Como o patriotismo e uma população de 1,4 bilhão ajudaram a China a se recuperar da pandemia

Sucesso colocou Pequim em boa situação, econômica e diplomaticamente, para revidar contra ocidente

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The New York Times

A ordem veio na noite de 12 de janeiro, dias depois que um novo surto do coronavírus irrompeu em Hebei, província vizinha a Pequim. O plano do governo chinês era ousado e brusco: precisava erguer cidades inteiras de moradias prefabricadas para pôr a população em quarentena, projeto que começaria na manhã seguinte.

Parte do trabalho coube a Wei Ye, dono de uma empreiteira, que instalaria 1.300 construções em terra agrícola desapropriada.

Tudo —o contrato, os projetos, a encomenda dos materiais— foi "resolvido em poucas horas", disse Wei, acrescentando que ele e seus empregados trabalharam exaustivamente para cumprir o prazo apertado.

"Há pressão, é claro", disse ele, mas se sentiu "muito honrado" em fazer a sua parte.

No ano desde que o coronavírus iniciou sua marcha ao redor do mundo, a China fez o que muitos outros países não quiseram ou não puderam fazer. Com medidas iguais de coerção e persuasão, Pequim mobilizou o vasto aparelho do Partido Comunista para tocar fundo no setor privado e na população em geral, no que o líder do país, Xi Jinping, chamou de "guerra do povo" contra a pandemia —e venceu.

A China está colhendo hoje os benefícios duradouros que poucos esperavam quando o vírus surgiu na cidade de Wuhan, centro do país, e a liderança pareceu mais perturbada que nunca desde a repressão na Praça Tiananmen em 1989.

O sucesso colocou a China em boa situação, econômica e diplomaticamente, para revidar contra os Estados Unidos e outros países preocupados com sua ascensão aparentemente inexorável. Ele também fortaleceu Xi, que ofereceu a experiência chinesa como modelo para outros países seguirem.

Enquanto as autoridades de Wuhan inicialmente vacilaram com medo de represálias políticas, hoje elas entram em ação a qualquer sinal de novas infecções, às vezes com excesso de zelo. Em Hebei em janeiro, as autoridades usaram sua aprimorada estratégia para testar milhões de pessoas e isolar comunidades inteiras —tudo com o objetivo de fazer os casos, oficialmente algumas dezenas por dia em uma população de 1,4 bilhão, voltarem a zero.

O governo tinha despejado dinheiro em projetos de infraestrutura, seu modo de operar há anos, enquanto estendia empréstimos e alívio fiscal para apoiar empresas e evitar demissões ligadas à pandemia. A China, que hesitava no início do ano passado, é a única grande economia que retornou ao crescimento constante.

No que se trata de desenvolvimento de vacinas, o governo ofereceu terrenos, empréstimos e subsídios para novas fábricas, juntamente com aprovações em tempo recorde. Duas vacinas chinesas estão em produção em massa; outras estão a caminho.

Enquanto as vacinas demonstraram índice de eficácia menores que os das rivais ocidentais, 24 países já as encomendaram depois que as companhias farmacêuticas prometeram, a pedido de Pequim, entregá-las mais rapidamente.

Outros países, como Nova Zelândia e Coreia do Sul, conseguiram conter o vírus sem medidas impositivas que teriam sido politicamente inaceitáveis em um sistema democrático. Para os líderes chineses, esses países não se comparam.

Os sucessos de Pequim em cada dimensão da pandemia —médica, diplomática e econômica— reforçaram sua convicção de que uma capacidade autoritária para mobilizar rapidamente pessoas e recursos deu à China uma vantagem decisiva que outras grandes potências como os EUA não tiveram. É uma abordagem que enfatiza um impulso incansável por resultados e conta com um público aquiescente.

O Partido Comunista, nesta visão, deve controlar não só o governo e as empresas de propriedade estatal, como também empresas privadas e as vidas pessoais, priorizando o bem coletivo acima de interesses individuais.

"Eles conseguiram reunir todos os recursos do Estado unipartidário", disse Carl Minzner, professor de direito chinês e política na Universidade Fordham. "Isto, é claro, inclui instrumentos de coerção —restrições severas e obrigatórias para milhões de pessoas—, mas também ferramentas burocráticas altamente eficazes que talvez só existam na China."

Ao fazê-lo, as autoridades comunistas chinesas suprimiram a liberdade de expressão, policiaram e purgaram opiniões dissidentes e sufocaram qualquer noção de liberdade ou mobilidade individual —atos que são repugnantes e inaceitáveis em qualquer sociedade democrática.

Entre os líderes do Partido Comunista, uma sensação de justiça é palpável. Nos últimos dias de 2020, os sete membros do Comitê Permanente do Politburo, o principal órgão político do país, se reuniram em Pequim para o equivalente a uma revisão de desempenho anual, na qual, em teoria, eles podem criticar a si mesmos e a colegas.

Longe de sugerir algum fracasso —a crescente desconfiança global em relação à China, por exemplo—, eles exaltaram a liderança do partido.

"O mundo atual está passando por uma grande transformação, do tipo que não se via há um século", disse Xi a autoridades em outra reunião em janeiro. "Mas o tempo e o momento estão do nosso lado."

Partido mobilizado

Nas últimas semanas, enquanto os novos casos de Covid continuavam surgindo, o gabinete de governo, o Conselho de Estado, emitiu uma diretriz abrangente. "Não pode haver a menor negligência sobre o risco de uma ressurgência", disse.

As ordens refletem a natureza microadministrada do sistema político chinês, cujos principais líderes têm botões para alcançar dos corredores do poder central para cada rua e até prédios de apartamentos.

O Conselho de Estado ordenou que as províncias e cidades montassem centros de comando 24 horas, com autoridades encarregadas de responder por sua atuação. Ele pediu a abertura de centros de quarentena suficientes não apenas para abrigar pessoas 12 horas depois de um teste positivo, mas também isolar rigidamente centenas de contatos próximos de cada caso positivo.

Cidades com até 5 milhões de pessoas deveriam criar capacidade para administrar um teste nucleico a todos os moradores dentro de dois dias. Cidades com mais de 5 milhões poderiam levar de três a cinco dias.

A chave dessa mobilização está na capacidade do partido de usar sua vasta rede de autoridades, que é entrelaçada a cada departamento e agência de cada região.

O governo pode facilmente mobilizar "voluntários" para novos pontos quentes, incluindo mais de 4.000 profissionais médicos enviados a Hebei depois do novo surto em janeiro. "Um membro do Partido Comunista vai à linha de frente da população", disse Bai Yan, estudante universitário de 20 anos que tem ambições de entrar para o partido.

Zhou Xiaosen, membro do partido numa aldeia próxima de Shijiazhuang, cidade de 11 milhões de habitantes que foi uma das totalmente bloqueadas, disse que os delegados podiam ajudar a policiar as violações, mas também ajudar os necessitados. "Se eles precisarem sair para comprar remédios ou verduras, nós faremos isso por eles", afirmou.

O governo apela aos interesses materiais, assim como ao senso de patriotismo, dever e autossacrifício.

O Grupo do 14º Departamento da Ferrovia da China, uma empreiteira estatal que ajuda a construir os centros de quarentena perto de Shijiazhuang, redigiu uma promessa pública de que seus trabalhadores não poupariam esforços. "Não reclamem sobre o pagamento, não discutam as condições, não falhem mesmo que seja vida ou morte", disse o grupo em uma carta assinada com impressões digitais dos empregados.

A rede também opera em parte através do medo. Mais de 5.000 autoridades locais e do partido foram demitidas no último ano por falhas em conter o coronavírus em seu turno. Há pouco incentivo à moderação.

Os moradores da cidade de Tonghua, no nordeste da China, recentemente se queixaram depois que autoridades subitamente impuseram um lockdown sem preparação suficiente para se abastecerem de comida e outras necessidades. Quando um aldeão próximo a Shijiazhuang tentou escapar da quarentena para comprar um maço de cigarros, um chefe de partido zeloso mandou amarrá-lo a uma árvore.

"Muitas medidas parecem exageradas, mas no entender deles era preciso exagerar", disse Chen Min, escritor e ex-editor de jornal que estava em Wuhan durante o lockdown. "Se você não fizesse isso, não teria resultados."

A raiva se dissipou sobre a inação e a duplicidade do governo no início da crise, consequência de um sistema que suprime as más notícias e as críticas. O sucesso da China de modo geral abafou a dissidência dos que questionavam o controle central do partido. As autoridades também modificaram a narrativa ao público, advertindo e até prendendo ativistas que contestaram sua versão triunfal dos acontecimentos.

As medidas em Hebei funcionaram rapidamente. No início de fevereiro, a província registrou seu primeiro dia em um mês sem uma nova infecção por coronavírus.

Economia renascida

Em muitos países houve forte debate sobre o equilíbrio entre proteger a saúde pública e manter a economia funcionando. Na China, há pouca discussão. Ela fez as duas coisas.

Até em Wuhan no ano passado, onde as autoridades fecharam virtualmente tudo durante 76 dias, elas permitiram que as principais indústrias continuassem operando, como siderúrgicas e fábricas de semicondutores. Elas replicaram essa estratégia quando surtos menores ocorreram, esforçando-se de modo extraordinário para ajudar empresas grandes e pequenas.

A experiência da China salientou o conselho que muitos especialistas sugeriram, mas poucos países seguiram: quanto mais depressa você puser a pandemia sob controle, mais rapidamente a economia pode se recuperar.

Enquanto o prejuízo econômico foi grave no início da crise, a maioria das empresas fechou durante apenas algumas semanas, quando fechou. Poucos contratos foram cancelados. Poucos trabalhadores foram demitidos, em parte porque o governo desencorajou fortemente as companhias de fazê-lo e ofereceu empréstimos e alívio fiscal para ajudar.

"Nós coordenamos o progresso em controle pandêmico e desenvolvimento econômico e social, dando urgência a restabelecer a vida e a produção", disse Xi no ano passado.

A fábrica Zhejiang Huayuan de peças de automóveis perdeu apenas 17 dias de produção. Com a ajuda das autoridades regionais, a empresa contratou ônibus para trazer de volta os trabalhadores que tinham se dispersado para o feriado do Ano Novo lunar e não puderam voltar porque a maior parte do país ficou trancada no início. Passes do governo permitiram que os ônibus cruzassem os postos de controle que restringiam as viagens.

Os trabalhadores só puderam se deslocar entre a fábrica e dormitórios, com suas temperaturas verificadas frequentemente. A BYD, um grande cliente, começou a fabricar máscaras e enviar suprimentos para a Huayuan.

Em breve, a companhia tinha mais encomendas do que podia produzir.

Como a própria China, a Huayuan se recuperou rapidamente. Em abril, tinha encomendado quase US$ 10 milhões (R$ 53 milhões) em novos equipamentos para iniciar uma segunda linha de produção, altamente automatizada. Ela pretende adicionar 47 técnicos à sua força de trabalho de 340 pessoas.

Antes da pandemia, as multinacionais procuravam além da China para suas operações, em parte levados pela guerra comercial do governo do ex-presidente americano Donald Trump com Pequim. O próprio vírus aumentou os temores sobre a dependência das cadeias de suprimentos chinesas.

A pandemia, porém, só reforçou o domínio chinês, enquanto o resto do mundo lutava para continuar em funcionamento.

No ano passado, a China inesperadamente superou pela primeira vez os Estados Unidos como destino de investimento direto estrangeiro, segundo a Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento da ONU. Em todo o mundo, os investimentos despencaram 47%, enquanto na China eles cresceram 4%.

"Apesar do custo humano e da disrupção, a pandemia em termos econômicos foi uma bênção disfarçada para a China", disse Zhu Ning, vice-reitor do Instituto Avançado de Finanças de Xangai.

Ferramenta diplomática

Em fevereiro do ano passado, enquanto o coronavírus assolava Wuhan, um dos maiores fabricantes de vacinas do país, a Sinovac Biotech, não tinha condições de desenvolver uma nova vacina para contê-lo.

A companhia não tinha um laboratório de alta segurança para conduzir a arriscada pesquisa necessária. Ele não tinha uma fábrica para produzir as vacinas, nem capital para construir uma.

Então o executivo-chefe da companhia, Yin Weidong, procurou a ajuda do governo. Em 27 de fevereiro ele se encontrou com Cai Qi, membro do Politburo da China, e Chen Jining, o prefeito de Pequim e um cientista ambiental.

Depois disso, a Sinovac teve tudo de que precisava.

As autoridades deram aos pesquisadores acesso a um dos laboratórios mais seguros do país, forneceram US$ 780 mil (R$ 4 milhões) e designaram cientistas do governo para ajudar.

Elas também abriram caminho para a construção de uma fábrica em um bairro de Pequim. A cidade doou o terreno. O Banco de Pequim, do qual a prefeitura é um grande acionista, ofereceu um empréstimo de US$ 9,2 milhões (R$ 48 milhões) com juros baixos.

Quando a Sinovac precisou de tanques de fermentação que geralmente levam 18 meses para importar do exterior, o governo ordenou que outro fabricante trabalhasse 24 horas por dia para fazê-los.

Foi o tipo de abordagem de todo o governo que Xi delineou em uma reunião do Comitê Permanente do Politburo dois dias depois que Wuhan entrou em lockdown. Ele pediu que o país "acelerasse o desenvolvimento de drogas terapêuticas e vacinas", e Pequim despejou amplos recursos.

A empresa privada CanSino Biologics se associou ao Exército Popular de Libertação, trabalhando sem descanso para produzir as primeiras doses de teste em março. A Sinopharm, farmacêutica estatal, recebeu verbas do governo em três dias e meio para construir uma fábrica.

Yin, da Sinovac, chamou o projeto de "Operação Coronavírus", mantendo o discurso de tempo de guerra do país contra o surto. "Foi só sob essas condições abrangentes que nossa oficina pôde entrar em produção", disse ele a The Beijing News, um jornal controlado pelo Estado.

Menos de três meses depois da reunião de Yin em 27 de fevereiro, a Sinovac tinha criado uma vacina que podia ser testada em humanos e tinha construído uma fábrica gigante. Ela está produzindo 400 mil vacinas por dia e espera produzir até 1 bilhão neste ano.

A corrida acelerada para vacinar um país afinal abriu uma oportunidade diferente.

Com o coronavírus amplamente eliminado no país, a China poderá vender mais vacinas no exterior. Elas "serão transformadas num bem público global", prometeu Xi na Assembleia Mundial de Saúde em maio.

Embora as autoridades se enervem diante da premissa, a "diplomacia da vacina" se tornou uma ferramenta para abrandar parte da raiva pelos erros da China, ajudando a sustentar sua posição global num momento em que sofre pressão dos EUA e de outros países.

"É aqui que a China pode chegar e parecer um verdadeiro salvador, como um amigo em tempos de necessidade", disse Ray Yip, ex-diretor da Fundação Bill e Melinda Gates na China.

A eficiência interna da China não se traduziu em uma vitória fácil no exterior. As vacinas chinesas têm taxas de eficácia mais baixas. As autoridades do Brasil e da Turquia se queixaram de atrasos. Mas muitos países que as encomendaram admitiram que não poderiam esperar meses pelas fabricadas por americanos ou europeus.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves  

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