano ensinou ao mundo e ao Brasil?

No Brasil, não só a Covid-19 marcou o ano. O racismo foi notícia frequente. De janeiro, quando a prefeita de Ilhabela apresentou denuncia por injúria racial após ofensas nas redes sociais, até dezembro, com veiculação da imagem de um menino chorando durante competição de escolinhas de futebol, no Triângulo Mineiro, passando pelo assassinato de um homem negro em supermercado em Porto Alegre, a dois dias da celebração dia da Consciência Negra, não houve um mês sem que algum caso fosse noticiado. A lista é imensa.

Racismo estrutural virou categoria repetida em lives, noticiários, editoriais e programas na mídia. Aproximando-nos do final deste ano difícil, surge uma pergunta: O que 2020 ensinou sobre racismo ao Brasil?

O Brasil, sendo um país que passou por longa experiência colonial; teve uma das maiores práticas de escravização da história; por séculos, sustentou sua economia na mão de obra escravizada; normalizou a apropriação dos corpos de mulheres negras, romantizando o resultado, e ainda elaborou um discurso de integração nacional baseado na produção do consenso de que, por aqui, raça não teria efeito, em alguma hora enfrentaria seus fantasmas.

Com população com 56% de negros, que representam 75% dos que vivem abaixo da linha de pobreza, menos de 30% das lideranças nas empresas nacionais, 66,7% do contingente carcerário, torna-se difícil dissimular o fato de que aqui, classe importa, mas raça é combustível potente para a produção de assimetrias.

2020 começou a nos ensinar logo no inicio, quando após o Carnaval, a Covid-19 chegou. As primeiras informações confirmavam sua democrática incidência: ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, todos igualmente sujeitos à doença e, apesar de baixo risco, à morte. Para todos, uma tarefa: quarentena com distanciamento social, máscaras e álcool gel. Para a humanidade, um aprendizado: união e solidariedade.

Breve momento. Assim que foram divulgadas notícias que contrastavam o perfil das primeiras pessoas a se infectarem (brancas, de classes média e alta, recém-chegadas de viagens de férias ao exterior) ao das primeiras a morrerem (empregadas domésticas, negras, pobres) a primeira lição foi dada: Nenhuma crise é democrática. Quando chega, são os negros que mais rapidamente sentem suas consequências e que primeiro sucumbem.

A precariedade no acesso à saúde e saneamento vulnerabilizou a população negra. Sendo a maior parte dos que moram em condições precárias e sem acesso à água limpa e encanada, muitos não tiveram o básico para a prevenção. Sendo a maioria dos que mais dependem de leitos em hospitais públicos, grande parte teve que aguardar vagas para tratamento. Sendo os que menos possuem condições para arcar com os altos custos dos exames ou atendimento em hospitais particulares, não tiveram opção. Assim, a população negra tornou-se, rapidamente, o grupo com mais mortes em decorrência a Covid-19.

E, quando os registros da incidência de doença e morte por cor/raça deixaram de ser divulgados, impedindo a mensuração dos danos, não somente para os grupos raciais, mas igualmente para moradores de favelas e regiões periféricas, 2020 ensinou outra lição sobre racismo: Invisibilização é estratégia para perpetuar as desigualdades raciais. Se não sabemos a cor, o problema não existe.

Se o problema não existe, o ideal é garantir o “novo normal”. 6,4 milhões de negros perderam seus empregos durante a pandemia. Os que não perderam ou se vincularam à trabalhos informais foram levados a atravessar as cidades em transportes e condições insalubres. Entregadores, motoboys, empregadas domésticas, porteiros, faxineiras, cozinheiras enfim... O conforto da quarentena de alguns garantido por um exército de trabalhadores sem a mesma possibilidade de escolha.

Uma relação desigual representada no trágico cenário, exaustivamente veiculado na mídia nacional: Junho, cidade de Recife. Uma mãe negra, empregada doméstica, leva seu filho pequeno para o local de trabalho e passeia com o cachorro da casa, confiando o cuidado de seu filho à patroa. Uma patroa que, embora comprometida com o cuidado da criança, faz suas unhas com uma manicure. Uma criança negra de cinco anos, sozinha em um elevador, se perde e cai do alto de um prédio, enquanto procurava por sua mãe.

Deste episódio, tantas lições. Fiquemos com duas:

A intersecção entre classe e raça é insuficiente para a compreensão do modus operandi do racismo em um país que mantém vivas as heranças coloniais. Aqui, o racismo não opera apenas na produção de desigualdades, mas, sobretudo, através de um complexo mecanismo de elaboração de hierarquizações de espaços (elevadores de serviço, quartos de empregadas), de relações (patroa e empregada) e de pessoas (brancas e negras). Sociedade e, especialmente, elites internalizaram um sentido de superioridade/inferioridade que excede a relação riqueza/pobreza e se expressa, entre outras, na irrefreável necessidade de manutenção das relações da casa-grande, atualizadas como trabalhos domésticos.

Mulheres negras, que representam 28% da população nacional, mas estão na base da estrutura social, com poucas chances de serem absorvidas pelo mercado de trabalho formal, frequentemente inserem-se em ocupações precárias e subalternizadas onde são desconsideradas em sua subjetividade e reduzidas à máquinas de trabalho. Revela-se, neste momento, uma das principais heranças coloniais: objetificação e desumanização.

E, para o caso das crianças negras, tanto quanto a desumanização, a “adultização” é uma estratégia potente na produção do racismo estrutural. Tomadas como adultas, crianças negras têm negada sua condição de fragilidade e, portanto, de necessidade de cuidados, tornam-se objeto de negligência e alvos potenciais das inúmeras balas perdidas que, neste ano, mataram mais de uma dezena somente no Rio de Janeiro.

Desconsideradas como crianças, integram um projeto necropolítico de banalização da morte. São negros 75% das crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos vitimas de homicídio; 75,4% dos mortos pela polícia e, 75,7% das vítimas de mortes violentas. Neste ponto, 2020 também ensinou que: Racismo é catalizador para mortes violentas e, quando associado à desumanização e a precarização da vida nas periferias, é fogo na pólvora.

Mas, essa é uma lição antiga. Há décadas, estudiosos das relações raciais, ativistas antirracistas e integrantes dos movimentos negros denunciam. É histórico: “parem de nos matar”. Contudo, quando cenas do assassinato de George Floyd e das manifestações subsequentes correram o mundo, a pergunta exaustivamente repetida foi: Por que aqui, não se manifestam como lá? Mais uma lição: No Brasil, luta antirracista boa é a que acontece em outro país.

Um engano. No Brasil a resistência é condição de existência de negros e as estratégias são seculares. Os casos de racismo fortaleceram os novos movimentos negros, as articulações em redes e o ativismo antirracista digital. Por outro lado, as últimas eleições municipais realizadas entre outubro e novembro tiveram como pauta potente a defesa da candidatura de mulheres negras, um movimento que organizado há anos, ganhou força com a recente decisão do STF sobre destinação de recursos, por partidos políticos, para campanhas de candidatos negros.

A pandemia ainda não acabou, embora 2020 esteja encerrado, deixando uma última lição: Racismo é para ser combatido. Se 2020 ensinou muito ao Brasil, a tarefa, para 2021 é a de responder à pergunta: E, o Brasil, aprendeu a lição?

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